Hacker, hacktivista ou whistleblower? O caso Rui Pinto

por Cronista convidado,    14 Novembro, 2020
Hacker, hacktivista ou whistleblower? O caso Rui Pinto
Fotografia via Twitter/@RuiPinto_FL
PUB

Os fenómenos do hacking, hacktivismo e whistleblowing suscitam interesse e curiosidade no público, ao mesmo tempo que criam dificuldades no sistema de justiça criminal. O caso de Rui Pinto, acusado de 90 crimes, nomeadamente 68 de acesso indevido, 14 de violação de correspondência, 6 de acesso ilegítimo, um de sabotagem informática e um de tentativa de extorsão, reavivou este debate. De forma a entender se Rui Pinto se pode enquadrar nos fenómenos do hacking, hacktivismo ou whistleblowing, é importante conhecê-los melhor.

Hacking

O termo hack é definido como a realização de uma fraude de programação e é visto pelos seus praticantes como uma forma de utilizar a tecnologia de forma original e criativa, apesar de estar ultimamente associado à invasão de sistemas informáticos [1]. De facto, esta prática é crime em vários países, sendo alvo de punições severas [2]. Ainda assim, o hacking é visto pelo público como um fenómeno fascinante e atrativo, pelo que os hackers são, muitas vezes, considerados visionários e heróis da revolução informática [2, 3].

Originalmente, estes seguiam uma “ética hacker”, a qual defende, entre outros pontos, que toda a informação deve ser livre, o Estado deve ser descentralizado, os hackers devem ser julgados apenas pela sua atividade, o hacking é a criação de arte e beleza num computador, e que esta atividade deve levar à melhoria das condições de vida [4].

No entanto, o seu grande princípio é que a informação não deve ser guardada e acumulada por aqueles que detêm o poder, mas sim partilhada com o público [5], especialmente quando esta lhe diz diretamente respeito. Contudo, esta visão “ética” dificultou-se devido à interpretação pejorativa feita pelos media e políticos da palavra hacking. Como tal, o hacker começou a ser visto como alguém que invade maliciosamente o computador de outra pessoa com o intuito de causar danos ou prejuízos [1].

Porém, nem todos os hackers têm esta motivação, podendo estes, de facto, ter objetivos egoístas, financeiros ou maliciosos e originar consequências negativas nas vítimas, mas também realizar estas atividades com o intuito de proteger os sistemas de serem invadidos ilegal e maliciosamente [4, 6, 7].
Neste sentido, Jordan e Taylor [1] afirmam que os hackers podem ser subdivididos em hacker/cracker (invade o computador de outrem, nem sempre maliciosamente), microserfs (utiliza as suas capacidades para exercer funções em empresas de tecnologia), open source (movimento de divulgação de programas para o seu aperfeiçoamento) e hacktivistas (simbolizam a junção do hacking a motivações políticas).

Existem inúmeros casos de hacking, entre os quais podem ser referidos a aquisição ilegal de dados pessoais de utilizadores de serviços e plataformas, como o caso da EasyJet em 2020, a invasão de equipamentos eletrónicos de figuras públicas e sua extorsão, e o uso destas técnicas em estratégias de guerra, como o ataque alegadamente infligido pelos EUA ao sistema nuclear do Irão em 2010.

Relativamente ao caso Rui Pinto, este já se tentou afastar da designação de hacker, tendo afirmado que “hacking é quando se entra num sistema com meios brutais e se explora isso”, o qual considera nunca ter feito, assim como ataques informáticos [8, 9].

Hacktivismo

O surgimento do hacktivismo deu-se de forma célere e impressionante devido à interseção de três correntes distintas: o hacking, a influência da comunicação social, e o protesto e resistência social [1]. Assim, e também devido ao grande impacto da internet e da globalização, são cada vez mais comuns as manifestações de ativismo no ciberespaço [1, 10].

O hacktivismo, ou ativismo hacker, é considerado uma comunidade distinta dentro do mundo do hacking [1]. Desde sempre, a curiosidade dos hackers não incidia apenas em sistemas informáticos, mas também em estruturas sociais. Assim, eles aproveitavam as suas perícias para se oporem politicamente aos sistemas económico-sociais [5, 10]. Deste modo, o hacktivismo procura adotar uma estratégia política fiel aos princípios do hacking, assim como regressar aos objetivos originais do mesmo [10].

Embora a sua definição não seja consensual, este pode ser entendido, segundo Samuel [4], como o “uso não violento de ferramentas digitais ilegais e legalmente ambíguas na perseguição de fins políticos”. Desta forma, os hacktivistas pretendem expor uma injustiça social ou política, comummente ligada à censura online, conflitos políticos ou desrespeito pelos direitos humanos, causada por empresas, governos ou indivíduos, de modo a consciencializar o público e promover a mudança de políticas [4, 7, 11].

Alguns grupos fazem-no através de demonstrações não transgressivas, enquanto outros pretendem, através de atos maliciosos, gerar excitação pública [7]. Apesar de o hacktivismo existir desde os primórdios da internet, foram o caso WikiLeaks e o grupo Anonymous que o popularizou junto dos media e da população [11]. Naturalmente, este atrai cada vez mais atenção mediática, incendiando debates sobre a natureza ética das suas ações.

No caso WikiLeaks, o seu criador, Julian Assange, criou uma plataforma para proporcionar oportunidades de vazar documentos de forma ética [12]. Tal foi realizado por (Brady) Chelsea Manning, a qual revelou, através da plataforma, informações de Estado, defendendo que o fez porque a informação revelada deveria ser de livre acesso [5]. Igualmente, os Anonymous são o grupo hacktivista mais conhecido e prolífico, sendo responsáveis por inúmeras atividades disruptivas com uma vertente mais política, estando entre os seus ataques mais conhecidos os contra a Igreja da Cientologia e sites de pornografia infantil, assim como o seu auxílio à rede WikiLeaks [11].

Como tal, o hacktivismo, enquanto forma de expressão política e de contestação, tem aspetos positivos e negativos. Se, por um lado, pode permitir a consciencialização para problemas reais, por outro, fá-lo ao violar leis existentes. Consequentemente, decidir sobre a sua utilidade ou dano é uma avaliação desafiante [13].

Analisando o caso Rui Pinto, as suas motivações são pouco conhecidas, pelo que a tentativa de o enquadrar, ou não, no hacktivismo se torna mais complexa. É de ressalvar uma ocasião em que este afirmou ter começado a página do Football Leaks pois esta era a “única forma de mostrar ao mundo um pouco daquilo que está a matar o futebol” [9]. Assim, poderíamos, com todas as dúvidas aliadas, designar as suas ações nesta situação como tendo o intuito de alterar e expor uma situação ilícita e, com isso, ter um impacto social e legal [9] , sendo, assim, considerado um hacktivista.

Whistleblowing

A Diretiva 2019/1937 14 da União Europeia define um whistleblower como alguém que “trabalha numa organização pública ou privada ou entra em contacto com tal organização no contexto do seu trabalho” e, aí, deteta alguma ameaça ou dano ao interesse público. Assim, apenas podem ser consideradas situações em que funcionários partilham informação sobre atos com os quais entraram em contacto no decorrer da sua atividade profissional.

Os whistleblowers são normalmente vistos positivamente, sendo que revelam informação confidencial porque acreditam que tal é necessário para que a atenção pública seja direcionada para uma percebida irregularidade, crime ou injustiça” [12].

Entre os casos mais mediáticos encontram-se o de Katherine Gun (retratado no filme “Segredos Oficiais”), de Edward Snowden (visto no filme Snowden), da WikiLeaks, nomeadamente os seus protagonistas Julian Assange e (Brady) Chelsea Manning e, mais recentemente, do antigo funcionário da Cambridge Analytica, Christopher Wylie.

Existia, tradicionalmente, uma relação de simbiose entre os whistleblowers e a comunicação social, pois estes normalmente querem manter a anonimidade e precisam de um meio por onde disseminar a informação, estando, assim, muitas vezes, dependentes dos jornalistas para relevar o caso [12].

Porém, os avanços nas comunicações digitais complexificaram o fenómeno e tornaram esta relação menos exacerbada, uma vez que o ato de recolher informação, vazá-la e disseminá-la tornou-se mais simples e acessível para qualquer indivíduo [12]. Contudo, isto conduziu à multiplicação dos riscos da sua ação [12, 15].

Apesar de existir legislação em vários países que protege os whistleblowers, estes enfrentam ameaças de repercussões legais em vários países, como na Nova Zelândia, República da Irlanda, Estados Unidos da América, Reino Unido e Índia, especialmente quando o material em causa se refere a assuntos estatais como forma de proteger os interesses de segurança nacional [13].

Do ponto de vista da União Europeia, esta desenvolveu a mencionada Diretiva 14, que pretende dar mais proteção aos whistleblowers, principalmente garantindo que estes não perdem o emprego, nem sofrem repercussões legais pelas suas denúncias. Tal ocorre porque, por exemplo, um relatório de 2014 da Associação de Examinadores Certificados de Fraude afirma que as denúncias de whistleblowers são a fonte mais eficaz para detetar comportamento criminal em ambientes empresariais [15].

Relativamente a Rui Pinto, este procura defender este estatuto como aquele em que melhor se enquadra, uma vez que partilhou informações sobre atividades ilegais que estavam a ser cometidas por certas organizações que, caso contrário, poderiam nunca vir a ser do conhecimento público.

Conclusões sobre o caso Rui Pinto

Apesar de Rui Pinto se ter afastado da designação de hacker, este pode ser, de facto, descrito como tal depois de analisados os crimes pelos quais está acusado, visto que (alegadamente) invadiu sistemas informáticos e contas eletrónicas pessoais de terceiros sem o seu consentimento.

Da mesma forma, apesar de a defesa de Rui Pinto passar por enquadrá-lo no estatuto de whistleblower, as opiniões dividem-se. Enquanto uns defendem que o crime em causa pode ser atenuado devido ao interesse público subjacente à sua prática, outros afirmam que o caso não se insere na designação de whistleblower, porque Rui Pinto não era funcionário das entidades das quais revelou informações e, portanto, não as obteve no âmbito da sua atividade profissional, tal como exigido pela atual legislação europeia. O presente artigo segue o último posicionamento e, como tal, entende como questionável este enquadramento do caso Rui Pinto.

De acordo com esta reflexão, Rui Pinto não pode ser considerado hacker nem whistleblower, mas poderá ser entendido, porventura, como um hacktivista relativamente ao Football Leaks. No entanto, estas potenciais intenções nunca foram claramente expressas por Rui Pinto, e não se podem estender aos restantes processos em que o mesmo já revelou estar envolvido.

Esta análise mostra que seria de grande valor uma melhor análise e investigação das motivações subjacentes às atividades (alegadamente) realizadas por Rui Pinto. Da mesma forma, esta demonstra a dificuldade de enquadrar certos casos nas diferentes categorias, exercício este que é de especial importância devido às consequências, nomeadamente criminais, que cada um acarreta.

  1. Jordan, T. & Taylor, P. (2004). Hacking and hacktivism. In T. Jordan & P. Taylor (Eds.), Hacktivism and cyberwars: Rebels
    with a cause? (pp. 1-18). Routledge.
  2. Prybutok, R. V., Young, R. & Zhang, L. (2007). Hacking into the minds of hackers. Information Systems Management, 24(4),
    281-287. doi: 10.1080/10580530701585823
  3. Gunkel, J. D. (2005). Editorial: Introduction to hacking and hacktivism. New Media & Society, 7(5), 595-597. doi:
    10.1177/1461444805056007
  4. Samuel, W. A. (2004). Hacktivism and the future of political participation [Doctoral dissertation, Harvard University].
    https://www.alexandrasamuel.com/dissertation/pdfs/Samuel-Hacktivism-entire.pdf
  5. Ludlow, P. (2010, October 4). WikiLeaks and Hacktivist Culture. The Nation.
    https://www.thenation.com/article/archive/wikileaks-and-hacktivist-culture/
  6. Moore, R. (2005). Cybercrime – Investigating high-technology computer crime. Anderson Publishing.
  7. Colesky, M. R. & Niekerk, J. V. (2012). Hacktivism – Controlling the effects. Nelson Mandela Metropolitan University.
    http://www.academia.edu/2033252/Hacktivism_-_Controling_The_Effects
  8. Riso, L. (2019, December 20). Rui Pinto: “Não me considero um hacker”. Sábado.
    https://www.sabado.pt/portugal/detalhe/rui-pinto-nao-me-considero-um-hacker
  9. Roseiro, B. (2018, September 14). O que se sabe de Rui Pinto, o pirata informático do Football Leaks que terá desviado os
    emails do Benfica, Observador. https://observador.pt/2018/09/14/o-que-se-sabe-de-rui-pinto-o-pirata-informatico-do-football-
    leaks-que-tera-desviado-os-emails-do-benfica/
  10. Taylor, P. A (2008). Hacktivism. The International Encyclopedia of Communication. doi: 10.1002/9781405186407.wbiech003
  11. Milan, S. (2013). WikiLeaks, Anonymous, and the exercise of individuality: Protesting in the cloud. In B. Brevini, A. Hinstz
    & P. McCurdy (Eds.), Beyond WikiLeaks: Implications for the future of communications, journalism and society (pp. 191-
    208). Palgrave Macmillan.
  12. Thorsen, E, Sreedharan, C. & Allan, S. (2013). WikiLeaks and Whistle-blowing: The Framing of Bradley Manning. In
    Brevini, B., Hintz, A. & McCurdy, P. (Eds.), Beyond WikiLeaks – Implications for the Future of Communications, Journalism
    and Society (pp. 101-122). Palgrave Macmillan.
  13. Karagiannopoulos, V. (2018). Living with Hacktivism – From Conflict to Symbiosis. Palgrave Macmillan.
  14. Directive (EU) 2019/1937 Of The European Parliament And Of The Council of 23 October 2019 on the protection of persons
    who report breaches of Union law
  15. Di Salvo, P. (2020). Digital Whistleblowing Platforms in Journalism. Palgrave Macmillan.

Crónica escrita por Vânia Sampaio e Sara Afonso, licenciadas em Criminologia pela Universidade do Porto, e com Mestrado em Terrorismo, Crime Internacional e Segurança Global

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.

Artigos Relacionados