‘Hacksaw Ridge’, o espetacular resumido ao razoável

por João Estróia Vieira,    5 Dezembro, 2016
‘Hacksaw Ridge’, o espetacular resumido ao razoável
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Vendido como a “redenção” do infame Mel Gibson (realizador de Braveheart) perante o público e Hollywood, Hacksaw Ridge falha em justificar o hype gerado por grande parte da crítica estrangeira que parece desejosa que levar o filme aos Óscares. Se Hollywood adora a típica história do “american hero” (como é reveladora a nomeação ao Óscar de American Sniper, muito recentemente), ainda assim parece difícil que Hacksaw Ridge seja digno de, pelo menos, vencer em alguma das principais categorias. Quanto a ser nomeado, é difícil fazer projecções, mas certamente que não faltarão melhores alternativas a este filme que, ao contrário do falado, fica muito longe da qualidade de títulos históricos como Full Metal Jacket, Saving Private Ryan, The Thin Red Line, Patton, Platoon, Paths of Glory, The Longest Day ou até The Dirty Dozen (e a lista podia continuar facilmente).

No entanto, nem tudo é mau neste Hacksaw Ridge. Mel Gibson, fiel a si próprio traz-nos cenas de acção dignas de redobrada atenção, que entram para algumas das mais entusiasmantes gravadas em war movies nos últimos muitos anos. Gloriosas sequências em slow motion, corpos utilizados como escudos e efeitos realistas de retratos apocalípticos (não é uma referência à antiga obra de Mel Gibson, Apocalypto) de um campo de guerra, salvam o filme daquele que poderia ter sido um resultado final bem menos conseguido.

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Mas comecemos pelo início. Hacksaw Ridge traz-nos a história verídica de um pacifista, um objector de consciência que insistiu em se alistar no exército americano durante a II Guerra Mundial. Desmond Doss (interpretado por Andrew Garfield) de seu nome, viria a ganhar posteriormente a Medalha de Honra por salvar dezenas de vidas na batalha de Okinawa, no Japão.

A primeira metade de filme centra-se quase na sua totalidade na história de amor de Desmond Doss por Dorothy Schutte (Teresa Palmer). A mesma é-nos dada como se tivesse saído de um filme baseado num qualquer romance de Nicholas Sparks, faltando-lhe alma e capacidade de storytelling numa paixão que não nos conquista a nós. Por oposição, sente-se posteriormente mais sinceridade na relação de Desmond com o seu companheiro Smitty (Luke Bracey) em duas ou três interacções, que entre Desmond e a sua própria noiva. É unicamente nos momentos com o pai (um veterano de guerra interpretado por Hugo Weaving) e mãe (interpretada por Rachel Griffiths) que o filme ganha alguma dimensão psicológica e demonstra porque é alvo de elogios.

É no campo de treinos, quando Doss se alista no exército, que passamos a conhecer as suas convicções pacifistas. É também por causa delas que o mesmo será alvo de cerrada pressão por parte dos seus colegas de exército e das mais altas patentes (onde se inclui um carismático Vince Vaughn como Sargento). São algumas das cenas aqui passadas, mais exactamente numa onde Doss é preso, que sentimos a dúvida e uma espécie de luta interior do protagonista. Nada que dure tempo suficiente, ainda assim.

A posterior presença de Desmond Doss no campo de batalha em Okinawa passa a ser não mais que um pretexto para a exploração da violência por parte de Mel Gibson de forma denotar as assimetrias entre a conduta de Doss e o horror em guerra.

Mel Gibson, realizador de The Passion of the Christ, usa a fé de Doss como pretexto para uma demonstração de prepotência da sua parte. Há uma desvalorização patente e constante do lado mais humano de Desmond Doss que nos é dado como se nunca tivesse dúvidas sobre os seus actos, como se agisse sempre com certezas de ser a única e mais correcta forma de o fazer. Essa superioridade moral, se construída de forma correcta poderia, porventura, ser mais facilmente aceite, ao ser dada como verdade incontestável denota uma sobranceria desnecessária e criticável.

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Num filme que só existe devido à fibra moral do protagonista e à sua capacidade de se manter fiel aos seus ideais sob qualquer circunstância, não existe um questionamento, por momentâneo que seja, ou um colocar em causa aquilo que defende mesmo estando no meio do terror de uma troca de tiros e rodeado de corpos de companheiros seus. Indiferente a tudo isso, Desmond Doss é mostrado quase como se de um “estafeta” se tratasse, correndo de um lado para o outro descobrindo e socorrendo os seus colegas sobreviventes e pouco mais. Por mais que Andrew Garfield tenha feito um bom trabalho em tentar dar um lado humano à história do homem que interpreta (conseguindo-o, efectivamente, em alguns momentos), este é completamente desumanizado pelo apetite voraz de Mel Gibson pela violência que roubou toda a atenção do realizador, assim como a cegueira e obstinação em propagar a sua fé como verdade absoluta.

Mel Gibson não conseguiu fazer jus ao herói que quis retratar e reflecte uma inaptidão para traduzir em palavras e imagens a densidade que se lhe exigia ter. A história de Desmond Doss parece assim ter sido usada como pretexto de narrativa perfeito para dar aso ao habitual espectáculo de carnificina adorado pelo realizador, que ignora assim o código moral do seu próprio protagonista para nos trazer a violência que o mesmo condena. E é por isso que conscientemente nos objectamos a este Hacksaw Ridge. No entanto, fica a curiosidade de saber como teria resultado esta mesma história se tivesse sido realizada por alguém como Clint Eastwood, por exemplo.

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