“Igor” é Tyler, The Creator na sua máxima expressão

por Miguel Fernandes Duarte,    30 Maio, 2019
“Igor” é Tyler, The Creator na sua máxima expressão
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Tyler, The Creator ficou conhecido muito cedo pela sua postura desafiadora e polémica. Mas, quando parecia que nada ia mudar e que sempre seria assim, o potencial que sempre havia mostrado arranjou forma de finalmente se concretizar e, em 2017, Flower Boy viu-o largar a sua persona fanfarrona e cáustica para expor os seus sentimentos e inseguranças e finalmente assumir a sua atracção por homens.

Numa entrevista dada à revista Fantastic Man em 2018, quando lhe perguntaram se já tinha estado apaixonado, Tyler disse que a resposta a essa pergunta seria o seu álbum seguinte. E eis que esse álbum chegou. Igor, assim se chama em provável referência ao grotesco ajudante do Doutor Frankenstein, responde à tal pergunta com a história de uma separação, num álbum de desgosto e aceitação, um amor não correspondido num triângulo amoroso com o qual o próprio Tyler é obrigado a fazer as pazes.

Um longo contínuo sonoro – à imagem de When I Get Home, o mais recente álbum de Solange (que marca subtilmente presença em várias das canções do álbum) – povoado de 808s e dos sintetizadores a que Tyler nos vem habituando, Igor é um álbum muito mais conduzido pelo instrumental, com a voz de Tyler a aparecer apenas ocasionalmente, cantando quase sempre com alterações de tom, raramente na sua expressão normal. Com uma produção por vezes muito crua, recheada de distorção no baixo, mas, ao mesmo tempo, muito quente, é um álbum mais dançável, cheio de groove. É o próprio Tyler quem pede aos seus ouvintes para ouvirem Igor do início ao fim, já que o tom sonoro do álbum se vai sucedendo e ”Igor’s Theme”, a canção quase inteiramente instrumental que inicia o álbum, é precisamente a marca geral desse tom. O sintetizador baixo, som isolado durante os primeiros 20 segundos do álbum, vai recorrentemente aparecendo ao longo das outras faixas, unindo-as nesta narrativa de separação, a qual vai sendo também polvilhada com as aparições de Jerrod Carmichael, comediante e amigo de Tyler, que várias vezes aparece, em jeito de preâmbulo, a marcar o tema de várias canções.

O tema do álbum é introduzido na segunda faixa, “Earfquake”, onde Tyler afirma a sua paixão pela pessoa que marcará todas as canções deste álbum, a necessidade que sente dele, pedindo-lhe para não se afastar, trazendo para si a culpa por qualquer coisa que se tenha passado. É um amor que ele admite em “I Think”, canção de enamoramento fulguroso com uma belíssima ponte entre refrões. É também aqui que surge, num primeiro verso com flow idêntico ao de Kanye West em “Stronger”, uma referência ao filme Call Me By Your Name, a marcar o paralelo entre a sua relação e a que o filme retrata. Nele, Elio (Timothée Chalamet) e Oliver (Armie Hammer) começam uma relação para que no fim Oliver acabe por deixar Elio para se casar com uma mulher, provavelmente por não ser capaz de assumir publicamente a sua sexualidade ou por, de certa maneira, a rejeitar.

Esse paralelo torna-se evidente em “Running Out of Time”. O homem pelo qual Tyler está apaixonado continua escondido atrás de uma máscara e Tyler está a ficar sem tempo para retirar a namorada dele da equação. “I need her out the picture / Take your mask off / Stop lyin’ for these niggas / Stop lyin’ to yourself / I know the real you”. E se “New Magic Wand” começa por aludir à ferramenta do Photoshop como método para apagar a tal rapariga da imagem, a música rapidamente ganha contornos mais agressivos, quando Tyler começa a disparar ameaças directas. Rapidamente se torna evidente que essa Magic Wand é, afinal, uma arma, aquela que dá título à faixa seguinte, “A Boy is a Gun”, onde o próprio objecto da sua paixão se transforma numa arma. É protecção, mas também um perigo, e não conseguindo que ele retire a sua máscara, Tyler vai da paixão à rejeição. “Stay the fuck away from me”, diz ele por entre sons de metralhadoras, e começa a ser evidente o lado monstruoso deste Igor.

Tyler, the Creator @ Matthieu Venot

“Puppet” é a confirmação dessa mudança, o momento em que Tyler se liberta dos fios de fantoche e da manipulação de que se sente alvo. É o início do abandono deste amor e é Kanye West quem aparece como voz da consciência, oferecendo conselhos, e, na canção seguinte, “What’s Good”, temos a expressão completa de Igor. O ajudante grotesco que dá nome ao álbum é o próprio Tyler e ele está farto de ser deixado para trás, abraçando a fanfarronice e agressividade que eram a sua marca. Esta abordagem sempre foi o seu mecanismo de defesa face aos desgostos e à sua identidade, o seu ego é máscara para as suas fragilidades, como a máscara que ele tanto despreza naquele pelo qual estava apaixonado. Não deixa, portanto, de ser curioso que seja Kanye West a aconselhá-lo, como se falasse daquilo pelo qual já passou, ele que é a expressão máxima do ego enquanto máscara e que tem vindo a desmontar essa persona, admitindo até problemas de saúde mental.

É por isso que a nova jornada que se inicia em “Gone, Gone / Thank You” é tão reveladora do amadurecimento de Tyler enquanto pessoa e enquanto artista. Processa o final da relação e está na mesma grato por algo ter acontecido (“At least I got it / Instead of never”), ao mesmo tempo que continua a tentar desmascarar essa sua paixão (“You’ve never lived in your truth / I’m just happy I lived in it”). E se “I Don’t Love You Anymore” é o culminar deste processo de reparação, “Are We Still Friends?”, a canção que encerra o álbum, por entre a capacidade de perdoar deixa a dúvida da capacidade de Tyler se libertar desta pessoa. Estará a relação realmente resolvida ou, ao tentarem ser amigos, tudo acontecerá de novo? Será isto apenas um ciclo destinado a repetir-se eternamente? Terá Tyler realmente feito as pazes com a sua posição subordinada, de Igor, com o seu papel naquela relação? Conseguirá manter-se nela, ou soltar-se-á novamente o perigo deste monstro?

Se estas dúvidas não são resolvidas, o que fica evidente é a posição de Tyler, The Creator no panorama musical actual, capaz de suceder o já surpreendente Flower Boy com uma nova direcção e um álbum tão sonicamente inovador e de paisagem sonora incrivelmente coesa e entusiasmante.  Pode não ser o Tyler que tínhamos ouvido até agora, mas tudo aqui é inegavelmente seu. Talvez só o rap tenha ficado um pouco ausente, mas, depois de ouvir Igor, quem quererá realmente queixar-se disso?

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