‘Fuzzville!!!’: Um castelo de guitarras debaixo do sol

por Comunidade Cultura e Arte,    16 Julho, 2018
‘Fuzzville!!!’: Um castelo de guitarras debaixo do sol
© Iñigo de Amescua
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Estamos na época áurea dos mais famosos festivais de verão nacionais e, antes que seja tarde demais, decidi recordar a minha ida à quarta edição do Fuzzville!!!, o festival com mais guitarras da Costa Blanca.

Cheguei a Benidorm no dia 19 de Abril. Entre palmeiras, arranha-céus e Beniscooters, encontrei o meu caminho até ao Sonámbulo Music Club, bar num piso subterrâneo a uma rua de distância da frente balnear onde decorreu a festa de boas-vindas do festival. Foram os Moaning que ficaram responsáveis por aquecer o início da noite, cujo disco de estreia tinha sido lançado há pouco mais de um mês pela Sub Pop. O pós-punk do trio de L.A. fez-se sentir sempre com um chiar e feedback ensurdecedores no início de cada tema, linhas de baixo sincopadas, um sintetizador pontual. O braço da guitarra do vocalista Sean Solomon transformava-se num sabre que ia rasgando o ar para trás e para a frente com os seus braços, perante uma audiência que ocupava meia sala; a entrega foi directa, embrulhada em timidez e negrume. De seguida, Travesti Afgano, banda de Pontevedra com um nome infeliz, agita o público com tonalidades mais leves, fortes traços psych e surf rock. A noite termina com DJ set roqueiro nostálgico de El Tucho.

Rodeado de algumas montanhas que nos brindam numa espécie de western ibérico, o Magic Robinhood abriu as suas portas aos festivaleiros ao início da tarde de dia 20. O portal de entrada com ameias anuncia já todo o clima do recinto, em que o staff anda trajado à época medieval e toda a arquitectura simula esse cenário, com sabor a estúdio de cinema ancorado na lenda de Robin Hood. Há tempo para que nos instalemos nas “cabañas”, que ficam em redor da piscina.

© Iñigo de Amescua

Ao fim da tarde abre o Lady Marian’s Theatre, o grande pavilhão com dois palcos onde irão decorrer os concertos. É dia 20 de Abril (Record Store Day, claro!) e à porta deste espaço temos as bancas de várias editoras nacionais, nas quais há tempo para fazer algum digging antes dos doze concertos, sem pausa, que nos esperam até às 3 e tal da manhã.

Nestter Donuts é a one man band de Alicante que inaugura o recinto no Junk Party Stage (palco secundário). As canções rápidas são embaladas no dedilhado surf e pontuadas pelo mega-despido kit de bateria. Vestido num macacão leopardo, a voz sentida e pesarosa é acentuada pela sua presença cómica e caricata. Salta do palco duas vezes para “atacar” o seu público, terminando o set com dois amigos que entram em cena na voluntariosa tarefa de se transformarem em gatos a miar. Os primeiros a pisar o Fuzzville Stage!!! são Los Pepes, banda radicada em Inglaterra, que entrega um set num registo de power pop rápido e competente.

De volta ao Junk Party Stage, Las Jennys de Arroyoculebro montam um espectáculo verdadeiramente trash numa performance empenhada em amplificar o nonsense. Com uma voz e teclado estridentes, a vocalista canta temas como “Voy a coser tu venas con mi nombre” (“Vou coser as tuas veias com o meu nome”) ou “Codeína” e acaba por invadir a multidão inúmeras vezes. Durante a canção “Perrita Patada”, chega a resgatar um homem do público que é usado como artifício cénico – melhor dizendo, põe-no de gatas e “monta-se” euforicamente nas suas costas. Um estrondo!

© Iñigo de Amescua

Depois do punk rock italiano de The Peawees e do concerto dos valencianos Vibrowaves, entram em cena no palco principal The Stems, banda australiana de power pop do início dos anos 80 que reúne fãs em uníssono para temas como “At First Sight” e “Sad Girl”. As baladas de outro tempo continuam imersas nas suas intenções originais e ainda partilhadas com frescura. Aquecem o público que gradualmente se começa a soltar. Abrindo alas de novo para o palco secundário, Hey Honcho & The Aftermaths – quarteto de Oviedo comandado pela presença tragicómica do vocalista Von Gustopher – apresenta o seu garage punk feroz sob um jogo de luz que encandeia. Já se vêem pessoas perto do palco principal à espera de Detroit Cobras, um dos momentos altos da noite. A banda de Detroit traz o seu repertório de covers dos anos 60, principalmente northern soul e R&B, que tem marcado a sua carreira desde 1994. A cantora Rachel Nagy entra em palco avisando “Let’s start with Jesus coming down!”, canalizando o seu gospel desembaraçado em temas como “Cha Cha Twist” e “Weak Spot”. É quase meia-noite e meia quando os madrilenos Terrier começam a tocar, apresentando os temas do seu último disco La Plaga (2016), fazendo-se sentir o garage pop onde se destacam sempre o sintetizador e um jogo de melodias vocais.

Los Chicos arrancam com a sua auto-proclamada máquina de “country-punk-rock-soul-gospel” de dezoito anos e disco novo cá fora, By Medical Prescription. Com chapéu de cowboy e acrobacias pelo palco, o cantor Rafa Suñén chega a beber Coca-Cola da sua própria bota. São cada vez mais frequentes os copos a voar, a energia é acumulada e acelera o ritmo da noite. A encerrar o palco secundário, Los Bengala, a dupla felina de Zaragoza, agita os fãs com os hinos “Jodidamente Loco” ou “No hay amor sin dolor”, sendo o aquecimento perfeito para a última actuação da noite, King Khan’s Louder Than Death, uma das mil e uma formações de King Khan. A atmosfera fica densa com notas circulares no baixo e uma bateria repetitiva que segura e agoniza a entrada de Khan, que ao longo do concerto incita sempre o público a soltar-se, a dançar mais, “It’s time for the scum to rise!” grita. Dos pontos altos do concerto, são de mencionar a aparição da alemã Toni Lou que canta com ele uma música sobre galinha picante, a canção sobre Memphis que dedica a Jay Reatard (R.I.P.), o tema “Leather Boy” – que dedica a todos os homossexuais – e ainda o cover de “Leaving Babylon” dos Bad Brains.

© Iñigo de Amescua

Depois de horas e horas de concerto sem parar, a noite contou ainda com DJ sets de Teenarama, Diego R.J., Adrain (Shake!) e Zuhaitz DJ (Bomber) que fizeram dançar até para lá das seis da manhã. Passadas cerca de quatro horas, o segunda dia no Magic Robinhood começa cedo, na Pool Party Matinal que, infelizmente, à data ainda não tem os seus incríveis escorregas e diversões aquáticas a funcionar. Sob toldos e sobre espreguiçadeiras, os óculos de sol abundam e os DJ sets já decorrem no tom roqueiro revivalista que caracteriza todo o festival, assim como o seu público. Até ao fim da tarde, DJs e algumas actuações passam pela piscina, entre elas o DJ set de King Khan e o concerto de The Fuzzilis com animadas vibrações surf ska, que energizam e atenuam a ressaca.

Pelas 19 horas, dirigimo-nos ao Lady Marian’s Theatre, onde já vemos no palco o trio galego Klute que abre as hostes num registo punk que pisca os olhos aos anos 90, indo na linha de The Replacements, numa boa pausa do registo garageiro para este final de tarde. O contraste é enorme quando nos dirigimos ao palco Fuzzville!!! e encaramos o som e a performance abrasiva do quarteto neozelandês The Cavemen. O vocalista com ar adolescente e trejeitos de Iggy Pop no modo como projecta a sua voz rouca, move o seu corpo esquelético pelo palco e debruça-se sobre o público. Numa constante atitude de enfant terrible, a performance é potenciada pelos coros do guitarrista e do baixista, assim como pela competência do baterista mal encarado.

© Iñigo de Amescua

De volta ao Junk Party Stage, os valencianos Aullido Atómico trazem o seu “trash & roll” castelhano que arrasta e agita muitos fãs entre coros, uivos e maracas. Jacuzzi Boys, trio da Flórida, já está preparado no palco grande e dispara o concerto sem rodeios, artifícios ou hesitações, tema após tema. A audiência está focada, conquistada e já familiarizada com as canções de diferentes discos. Com uma presença discreta e confiante no seu repertório, subvertem temas como “Glazin’”, que inicia vagarosamente e depois avança mais rápido do que na versão de estúdio ao longo de todo o tema. Aplauso.

Vindos de Castellón de la Plana, os Heatwaves oferecem uma infusão de doo-wop dos 60’s ao regressar do jantar. De referir que todos os festivaleiros tiveram direito a pensão completa num longo buffet servido numa ampla sala aberta, com gastronomia diversa e adaptada a diferentes dietas. Esta atenção e o conforto das “cabañas” é motivo para congratular a organização e premiá-la pelo sua dedicação ao bom acolhimento.

So when we’re out there running all day who wins?/ And when we’re inside crying all day who wins?” é o mote de ataque de Downtown Boys (vindos de Rhode Island para data única na Europa) no tema “Lips That Bite”, que inicia um espectáculo tanto energético como ideológico, em que cada riff é um passo anti-capitalista e um soco descolonizante. “CHICANA POWER” são as letras estampadas na t-shirt de Victoria Ruiz e na sua voz tão abrasiva como terna, que contrasta com os saltos pogo do mítico guitarrista Joey La Neve DeFrancesco. Seguindo para “Wave Of History”, canção que contextualiza os lucros de uma economia baseada no sangue de tempos coloniais de escravatura até hoje.

© Iñigo de Amescua

Tendo tido a oportunidade de conversar com a banda durante essa mesma tarde, consegui entender a relação pessoal que cada um dos membros tem com a música, na qual a emoção se eleva aos aspectos técnicos, algo tão comum na tradição punk. Neste caso, quanto ao cruzamento de temas políticos na composição musical, Mary Regalado (baixista e também membro da banda Gauche) comenta: “I feel like for me it’s not really an option, it’s gonna come naturally, all of the feelings and the world around us.” A conversa estendeu-se sobre vários assuntos, incluindo como muitas vezes um ambiente de pânico e asfixia política pode ser o mais letal para quem está embrenhado nos activismos através do trabalho em bando. Sobre isto, a Victoria Ruiz comenta:

“Always being sincere is really the way to go. I’ve seen lots of bands, especially last year, it felt like there was this really big frenzy around just freaking out about the political situation in the United States and feeling like everything needed to be armed politically, so every show needed to be a benefit, everyone needed to be posting everything on social media, you know, just so much panic… and that panic, I don’t think that has roots, feeling the pressure hopefully that’s rooted in something and it does feel like you’re kind of in a moment, but don’t give in to the anxiety or the panic to what you think you should do or should say because then it may not be sincere.”

O concerto desenrolou-se maravilhosamente com uma homenagem a Selena, rainha chicana da cumbia, no cover “Fotos y Recuerdos”, e com o tema apropriado de Bruce Springsteen, “Dancing in the Dark”, que agitou toda a multidão. O microfone foi passado ao público, Victoria desfilou pela multidão e os temas de Full Communism e Cost Of Living foram apresentados com toda a urgência e entrega merecidas.

© Iñigo de Amescua

O final da noite foi sempre em fast tempo, pontuado pelo concerto do grupo catalão na linhagem de MC5, os Tokyo Sex Destruction; pelos New Bomb Turks, trazendo dos anos noventa um punk roufenho que contou com mais uma aparição de King Khan, para fazer um cover de Wire; o pop-punk de Castellón dos Depressing Claim; as lições que mais pareciam hinos para um público nostálgico dos Nuevo Catecismo Católico e ainda os Lie Detectors, com carismático vocalista vestido de branco e com bigode a la Frank Zappa, que liderou a multidão num concerto que culminou numa invasão de palco. Coube aos franceses Les Lullies da Slovenly Records fazer as honras de encerramento dos concertos com uma catadupa de temas velozes com pouco mais de um minuto. Entre DJ sets de Motofer, Cheries Djs e Mighty Caeser, a noite viu-se ébria nos vários grupos de amigos que vieram de todas as partes de Espanha (e não só) para este castelo de fuzz, que ainda teve continuação no dia seguinte na última Matinal Pool Party de Domingo.

Artigo escrito por Rodrigo Vaiapraia.
Fotografias de Iñigo de Amescua (@inigoamescua).

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