Haja saúde que o resto a malta arranja

por Cronista convidado,    16 Abril, 2020
Haja saúde que o resto a malta arranja
Pedro Trigueiro / Fotografia de Joana Linda
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Os ensaios e reflexões sobre presente e futuro sucedem-se e nas mais variadas tendências. E todos eles são certamente necessários e pertinentes. Que futuro, que próximo passo, o que acontece com as nossas vidas, como ficam os nossos empregos, qual o conforto que nos espera, como fica o “normal”? Os debates, as antevisões sobre economia, sobre macro e micro, sobre fronteiras, máscaras, aviões e recibos verdes. É atirar lenha para dentro de um vulcão.

Entre prioridades, e fazendo zoom ao nosso retângulo à beira-mar plantado, a palavra cultura só foi pronunciada 15 dias após decretado o estado de sítio. O até então desaparecido Presidente da República e o Primeiro-ministro não priorizaram a cultura durante a primeira quinzena desta pancada que nos meteu em casa. E por cultura entenda-se todas as disciplinas das artes performativas. Todos, mesmo os mais lesados, tiveram o discernimento de perceber que a saúde estaria primeiro. E parafraseando o meu querido Regula: “haja saúde que o resto a malta arranja”, ou seja, inequívoca prioridade à saúde e já tratamos do “resto”.

Dentro do espectro cultural surge uma imponente indústria do entretenimento. Essa foi a primeira a fechar portas e eventualmente será a última a reabrir. Dos teatros aos bares, das salas menores às de grande dimensão, dos ensaios de companhias de teatro, com festivais e eventos pelo meio.

Esta dita “indústria do entretenimento” é uma indústria que movimenta milhões, que convive no epicentro do turismo, que não se refere apenas aos festivais de verão. É também o turismo que busca a quinta-feira no BLeza, uma sexta-feira de curadoria garantida no Lux Frágil, ou mesmo uma tarde inesquecível no Park a caminho de uma esbórnia memorável na noite do Cais do Sodré de um sábado. É o turismo de uma oferta diferenciada no contexto europeu e com ambições de diferenciação mundiais. Mas não é só pela indústria dos serviços que se tolda a visão macroeconómica e trituradora dos números. É igualmente pela indústria criativa portuguesa.

É o país que sente o estalo. São os agitadores culturais de Matosinhos, Aveiro, Braga, Loulé, Castelo Branco, Guimarães, Ílhavo, Faro, e tantos outros com projetos ambiciosos de  dinamização, criação de pólos, residências artísticas e palcos disponíveis. Mas é também a Feira da Pêra ou do Marisco que movimentam milhares, e que já não acontecerão em Julho nem em Agosto e não farão sentido no mês de Setembro. Só em 2021. Porque até ao verão de 2021 não há “tour de teatros” ou “só voz e viola”. Até lá está tudo ao monte. Ou a monte. Parece que a cultura só fará sentido de Setembro de 2021 em diante.

Com todas estas lambadas fortes de um vírus austero, é a economia do roadie que desmorona, são os técnicos que se viram forçados a criar empresa e que não têm resolvida a situação de sócio-gerente. Leva pancada o agente, o assessor, a produção dos eventos, o catering, o segurança, a equipa de limpeza, o staff dos bares, a empresa de som, luz e vídeo. Junta-se gente e mais gente, de centenas passam a milhares de pessoas, que com o passar dos dias – que mais parecem semanas – se questionam: então e agora?

Novas ferramentas já estão a surgir todos os dias, com testes e questionamentos. Estão os criativos em condições de gerar obras com filhos menores a passar-lhes à frente de 5 em 5 segundos? E como nos vamos divertir? Agarramo-nos aos pulos com aquele beat ou somos cuidadosos e guardamos um metro de distância naquele brinde de medronho? Que música queremos ouvir e como e onde queremos ouvir? Se é o live do Instagram que salva numa primeira instância, se é o aprimoramento de como trabalhar melhor o YouTube ou o Spotify, se o Boiler Room terá sido uma luzinha lá atrás que poderá a voltar acender-se em dimensões diferentes, sabemos lá nós. Em contraponto, temos mais é que saber porque é o que se espera de quem trabalha na área do entretenimento: entretenham-nos.

Em termos filosóficos é um momento transformador, em que o humano tem de se agigantar perante a adversidade inesperada. E curioso é que por muito sci-fi que exista, por muito código binário, por muita resposta que possamos ouvir “não posso fazer nada, é o algoritmo”, parece que, mesmo muito fragilizado, é o humano que tem o descodificador para o próximo passo. Só dependerá dele mesmo essa próxima dança. Uma espécie de reinvenção do humano.

Texto escrito por Pedro Trigueiro
Management, agenciamento, produtor executivo de álbuns, produção, label manager, jornalista, entre outros pontos, todos fazem parte da trajectória de Pedro Trigueiro. Licenciado em Ciências da Comunicação e da Cultura, conta com passagens em áreas tão diversas como Rocksound (jornalismo) ou Universal Music Portugal (label manager e promoção). Trabalhou e trabalha ainda a gestão de carreira de artistas tão diferentes como Buraka Som Sistema, Mallu Magalhães e Regula, Pedro Trigueiro marca também presença em produção executiva em vários álbuns valendo-lhe já nomeação para Grammy Latino (Banda do Mar) bem como Prémio de Melhor Álbum do Ano para a Sociedade Portuguesa de Autores, com “Menina”, de Cristina Branco. Assume produção, booking e consulting em festivais como EDP Cool Jazz Festival, Matosinhos em Jazz, ID No Limits e programação Novas Quintas (Teatro Aveirense). É curador do palco Coreto Arruada (NOS Alive). Fundador da agência Arruada.

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