Humanos acima de tudo

por Davide Pinheiro,    28 Fevereiro, 2021
Humanos acima de tudo
Daft Punk / DR
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Se os Daft Punk decretaram um epílogo, foi por quererem colocar um ponto final na história. E esse último aceno pode ter sido para terminar de vez com a especulação sobre o regresso. Um novo álbum? Uma banda sonora? A derradeira digressão? Todos os anos era a mesma dança. E eles sabiam-no. Talvez para acabar de vez com os boatos, escolheram um final à sua dimensão. Explosivo, misterioso, imaginativo. Apenas uma resposta bastou para nos devolver todas as perguntas que alimentaram a fantasia desde que optaram por proteger a identidade. Porquê? Quando? Como?

Mais do que uma banda, os Daft Punk eram um mito construído sobre o desconhecido. As máscaras e os capacetes não eram apenas objectos iconográfico de uma imagem delineada e trabalhada com mestria. Eram a última fronteira entre o espanto colectivo e uma realidade parahumana em que Thomas Bangalter e Guy Manuel de Homem-Christo nos eram apresentados como robôs. Seres avançados que habitavam uma outra galáxia, hedonista e misteriosa, da qual se suspeitava da existência mas ninguém, além dos próprios, parecia ter acesso à georeferenciação. Um mundo de desejo onde as máquinas tinham pulsação e os humanos inteligência artificial. Onde o desconhecido era parte do real. Um portal de fantasia sem fronteiras entre música, cinema, banda desenhada e consolas.

Eles tinham a capacidade de nos transportar para um patamar de transcendência maior que o corpo, próximo da levitação. Quem esteve no Sudoeste em 2006 — sim, foi numa outra era em que o real e o virtual eram pisos diferentes — não pode não recordar-se da massa de som, da nuvem de ruído e da euforia. Um transe emocional como um íman que nos sugava, lá está, para esse outro nível existencial desafiador da gravidade.

Talvez tivessem perdido o alento. Talvez já não se imaginassem capazes de subir mais um nível. Ou talvez já não se sentissem bem num tempo em que a esfera privada perdeu os limites e é usada para alimentar o espaço público. Provavelmente, nunca saberemos mas essa é a narrativa dos Daft Punk em que o real e o fictício são usados para estimular a dúvida.

O último Random Access Memories foi uma riviera de prazer, foi um acontecimento mas foi também uma pièce de résistance à flacidez do EDM e ao culto do DJ, ou a transmissão do vírus do inchaço pop a uma cultura habitualmente protegida atrás de uma cabine e que comunicava através da música e para a música. Os Daft Punk responderam com uma viagem às avenidas da liberdade percorridas pelo funk e pelo disco, contrariando a sua natureza futura mas não o respeito de sempre pela memória. Porque mais do que um acto único e isolado, eram homenagem e celebração. Cor, luz, alegria.

Por vezes, é nestas alturas que damos conta da importância que a música tem. E agora, na hora da morte, foram e são um pedaço da vida de muita gente, multiplicado por quase 22 milhões de visualizações de um vídeo com quase oito minutos. Os Daft Punk desfizeram o mito mas não se desinstalam do corpo assim. Amor digital eterno.

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