Hayao Miyazaki, da fantasia à realidade

por Lucas Brandão,    4 Janeiro, 2017
Hayao Miyazaki, da fantasia à realidade
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Hayao Miyazaki tornou-se um cineasta imprescindível naquilo que mostramos aos nossos miúdos em tempos nos quais as máquinas e as tecnologias dominam todas as atenções. Um cinema que, não obstante as mensagens realistas, abrange uma fantasia que leva a sonhar com o melhor da realidade. Protagonistas caraterizadas e emancipadas em busca de se superarem a antagonistas mais intrigantes e intriguistas mas com a sua redenção à vista. Tudo isto numa simbiose colorida e mágica que nos leva a consagrar o expoente da vida. Miyazaki e o seu Studio Ghibli tornaram-se, assim, referências marcantes na vida da sétima arte, abarcando cada vez mais adeptos de diversas faixas etárias e com o sonho à flor da pele. A animação deixou de ter idade, passando a fazer parte de todos nós. Muito deste feito deve-se aos contos e fábulas da autoria deste japonês.

Hayao Miyazaki nasceu a 5 de janeiro de 1941 em Bunkyo, subdistrito de Tóquio, no Japão, em vésperas da entrada do seu país na Segunda Guerra Mundial. O seu pai trabalhava numa fábrica de aviões, propriedade do seu tio, denominada Miyazaki Planes. O contacto indireto que teve, desta forma, com o conflito bélico acender-lhe-ia a sua parte mais pacifista e moralista diante da existência da guerra. A sua mãe, mulher reservada e inteligente, tornou-se a inspiração para, entre outras personagens femininas, a protagonista de “Castle in the Sky” (1986). A guerra forçou também a uma atitude mais nómada, tendo a família vivido em várias cidades do país. No período escolar de Miyazaki, a sua mãe foi vítima de uma tuberculose espinal, que a acamou durante nove anos.

Num período bastante complicado da vida do jovem, este não seria esquecido na sua carreira cinematográfica, com “My Neighbor Totoro” (1988) a expressar parte das dores sentidas durante esta fase. Todas estas referências acabam por fazer do cineasta alguém com um cariz algo autobiográfico nos seus empreendimentos na sétima arte. No entanto, a sua paixão pelo cinema só despertaria em 1958, no seu último ano em Toyotama High, escola secundária que frequentou. Ao assistir a “Panda and the Magic Serpent” (1958), de Taiji Yabushita, o japonês sentiu o seu coração palpitar pela animação cinematográfica. Foi aí que, em paralelo com o ingresso em Ciências Políticas e Economia na Universidade Gakushuin, deu forma à sua imaginação, com desenho de aviões e de aeronaves que havia visto na empresa da sua família. Durante o tempo académico, frequentou um clube de pesquisa de literatura infantil e, com a inspiração consumada, consegue um emprego na Toei Animation, produtora responsável pelo primeiro filme de animação que viu.

Em 1963, um ano depois de garantir o seu trabalho e com três meses de treino, teve o primeiro contacto direto com a animação cinematográfica e trabalhou em “Doggie March” (1963), de Akira Daikubara. O protagonismo que começou a conquistar em várias colaborações em séries e filmes, para além de desburocratizar algumas questões mais formais da produtora, permitiu-lhe auferir um salário mais avultado. Em 1964, e com somente dois anos de casa, tornou-se secretário-chefe do sindicato da firma e tornou-se amigo do também futuro realizador Isao Takahata, para além de conhecer a sua cônjuge e também animadora Akemi Ota. “Prince of the Sun” (1968) tornou-se no primeiro grande trabalho com a autoria de Miyazaki (como animador) e de Takahata (como realizador) e deu o mote para que a dupla se desvinculasse da Toei Animation. Antes, Miyazaki e Ota tiveram os seus dois únicos filhos e Hayao tornou-se no animador principal de um outro filme, sendo este “The Wonderful World of Puss ‘n Boots” (1969).

Em 1971, o japonês junta-se à produtora A-Pro, na qual estava Isao Takahata, e dedica-se a viajar pelo país e pelo mundo para estudar cenários futuros de projetos seus e para adquirir direitos de reprodução de obras literárias. Dois anos depois, e ao lado do amigo em comum Yoichi Otabe, Miyazaki e Takahata entraram na Zuiyo Pictures. Durante este período, Hayao conheceu a Suíça para se inspirar no desenvolvimento do anime prestigiado de “Heidi” (1974) e viajou a Itália e Argentina de forma a corporizar “Marco” (1976), outro anime de elevada repercussão mundial. No entanto, só em 1978 é que Miyazaki trabalhou de forma independente, desvinculando-se da tutela de Takahata e produzindo o anime de “Future Boy Conan“. Já na produtora Tokyo Movie, e em 1979, o realizador dirigiu uma adaptação de um manga em “The Castle of Cagliostro“, no qual aborda a história de um ladrão de um casino, de nome Arsène Lupin III, que tenta salvar uma rapariga condenada a um casamento forçado. O trabalho daria origem às diferentes séries com esta personagem como protagonista.

Nos anos 80, Hayao dedicou-se à escrita e desenho de mangas, dando forma e figura em livro e em cinema a “Nausicaä of the Valley of the Wind” (filme de 1984). Este manga seria escrito durante doze anos, terminando-o somente em 1994. Tanto o gosto pela aviação como a ecologia foram temáticas abrangidas neste projeto de enorme sucesso, contando com a produção do seu amigo Isao Takahata e com a animação da produtora Topcraft. Na base, está a tentativa de uma princesa salvar o seu povo de uma catástrofe ambiental de obra humana de grande escala. O proveito financeiro que proveio deste êxito permitiu a Miyazaki e a Takahata criarem a sua própria produtora, de nome Studio Ghibli, em 1985, no bairro de Suginami, em Tóquio. Consigo, levaria o compositor Joe Hisaishi, que o acompanharia em praticamente toda a sua cinematografia e faria das bandas sonoras dos filmes absolutamente icónicas.

Todo este sucesso não escondeu a dor sentida por Hayao na morte da sua mãe, aos 71 anos, em 1983. Desde essa ocasião, o único enfoque da carreira do cineasta tornou-se somente em redigir e dirigir filmes. Contava o asiático com 45 anos quando deu à luz “Castle in the Sky” (1986), no qual deu uma nova vida à sua progenitora, que se perde numa pequena cidade após cair de uma nave na qual estava raptada. Aqui, a superioridade tecnológica colocada ao serviço das forças políticas é assinalada a partir do castelo no céu, para além das influências medievais e rústicas na própria arquitetura espacial dos locais do filme.

O seu sucessor seria “My Neighbor Totoro” (1988), onde duas jovens mudam de casa com o seu pai para estar mais perto da sua mãe, em recuperação num hospital. O bosque das redondezas desta habitação está recheado de fauna e flora e, entre estas, algumas criaturas mágicas. Daí provém a figura mítica de Totoro, um dos principais rostos da produtora de Miyazaki. Até 1995, o cineasta lançaria “Kiki’s Delivery Service” (1989), “Porco Rosso” (1992) e o videoclip “On Your Mark” (1995). Enquanto o primeiro personifica uma pequena bruxa que usa a sua capacidade para voar como forma de se sustentar e aborda a independência das adolescentes japonesas, o segundo aborda um piloto italiano dos anos 1920 com caraterísticas antropomórficas, tendo um rosto de porco e um corpo humano. Já o terceiro é um vídeo escrito e realizado para a dupla de artistas Chage & Aska, funcionando como um vídeo enigmático e subterrâneo que atua também como uma forma de desbloquear o seu ímpeto criativo.

Em 1996, e já com um vasto repertório artístico, Hayao Miyazaki assinou um protocolo bastante rentável com a Disney, atenta aos crescentes investimentos em animes e mangas orientais. Assim, esta garantiu os direitos de distribuição de filmes e selou um acordo que se designaria por Disney-Tokuma, assinando-o com a Studio Ghibli. Em 1997, mais um projeto de grandes dimensões do cineasta e novamente com a ecologia como pano de fundo conceptual. Em “Princess Mononoke“, uma princesa criada por uma tribo de lobos deseja descarregar toda a sua fúria perante os humanos, estes que querem destruir a floresta para seu próprio proveito. Pelo meio, espécies em extinção e uma maldição que ganha extensão no lado destrutivo da humanidade. A repercussão nacional e internacional seria imediata, tratando-se do maior êxito japonês em termos de bilheteira até à data e de um projeto bastante aclamado em festivais da sétima arte.

No entanto, e após declarar a sua retirada do ativo, Miyazaki não resistiu em regressar para o trabalho que lhe garantiria em definitivo um lugar nos principais rostos da animação cinematográfica. “Spirited Away” (ou “A Viagem de Chihiro“, realizado em 2001) conquistou o Óscar de Melhor Animação em 2003, com o enredo a protagonizar uma menina de dez anos que se perde numa povoação abandonada e recheada de feitiços maléficos. A missão da jovem passa por quebrar o que assolou os seus pais, que se transformaram em porcos. O filme acaba por ter um paralelismo acentuado com a história de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, numa viagem pelo reino dos espíritos e para além das fronteiras padronizadas pela sociedade. Para além, trata-se de um retrato crítico e satírico relativo à sociedade nipónica, com o objetivo a passar pela revitalização dos valores espirituais e sociais.

Os três trabalhos mais recentes do realizador consolidaram o legado desenhado e animado por Miyazaki. O primeiro deles foi “Howl’s Moving Castle” (“O Castelo Andante”, de 2004), adaptado do livro homónimo da inglesa Diana Wynne Jones, em que uma jovem se transforma em idosa após uma maldição efetuada por uma bruxa, impregnada por inveja da beleza da rapariga. Esta, libertando um espantalho enquanto tentava procurar uma solução para o seu destino, encontra um castelo andante, no qual descobre o seu refúgio. Trata-se de mais um projeto onde a questão tecnológica ao serviço da política e da guerra é dissecada, trazendo um caráter anti-bélico profundamente assinalado. Para além disso, assinala também a necessidade da compaixão e da afirmação feminina, assim como o crescimento da idade como motivo para a conquista de uma liberdade despreocupada e desenfreada. Trata-se, assim, de um dos filmes que reclama com maior minúcia a identidade criativa do japonês Hayao Miyazaki.

Com alguma semelhança nos assuntos abordados, o nipónico trouxe ao grande ecrã “Ponyo” (2008), uma princesa em forma de peixe-dourado que deseja tornar-se humana. Influenciado por “A Pequena Sereia“, do dinamarquês Hans Christian Andersen, torna-se novamente infundido num misto de magia com crítica às eventuais forças de oposição que impossibilitam o desenvolvimento autónomo e livre dos mais jovens, alimentando os seus sonhos. O último filme de Miyazaki antes da sua reforma oficial foi lançado em 2013 e traçou um retrato biográfico de um desenhador de aviões de nome Jiro Hirokoshi, embora sem qualquer referência factual no filme. “The Wind Rises” reporta, assim, a um designer que foi o responsável por conceber dois aviões de guerra usados pelo império japonês durante a Segunda Guerra Mundial. O filme traz à tona mais questões sobre a tecnologia em plena guerra e na articulação política, tornando subtil uma crítica que se prolifera por todo o seu trabalho e que nunca o abandona em toda a sua vida.

Dez anos depois, em 2023, o último dos seus momentos cinematográficos chegou aos grandes ecrãs: “The Boy and The Heron”, inspirado num conto redigido por Genzaburo Yoshino em 1937 (obra que é diretamente referenciada no filme). De novo o fantástico e o mitológico asseguram um lugar privilegiado no enredo, com um rapaz, de seu nome Mahito, a ser transportado para um mundo alternativo através de uma torre abandonada. Aqui, faz amizade com uma garça falante, que já o observava desde que o rapaz havia perdido a mãe num incêndio em plena Guerra do Pacífico, na Segunda Guerra Mundial. O ano de 1943 em que se passa o filme vai de encontro à própria biografia do cineasta, dado que Miyazaki também tinha fugido com a sua família da guerra, sendo que o seu pai era, de igual modo, funcionário de uma empresa de componentes de aviões. De novo, a criança com a missão de salvar o mundo com mensagens de paz, de otimismo e de superação das gerações passadas.

Como corpo de influências do seu trabalho, o cineasta conta com várias histórias ilustradas que leu em pequeno, em especial mangas Tankobons (volumes independentes). Toda a apresentação das narrativas e dos desenhos o motivaram a envolver-se na descrição e criação de histórias. Algumas das que lhe inspiraram mais foram “Boy King“, de Soji Yamakawa; “Evil Lord of the Desert“, de Tetsuji Fukushima; e os diversos escritos e desenhos de Sanpei Shirato (criador de “Kamui“) e de Osamu Tezuka (autor de “Astro Boy“). Detalhes da mitologia japonesa, assim como da sua história imperial, contaram como premissas do seu trabalho, para além dos filmes do seu compatriota Akira Kurosawa no tratado visual dessa complexa e metafísica história. Autores ocidentais também constaram neste vasto e repleto corpo, com Ursula K. Le Guin a constar pela amplitude de assuntos sociais analisados e Jean Giraud (conhecido pelo pseudónimo Moebius) pela sua versatilidade nos cartoons e bandas-desenhadas da sua autoria. Para além destes, também o passado como aviador de Antoine de Saint-Exupéry e as consequências que teria na sua obra foram fulcrais no seu trabalho, assim como a paixão aviadora de Roald Dahl. 

Autor e realizador de grande êxito, Hayao Miyazaki nunca prescindiu de se dedicar a todos os detalhes dos seus projetos. Desde as adaptações a serem feitas até à conceção animada das suas ideias e dos seus intentos, tanto numa perspetiva de animador como de guionista. Com desenhos bastante realistas e aproximados da figuração humana, tanto imaginada como confirmada, o japonês deu cor e significado a tudo aquilo que lhe apoquentou o espírito. As visões do mundo que dominam todo o seu trabalho ultrapassam quaisquer polaridades de bem e de mal, procurando um além alcançado por poucos e esquecido por muitos. As heroínas dos seus filmes reforçaram o caráter perseverante e sensível da mulher, astuta e perspicaz por natureza e por experiência que as circunstâncias geram, para além da valorização da pureza e do caráter destemido e sonhador da criança. Hayao Miyazaki conferiu, desta forma personalizada e avalizada, uma perspetiva avolumada em sucesso e em significado moral e ético, incluindo os prós e contras da humanidade. Pelo meio, uma esperança acesa na magia que sempre empreendeu. Uma esperança que nunca se apaga, por mais que se produza e se visite a obra deixada pelo japonês. Uma esperança de que regresse ao ativo mas que, em essência, nunca nos esqueçamos dos predicados do seu trabalho. A maldição da adensada guerra revertida na bênção da redimensionada terra.

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