‘Fogo no Mar’ é só um documentário de boas intenções

por Gabriel Margarido Pais,    17 Outubro, 2016
‘Fogo no Mar’ é só um documentário de boas intenções
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Tivemos a oportunidade de assistir a Fuocoammare, ou Fogo no Mar, o documentário de Gianfranco Rosi que venceu o Urso de Ouro no Festival de Berlim deste ano e que captou as vidas dos refugiados na ilha de Lampedusa. Este local tem sido talvez o local de passagem que mais refugiados alberga, refugiados esses que escapam do Médio Oriente, procurando melhores condições de vida no coração do Velho Continente. Desde 1998 que Lampedusa tem sido comparada a uma porta de entrada de imigrantes na Europa. 1998 foi o ano em que abriu o centro de receção aos imigrantes de Lampedusa, e que tentava realojar imigrantes e refugiados africanos na Europa. A capacidade de 801 pessoas de que o centro dispunha era desafiada e ultrapassada numa base quase diária, devido, na altura, à emigração em massa de africanos para a Europa. Raras foram as vezes durante a sua história em que os funcionários do centro de imigração não tiveram de se preocupar com excesso de pessoas, pois ano após ano, catástrofes e guerras fizeram com que dezenas de milhares de pessoas tenham tentado a sua sorte em Lampedusa. Em 20 anos, 400 000 pessoas chegaram à ilha. 15 000 morreram. Em 2013, aquele que ficou conhecido como o «desastre de Lampedusa» causou mais de 300 mortes, quando um barco sobrelotado tombou, quando se dirigia para a ilha.

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Após passarem os créditos do filme, que nos pôem a par de alguns dos números referidos no parágrafo 1, vemos uma senhora italiana de idade a preparar o jantar enquanto na televisão da cozinha passa uma notícia sobre o desastre de Lampedusa. A reação da mulher, que enquanto continua a cortar vegetais diz «pobres almas», é o espelho perfeito do atual ponto de vista de Itália (e de toda a Europa) para com a crise de refugiados que hoje vivemos, ponto de vista esse que o filme tenta alterar, e a razão pelo qual este filme se tornaria necessário. Como tem sido dito na imprensa internacional, Gianfranco Rosi consegue de certa forma incutir no público uma sensação de urgência para com o tema, mas pareceu-nos que este filme não foi a melhor versão de si mesmo, e de certa forma ficámos sedentos de algo mais.

Este documentário cai nas linhas do que já conhecemos de Rosi: acompanha vários objetos de estudo disfarçados de seres humanos, captando-os numa série de momentos que poderiam parecer espontâneos caso a falta de genuinidade e o cuidadoso arranjo de cenário e enquadramento de todas as cenas. Sabendo que isto é uma prática um tanto ou quanto comum no mundo do cinema documental, este exagero de utilização de cenas premeditadas revelou durante todo o filme uma artificialidade que não seria de esperar num realizador como Gianfranco Rosi. A utilização de histórias e momentos paralelos é também a maior crítica ao trabalho de Rosi, pois na sua carreira a falta de um fio condutor que transforme várias histórias num documentário uniforma tem sido algo comum. Em Fogo no Mar, a mesma crítica se aplica. Os miúdos a fazer fisgas de ramos velhos e pedaços de luvas de borracha, o mergulhador que pesca ouriços do mar, o guarda marítimo que atende chamadas de socorro e o DJ de uma rádio local que aceita pedidos de músicas dos seus correspondentes podem ser portadores de algum tipo de significado subjetivo para a interpretação do filme (e maior parte das vezes são), e podem mesmo chegar a ser histórias interessantes, mas o filme falha ao não conseguir tornar estas histórias num documentário com um objetivo definido e uniforme.

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Samuele Pucillo, o siciliano de 12 anos, acaba por ser o capitão deste filme, e se no documentário existisse um protagonista, seria Samuele. As suas várias e prolongadas cenas são o ponto alto do filme, sendo mesmo um prazer ver este rapaz no ecrã, mas as suas ações, gestos e falas previamente acordadas quebram toda a sensação de realismo e espontaneidade que um documentário deve ter. Podemos mesmo dizer que este é um documentário sobre Samuele, o rapaz de 12 anos com sotaque cerrado siciliano. Rosi passou um ano e meio na ilha de Lampedusa, e os refugiados (supostamente o foco do filme) não aparecem mais do que uma mão cheia de vezes. Podemos especular que o realizador se apaixonou pela cultura, tradição e vida típica de Lampedusa, ultimamente realizando o documentário errado.

Os últimos 20 minutos do filme são largamente dedicados ao mar, à verdadeira crise dos refugiados, o filme que devia ter sido. Vemos a guarda costeira a arrastar para terra corpos inconscientes (na melhor das hipóteses) numa sequência de imagens aterrorizadoras que deviam ter tido mais hipóteses de brilhar do que as que foram observadas. Vemos pessoas à beira de ataques cardíacos, outras quase a morrer desidratadas. Vemos crianças a chorar, um homem que não consegue andar ou falar por si mesmo, e uma mulher que chora e grita compulsivamente, enquanto passa água vezes e vezes sem conta pela cara, como se para se limpar de todo o terror pelo qual atravessou. Estas são de facto imagens com um valor sentimental muito forte, e sejamos sinceros: num documentário, imagens que torturem o seu público para o fazer considerar o extremo horror do tópico que tenta abordar são recomendáveis. No entanto, Rosi sentiu a necessidade de distrair o seu público com passagens sem importância, deixando cair por terra o que poderia ser o documentário da década.

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No final de contas, este deveria ser um documentário sobre a crise de refugiados na Europa. A fixação de Rosi com Samuele pode parecer uma tentativa de mostrar a dualidade da vida em Lampedusa, mas isso não é justificável. Um rapaz adorável não representa a vida numa ilha marcada por tamanho sofrimento, e todos os outros objetos de estudo não têm oportunidade nem tempo de ecrã para criar impacto suficiente no público, sendo no final de contas esquecíveis. A cena que precede a última tem um toque de génio, para ser sincero. Samuele faz uma consulta de rotina no médico e descobre ser altamente hipocondríaco (no que é, claramente mais um momento roteirizado). Esta situação é algo cómica de início, mas ultimamente, caso ainda nos lembremos que este é um filme sobre a crise dos refugiados, vamos tecer comparações entre os problemas de Samuele, um rapaz siciliano sem uma única preocupação a não ser as doenças e problemas que ele pensa ter, e os verdadeiros problemas do mundo, numa cena que subtilmente acaba por comparar as manias do primeiro mundo com o terror pelo qual os refugiados passam hoje em dia.

Todas as histórias contadas por Rosi têm algum valor, alguma utilidade e algo a acrescentar a um filme. Infelizmente, não é a este filme, e não deveria ser num documentário sobre um tema tão sensível e atual que se devia brincar à apanhada, onde tentamos do início ao fim do filme encontrar cenas que mostrem realmente a dimensão do problema dos refugiados na Europa. É difícil perceber porque este documentário tem sido tão aplaudido: talvez seja por não ser o murro no estômago que devia ser e isso torne a sua visualização mais fácil para os homens brancos de países ricos que avaliam filmes nos festivais; talvez seja por tentar mostrar uma certa displacência do Velho Continente ao que debaixo dele se passa. Se for a segunda opção, este foi o documentário errado, e havendo duas formas para contar esta história, a de Rosi fica algo perdida entre ambas, numa confusão de momentos que acabam por retirar importância ao tema, em vez de nos sensibilizarem para ele.

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