Herdeiros Ideológicos de Karl Marx: Gyorgy Lukács #2

por Diogo Senra Rodeiro,    29 Julho, 2018
Herdeiros Ideológicos de Karl Marx: Gyorgy Lukács #2
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Este artigo surge no âmbito da série de artigos Herdeiros ideológicos de Karl Marx”, que, principalmente no século XX, deram origem a outras teorias que tiveram como base comum o que hoje é conhecido por marxismo. O objetivo desta rubrica é elencar e homenagear a figura de Marx, no ano em que se celebram os 200 anos do seu aniversário, como também os que tentaram expandir a extensão e a compreensão do marxismo.

Gyorgy Lukács (1885 – 1971, Budapeste) foi um filósofo de herança filosófica alemã com uma ênfase única na Estética como disciplina. Húngaro de origem judaica, a sua família era consideravelmente abastada para a realidade do então império Austro-Húngaro. Ainda bastante jovem, como terá confessado numa entrevista nos anos 60, encontrou na biblioteca de seu pai Baudelaire e Nietzsche, onde se terá apercebido da situação decadente da condição humana, que começara na época dos autores e que viria a desembocar no Nazismo.

Lukács viria a tornar-se mais tarde um dos mais notáveis ideólogos do marxismo, tendo inclusivamente vivido na Rússia de Estaline, pese embora algumas discordâncias dadas as divergências do estalinismo vis-à-vis marxismo. O autor defende a sua ideologia pelo que escreveu no prefácio à sua obra Estudos sobre o Realismo Europeu de 1950:

“Marxism searches for the material roots of each phenomenon, regards them in their historical connections and movement, ascertains the laws of such movement and demonstrates their development from root to flower, and in so doing lifts every phenomenon out of a merely emotional, irrational, mystic fog and brings it to the bright light of understanding.”

Adicionalmente, o seu radicalismo ético com influência inicial de Fichte, Kant e mais tarde, Kierkegaard apresentava-se como a sua posição de não-concordância para com o Mundo (aparentemente) liberal que o rodeava, e sobretudo contra o capitalismo. Em Alma e Forma, de 1910, escrito durante a sua estada em Berlim, consegue-se entrever o seu idealismo paradoxal onde as questões colocadas perguntam onde é que a alma poderia encontrar um motivo ou o significado que procurava incessantemente. A única esfera onde pode ser encontrada, para o próprio, verifica-se só na Arte.

Em Heidelberg, no mesmo ano e para onde se mudou, conheceu e privou com Max Weber, o grande sociólogo alemão que nessa época habitava e lecionava no centro cultural da Alemanha. Do mesmo retirou a racionalização da visão económica que o primeiro focou tremendamente no seu trabalho. Com a mesma ideia vinha a imagem de que o mundo económico agora tecnicizado pela revolução industrial (sobretudo o mundo Ocidental) era um mundo sem algo superior – uma visão Nietzschiana do mundo sem Deus – o que levou Lukács e o círculo de Weber a considerar a Rússia e o seu misticismo como deveras atrativos, ainda antes da Revolução Russa; a Rússia de Dostóievski era o que realmente os atraía.

Entretanto, a Primeira Grande Guerra irrompe e nesse período divide-se entre Heidelberg e Budapeste, onde cria um grupo de intelectuais com o sociólogo Karl Manheim, o compositor Béla Balázs e o economista Karl Polanyi – muitos dos grandes intelectuais vindos do Império Austro-Húngaro, mais concretamente da Hungria.

Teve uma passagem breve pela política tendo sido Ministro da Cultura da efémera República Soviética da Hungria (Março – Agosto 1919) e foi, como muitos outros, preso político tendo sido o único a escapar com vida após o apelo de vários intelectuais para a sua libertação entre os quais Heinrich e Thomas Mann. Foi também membro do Partido Comunista da Hungria, ao qual se juntou em 1918.

História, Classe e Consciência (1923)

Marx no seu Capital denunciou o “fetichismo” – commodity fetichism – com que as relações humanas passaram a operar sob o crivo do Capitalismo. Isto significa que cada pessoa na sociedade é vista como uma mercadoria (em inglês commodity) fazendo com que desta forma o sistema se mantenha reproduzível porque os atores da sociedade podem ser comprados – por quem tem mais capital numa sociedade – como também compram, outras mercadorias ou bens materiais, para se manterem dentro do sistema.

É aqui que Lukács vislumbra o problema da alienação do sujeito (para) com o objeto. Já não há uma clara distinção entre qual é qual. Surge por isso o conceito de Reificação, que nunca figurou em nenhuma obra de Marx, mas que o húngaro expandiu nesta que é comummente considerada uma das suas magnum opus e que influenciou muitos dos seus contemporâneos sendo uma peça fundamental do marxismo do século XX. O “taylorismo invadiu a psique” diz o autor, fazendo-se trespassar da vida laboral para a vida societal.

Este fenómeno afeta os atores sociais e a sua consciência, que não conseguem distinguir quantidade de qualidade, porque tudo neste tipo de sociedade se resume a quantidade. A forma como isso acontece é explicada pelo autor:

“The distinction between a worker faced with a particular machine, the entrepreneur faced with a given type of mechanical development, the technologist faced with the state of science and the profitability of its application to technology, is purely quantitative; it does not directly entail any qualitative difference in the structure of consciousness.”
Capítulo Reification and the Consciousness of the Proletariat

É nesta obra que é encetado um dos maiores diálogos com o seu “mestre” e que o Capital é explorado em maior extensão. A utilização dos termos económicos de Marx é aliada a uma lente socio-filosófica da luta marxista do século XX com ajuda de Luxemburgo e Hilferding que analisaram de forma económica a obra de Karl Marx e o capital no início do mesmo século.

A reificação, como por vezes surge em português, tendo embora na sua expressão original Verdinglichung (em alemão, significando literalmente transformar ideias em coisas) o seu verdadeiro significado, é, portanto o processo da objetificação de tudo o que deveria ser na sua génese apenas e só sujeito (na vida humana – o mundo “interno”). O que implica também denunciar os verdadeiros objetos que agora, nesta nova fase da vida sobretudo ocidental, a que atingiu o Capitalismo primeiro, são banalizados e perdem o seu significado (o mundo externo). No seu tom claro e eloquente é possível perceber, de forma cristalina, tanto o conceito que o autor resgatou como o que quis dizer com ele:

“The transformation of the commodity relation into a thing of ‘ghostly objectivity’ cannot therefore content itself with the reduction of all objects for the gratification of human needs to commodities. It stamps its imprint upon the whole consciousness of man; his qualities and abilities are no longer an organic part of his personality, they are things which he can ‘own’ or ‘dispose of’ like the various objects of the external world. And there is no natural form in which human relations can be cast, no way in which man can bring his physical and psychic ‘qualities’ into play without their being subjected increasingly to this reifying process.”
Capítulo Reification and the Consciousness of the Proletariat

Estética e Política

Existe igualmente para o húngaro uma importância permanente no papel fundamental da literatura e cultura em qualquer política revolucionária – como uma relevância para o Marxismo do século XX. É daqui que se gera o conflito estético entre Realismo e Modernismo, que nada mais se pareceu do que a reprodução política contemporânea da Querelle des anciens et des modernes do século XVII na qual pela primeira vez a Estética surgiu cara-a-cara perante os dilemas da historicidade. O modernismo que Lukács “ataca” é o Expressionismo entre escritores da direita alemã dos anos 20 e 30.

Esta é uma denúncia ideológica implacável que em 1934 despoletou debates com Ernst Bloch, Bertolt Brecht, Walter Benjamin e Theodor Adorno sobre não só o Expressionismo nem o tipo ideal de Realismo, mas que se estendeu aos problemas da arte popular, Naturalismo, Realismo socialista, Avant-Gardisme, os media e finalmente Modernismo – político e não-político.

A animosidade geral perante os defensores do Expressionismo face ao levantamento do debate por Lukács viram-se levados a defender a teoria artística. A sua denúncia (de Lukács) advém de alegadas ligações entre o Expressionismo e a Social-Democracia (em particular o alemão USPD) – para não falar de possíveis ligações com o Fascismo, que repudiava veementemente.

Aliado a isto, uma das suas contribuições fundamentais foi a sua Teoria de Mediações (Theory of Mediations) que podia revelar o conteúdo politico-ideológico do que até a um certo momento parecia ser um fenómeno puramente estético. Esta linha de pesquisa é uma crítica e um repudiamento implícito da análise de conteúdo tradicional – o que levou Bertolt Brecht a chamar este método de formalista – o que significava que o mesmo tinha uma confiança “não atribuída” que o permitia deduzir posições politico-ideológicas pelos aspetos formais de uma obra de arte.

Por outro lado, esta Teoria pode ser entendida como precursora do mais relevante trabalho em análise ideológica dos dias de hoje, que assimilando as descobertas de psicanálise e semiótica tentam construir um modelo de texto como um complexo e simbólico ato ideológico.

Um outro conceito central no seu trabalho é o de “decadência” que por vezes associa com o Fascismo embora mais com a arte moderna e literatura em geral; é o equivalente no reino estético de “falsa consciência” – ambos os termos sustêm a suposição comum de que no mundo de cultura e na sociedade algo como puro erro é impossível. Por outras palavras, isto implica que as obras de arte ou os sistemas de filosofia que são construídas “sem conteúdo” devem ser denunciadas por falharem a missão de se focarem em assuntos sérios da atualidade ou até mesmo distraindo-nos deles.

O seu criticismo é muito orientado por género e comprometido com a mediação entre várias formas de discurso literário. O realismo “Lukacsiano” pode ser analisado como uma abordagem sociológica da literatura, o que pode ser antagonista aos mais recentes métodos de construção do texto narrativo com um texto-livre de significadores (signifiers). Mas para perceber melhor o autor nada como analisar algumas das suas contribuições neste campo.

Teoria do Romance (1920)

O primeiro esboço da sua análise de teoria literária foi a Teoria de Romance tendo esta sido escrita no decorrer da primeira Grande Guerra (entre o verão de 1914 e o inverno de 1915), sendo publicada em 1920 em forma de livro. No seu principal trabalho pré-marxista, a pergunta principal colocada pelo autor foi, “quem nos irá salvar da civilização ocidental?”, uma vez que a possibilidade da vitória alemã estava bem presente nessa fase da guerra – logo, o livro foi desenhado com um sentimento de desespero constante, mesmo tendo o seu plano inicial (como a vitória alemã) sido outro.

Lukács buscava uma dialética geral de géneros literários que fosse baseada na natureza essencial das categorias estéticas e formas literárias, ao mesmo tempo aspirando a uma maior conexão íntima entre categoria e história sendo esta uma influência de Hegel.

Foi no processo de transição pessoal de Kant para Hegel e sem deixar de parte a escola de “ciências intelectuais” que conheceu pela mão de Wilhelm Dilthey, Georg Simmel e Max Weber (membros da Nova Escola Histórica alemã – German Historical School) que tanto o fascinavam, esta obra é um produto típico desta tradição. Isto significa que a mesma não aborda a forma pela qual podem ser ultrapassadas as suas limitações metodológicas porque essa mesma escola se baseava na filosofia kantiana e não era hegeliana como o seu autor, explica no prefácio à obra. Este foi o primeiro trabalho desta tradição que utilizou descobertas da filosofia hegeliana em problemas estéticos.

“We failed to see that the new method had in fact scarcely succeeded in surmounting positivism, or that its syntheses were without objective foundation. (At that time it escaped the notice of the younger among us that men of talent were arriving at their genuinely sound conclusions in spite of the method rather than by means of it). It became the fashion to form general synthetic concepts on the basis of only a few characteristics – in most cases only intuitively grasped – of a school, a period, etc., then to proceed by deduction from these generalizations to the analysis of individual phenomena, and in that way to arrive at what we claimed to be a comprehensive overall view.”
Prefácio pelo autor da Teoria de Romance, 1962

Através de Dostóievski e das obras Irmãos Karamazov Crime e Castigo, Lukács acredita que ali podem estar possíveis sinais para a redenção da época de “total degradação” sendo que para o mesmo, o russo “não escreveu romances”; lê-lo foi como encontrar um novo mundo no Mundo.

Contudo, a obra não é inteiramente hegeliana sendo os ensaios sobre Goethe e Schiller as exceções, a par da introdução de teorias estéticas de Friedrich Schlegel (defensor do Romantismo e filósofo do século XVIII/XIX) e Karl Solger (teórico do Romantismo e professor de filosofia na Universidade de Berlim) onde ambos se concentraram no papel da ironia como método moderno de atribuição de forma. Onde a obra não escapa ao hegelianismo vê-se na sua busca pela totalidade nos géneros épicos e dramáticos bem como pela lente histórico-filosófica do que o épico e o romance têm de comum ou de diferente.

No próprio Hegel a arte, ou como o próprio definiu “o mundo da prosa” é um mundo onde o espírito (em alemão Geist) atingiu-se a si próprio em termos de praxis (a prática em oposição à teoria) social e do pensamento. Assim a arte torna-se problemática precisamente porque a realidade se tornou não-problemática. A ideia desta obra, contudo, é a inversa, os problemas do Romance formam uma imagem-espelho desencaixada do mundo. Este é um sintoma de que a “prosa” da vida já não constituía mais um terreno fértil para a arte.

“(…) that is why the central problem of the novel is the fact that art has to write off the closed and total forms which stem from a rounded totality of being – that art has nothing more to do with any world of forms that is imminently complete in itself.”
Prefácio pelo autor da Teoria de Romance, 1962

Estudos sobre o realismo europeu (1950)

O seu enfoque no realismo, como já visto anteriormente, deriva das grandes obras do século XIX onde nesta obra são devidamente analisadas. Para o efeito são explorados ao longo de oito capítulos Balzac, Stendhal, Zola e Tolstói, com temas que tocam na “comédia humana”, o desenvolvimento do próprio realismo e uma visão holística da literatura europeia ocidental.

Qual dos dois foi o maior romancista do século antes do dele, Flaubert ou Balzac pergunta Lukács no prefácio do livro; a resposta não poderá surgir através do gosto pessoal de cada um mas dos problemas centrais da estética do romance como uma forma de arte, defende. Uma obra deste tipo surge pois entre o misto, ou a separação dos mundos interno e externo? Uma hipótese como a outra apresentam-se como a base da grandeza de qualquer obra.

O realismo, portanto, não é uma conexão entre a falsa objetividade e falsa subjetividade mas é a solução que se opõe a todos os “pseudo-dilemas” gerados pelas questões erradamente colocadas por aqueles que tentam interpretar – escritores e leitores coevos ao autor –  as obras daquele século. A característica central do romance tem a sua origem na síntese “peculiar” como lhe chama Lukács entre o geral e o particular quer nas situações quer nos personagens das obras. Esteticamente, o central problema do realismo é a apresentação adequada da personalidade humana completa.

“But as in every profound philosophy of art, here, too, the consistent following-up to the end of the aesthetic viewpoint leads us beyond pure aesthetics: for art, precisely if taken in its most perfect purity, is saturated with social and moral humanistic problems.”
Prefácio da obra pelo autor, 1948

Por isto mesmo, na sua época, são muitos os desejos de ter uma literatura com tal nível de penetração na education sentimentale (Flaubert) da vida. Para ele, uma grande literatura realista poderia desempenhar esse papel que lhe foi sempre negado –  o de renascer as nações, com a sempre implícita dificuldade de fazer chegar este tipo de pensamento reacionário às massas, para que possam ver claramente. É nesta obra então que se pode vislumbrar a importância que tem para o húngaro a responsabilidade, cada vez mais cabal, depositada nos homens das Letras (com L grande) de entenderem não só a complexidade social e política dos tempos que correm, mas também a natureza literária dos problemas da sua atualidade.

Já no livro “O romance histórico” de 1937, escrito em russo e editado em Moscovo, a sua examinação teórica da interação entre o espírito histórico e os grandes géneros da literatura burguesa tinham como objetivo descrever a totalidade histórica, sendo que não houve uma atenção especial dada a história cronológica, mas sim às obras que eram representativas do desenvolvimento deste género em particular.

O húngaro, porém, nunca se conteve na denúncia também da Escola crítica de Frankfurt como dos seus membros, que viviam no confortável “Grand Hotel Abyss” enquanto criticavam a máquina do capitalismo e da civilização do espetáculo que então à época começava sem exercerem qualquer tipo de ação (praxis, lá está) perante os mesmos. Este facto levou a algumas belicosas disputas ideológicas contra os seus membros que agitaram a vida intelectual, sobretudo alemã, no século XX. Alguns destes pensadores serão também alvos desta rúbrica, embora tenham abraçado outras contribuições do marxismo, enquanto que Lukács foi à origem Hegeliana de Marx, ou se quisermos, pré-marxismo. O mesmo diz o seguinte sobre os intelectuais de Frankfurt:

“A considerable part of the leading German intelligentsia, including Adorno, have taken up residence in the ‘Grand Hotel Abyss’ which I described in connection with my critique of Schopenhauer as ‘a beautiful hotel, equipped with every comfort, on the edge of an abyss, of nothingness, of absurdity. And the daily contemplation of the abyss between excellent meals or artistic entertainments can only heighten the enjoyment of the subtle comforts offered.”
Die Zerstörung der Vernunft, Neuwied 1962, p. 219

Estamos, portanto, na presença de um sujeito polémico, com uma profusão de ideias (e de trabalhos!) como influências que absorveram literatura, sociologia, economia e filosofia de muitas mentes, das mais destacadas na sua época. Acima de tudo, é com Gyorgy Lukács que conseguimos apreender o valor do crescimento de um indivíduo conseguindo perceber que a transmutação intelectual pode e deve ser uma constante ao longo da vida.

Muitas das vezes a pergunta “é o tempo no qual vive que influencia o homem ou é homem que influencia o tempo em que vive?” surge sempre que se tenta olhar nos olhos um autor que já não habita entre nós; porém, são muitos poucos os casos hoje em dia de “querelles intelectuelles” aflorem elas o tema que aflorem. A combatividade do refúgio na cultura e na arte não pode ser feita de uma forma estática e sem desafiar o status quo algo que certamente Lukács desafiou. Só assim poderemos compreender a História duma forma mais holística e, de um modo particular, alterá-la.

“(…) a writer’s relation to history is not something special and isolated, it is an important component of his relation to the whole of reality, and especially society.”
A Novela Histórica, 1937

 

 

 

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