‘I Love You, Daddy’, a importância do timing e o homem vs obra

por João Estróia Vieira,    3 Dezembro, 2017
‘I Love You, Daddy’, a importância do timing e o homem vs obra
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Final dos anos 70, início dos anos 80, Manhattan, de Woody Allen estreava nos cinemas. Aquela que é, até aos dias de hoje, uma das suas obras mais reconhecidas, seria, anos mais tarde, uma das suas “obras malditas”. Woody Allen referiu em vários momentos da sua carreira, que se pudesse teria refeito o filme todo, ou pago para que não tivesse saído. Estas considerações, tidas após o filme sair, ganhariam um novo significado quando no final dos anos 80, início dos anos 90, Woody Allen e Soon-Yi Previn, filha adoptiva da sua companheira de então, Mia Farrow, começam um relacionamento. Ele com mais 35 anos que ela. Em Manhattan, o par romântico era composto por um adulto de 42 anos e uma adolescente de 17 (sim, 35 anos de diferença, também), interpretada por Mariel Hemingway. Teria Manhattan a mesma aclamação generalizada se tivesse sido feito anos mais tarde depois do “escândalo” rebentar?

I Love You, Daddy anda a ser arrasado por boa parte da crítica que se baseia num mau gosto do filme, tendo em conta o timing à volta do seu autor, Louis C. K. acusado entretanto, de ter tido, nos últimos anos, comportamentos sexualmente impróprios e reprováveis (as known as “masturbação”) em frente a algumas comediantes e actrizes. O “homem vs a (sua) obra”. Um debate tantas vezes tido ao longo da história, onde artistas (especificando à área que abordamos) com comportamentos/hábitos/atitudes/condutas obviamente reprováveis vêem o valor das suas obras questionadas e analisadas sob as lentes de uma opinião que pouco se foca no conteúdo, incapaz de se abstrair face aos acontecimentos que a rodeiam. Deve a obra ser dissociada de quem a faz? Logicamente que sim se for esse o objecto único de análise.

Longe de ser uma obra-prima, reconhece-se em I Love You, Daddy a audácia habitual de Louis C. K. para abordar assuntos inconvencionais. Para seu “azar”, e traído pelo timing, um desses assuntos é as relações entre mulheres – neste caso uma actriz e uma adolescente prestes a fazer os 18 – e homens mais velhos num filme em clara homenagem a um dos ídolos de Louis C. K., Woody Allen. Filmado a preto e branco e com uma banda sonora que poderia bem ser de algum dos filmes de Allen, a Louis C. K. faltou dar maior substância em menos tempo de filme.

Louis é Glen Topher, uma famosa e reconhecida figura do mundo do entretenimento que deveria estar prestes a entregar o guião de uma série de TV que ainda não começou a escrever mas que já conseguiu vender a um canal. Divorciado, de meia idade, Glen toma agora conta da sua filha mimada China (interpretada pela talentosa Chloe Grace Moretz), fruto de um casamento anterior.

O filme aborda sobretudo a relação de Glen com as mulheres da sua vida, sobretudo a relação com a sua filha que consegue retirar dele o que pretende, ainda que ele a espaços tente ser realmente um pai: «Have you thought at all about what you’re gonna do with your life?» ao que ela simplesmente responde «i don’t know, daddy» terminando depois a conversa com um «ok, I love you» de parte a parte, é um sintomático diálogo sobre a relação entre os dois.

I Love You, Daddy, questiona, e bem – pelo menos até certo ponto -, o moralismo de trazer por casa. Afinal, o assunto só é desinteressante porque não toca a si (a Glen, neste caso). E é precisamente aí que voltamos a entrar na discussão “homem vs obra”. Glen, que idolatrava Leslie, sente-se agora desconfortável quando a sua filha, menor, se começa a encontrar com Leslie, decidindo até que irá fazer uma viagem a Paris com o mesmo. Criticável é o facto do filme ser narcisista no aspecto em que ostensivamente coloca o ponto de vista meramente de Glen, desconfiando da capacidade e independência da sua filha para tomar conta de si mesma. No entanto, estamos a falar de decisões que apenas ao seu autor dirão respeito na forma como quer explanar uma obra – nós apenas poderemos criticar o mau uso dessa decisão.

Talvez tenha faltado a Louis C. K. um pouco mais daquilo que o fez ser reconhecido no humor: ousadia. Uma ousadia que tiraria (ou disfarçaria, pelo menos) ao filme alguma da inconsequência que lhe poderá ser assinalada e que o alargar do seu tempo em ecrã pode potenciar ainda mais – faltou tratar este I Love You, Daddy com a precisão de um cineasta, que Louis não é. E é por isso que o filme lembra até certos pontos a sua série Louie, ou pelo menos uma série, na forma quase desgarrada em que os sketches, cenas, se sucedem. Louis toca nos assuntos, mas parece que tem medo de ferir. Aborda por demasia o ponto de vista da relação pai/filha, e falha numa criada por si, um relacionamento questionável com uma actriz grávida interpretada por Rose Byrne, que permite a esta ser a figura da nova série de Louis. Um assunto sensível hoje em dia em Hollywood e em toda a indústria cinematográfica. Nesse aspecto, Louis teve azar ou é certeiro? É uma questão de timing, no humor e na arte.

Quem não se recorda quando Joaquin Phoenix, em 2009, à semelhança do genial Andy Kaufman (sobre o qual o igualmente genial Jim Carrey viria a fazer o saudoso Man on The Moon), nos anos 80, usarem David Letterman e o seu talk-show como palco para performance dos seus trabalhos (Phoenix viria a fazer um mea culpa ano e pouco mais tarde quando o seu mockumentary com Casey Affleck tinha sido exibido)? Desfazados do seu tempo, foram questionados e criticados por quem viu e não compreendeu. Nada disso acontece aqui, mas comprova-se quão ténue é esta linha entre o homem e a obra. Serão a mesma coisa? Conseguimos separar? Talvez não, mas devíamos, e I Love You, Daddy deve ser visto com os olhos de quem quer ver cinema, de quem quer ver uma obra do autor Louis C. K., e não sob o olhar toldado de quem quer analisar as condutas de uma pessoa e se aproveita da obra desta para o fazer. Sob todos os aspectos, o filme grita o nome do seu autor e da sua obra habitual por todo o lado, juntando a isso uma fotografia e banda sonora fantástica. Sem medo dos timings nem de prestar homenagem a um dos seus ídolos. Como diz Ricardo Araújo Pereira “só se brinca com coisas sérias, caso contrário não vale a pena brincar”. E o humor é possivelmente o campo mais difícil de fazer a tal diferenciação de que falamos.I Love You, Daddy teve honras de antestreia durante o Lisbon & Sintra Film Festival, estreando esta semana nas salas de cinema portuguesas.

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