Fernando Pessoa: o rosto do Modernismo português

por Lucas Brandão,    12 Junho, 2017
Fernando Pessoa: o rosto do Modernismo português
“Retrato de Fernando Pessoa”, 1964, óleo sobre tela, por José de Almada Negreiros
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No expoente da cultura portuguesa figura Fernando Pessoa. Criador de várias personalidades às quais designou de heterónimos, foi também a expressão de si mesmo a marcar indelevelmente o consciente e inconsciente comum a todos os portugueses. Não é possível medir com palavras, frases ou até mesmo páginas o contributo do autor educado na África do Sul que nunca se coibiu de arriscar pelo idioma inglês e pela expressão incólume do seu sentimento e do seu pensamento. No entanto, qualquer esforço de consolidar o seu legado é motivo de salutar consideração, nem que este seja passo garantido para que se cumpra Portugal.

Fernando António Nogueira Pessoa nasceu a 13 de junho de 1888, em Lisboa. Por isso, não é só por virtude do seu padroeiro Santo António que esta cidade reconhece a data como identitária e especial. O seu pai, Joaquim de Seabra Pessoa, era funcionário público no Ministério da Justiça e colaborador no periódico Diário de Notícias. A mãe, D. Maria Magdalena Pinheiro Nogueira Pessoa, havia recebido uma assinalável formação em letras e até compunha alguns versos. A infância e adolescência do futuro poeta seriam condicionadas pelas precoces mortes do seu pai e do seu recém-nascido irmão. É neste oscilante período que nasce o primeiro de inúmeros heterónimos do autor, sendo ele Chevalier de Pas e tendo em vista colmatar a falta do seu pai. Um dos primeiros poemas redigidos destinava-se à sua mãe e contava com a nota “À Minha Querida Mamã“. Entretanto, a sua progenitora casa-se com João Miguel Rosa, cônsul português em Durban, África do Sul, e o escritor viria a mover malas e bagagens para a cidade africana. Deste matrimónio, resultariam quatro meios-irmãos de Pessoa.

À Minha Querida Mamã

Ó terras de Portugal
Ó terras onde eu nasci
Por muito que goste delas
Ainda gosto mais de ti.

Já em África, Fernando Pessoa inicia a sua instrução na escola de freiras irlandesas de West Street, onde efetua em dois anos letivos o primeiro ciclo. Em 1899, com 11 anos, ingressa no Liceu de Durban e cria o heterónimo Alexander Search, assim como o seu irmão Charles James Search. É a partir destas circunstâncias que estabelece contactos com a língua e literatura inglesas, referenciando autores como William Shakespeare, Lord Byron, John Keats, Edgar Allan Poe, entre outros, e redige as primeiras composições poéticas em idioma inglês. Este domínio ser-lhe-ia muito útil quando, de regresso permanente a Portugal após várias férias passadas em solo nacional, exerce a função de correspondente comercial e de tradutor de obras mediáticas dentro da esfera literária. É também curioso assinalar que, à exceção de “Mensagem“, as únicas obras publicadas em vida pelo autor seriam as coletâneas de poemas escritos em inglês “Antinous“, “35 Sonnets” e “English Poems“, este dividido em três partes. Porém, antes deste retorno em definitivo, Pessoa estende a sua formação na Durban Commercial School e articula-a com o estudo autónomo de disciplinas humanísticas. Após, em 1903, receber o Queen Victoria Memorial Prize pela melhor qualificação num ensaio de estilo inglês na Universidade do Cabo da Boa Esperança, regressa à Durban High School para frequentar o equivalente a um ano universitário. A sua cultura é aprofundada neste período com clássicos greco-latinos e a sua produção escrita é fortalecida com a criação dos heterónimos Charles Robert Anon e H. M. F. Lecher, ambos marcando presença tanto em prosa como em poesia. A sua formação é finalmente finalizada com o Intermediate Examination in Arts, do qual consegue uma nota positiva.

Mania da Dúvida

Tudo para mim é um duvidar
Com a normalidade sempre em cisão,
E o seu incessante perguntar
Cansa meu coração.
As coisas são e parecem e o nada sustém
O segredo da vida que contém. A presença de tudo sempre perguntando
Coisas de angústia premente,
Em terrível hesitação experimentando
A minha mente.
É falsa a verdade? Qual o seu aparentar
Já que tudo são sonhos e tudo é sonhar? Perante o mistério vacila a vontade
Em luta dividida dentro do pensar,
E a Razão cede, qual cobarde,
No encontrar
Mais do que as coisas em si revelam ser,
Mas que elas, por si só, não deixam ver.

Alexander Search, in “Poesia”

Em 1905, com somente 17 anos, fixa-se na capital portuguesa e passa a viver com a sua avó e duas tias na Rua da Bela Vista. A formação do poeta não se via como concluída em solo português e, como tal, ingressa no Curso Superior de Letras, sem, no entanto, concluir qualquer ano. Mais entrosado com a realidade do seu país de nascença, trava contacto com obras de autores tão diversos como Cesário Verde ou Padre António Vieira. Dois anos depois do seu regresso, a sua avó falece mas lega-lhe uma herança a partir da qual o jovem abriria uma pequena tipografia mas que rapidamente entra em insolvência. O trabalho como tradutor seria agora uma realidade e a sua atividade profissional estabilizaria daí até ao final da sua vida, não vivendo com luxúrias mas também nunca estando privado dos recursos necessários a que uma obra de nomeada se desenvolvesse.

O seu papel como ensaísta e crítico literário seria explorado a partir de vários artigos redigidos em órgãos como a revista “A Águia“, com os temas a perpassarem a atividade póetica de então. Com esta familiarização, começa a envolver-se nos contextos físicos dos intelectuais de então e frequenta o futuramente mítico café A Brasileira, no Lago do Chiado. No entanto, e no seu futuro, viria a usar o estabelecimento Martinho da Arcada, na Praça do Comércio, como ponto de referência para encontros e para momentos de inspiração. Foi também por esta altura que Pessoa travou conhecimento com o ocultismo e com o misticismo, fazendo até consultas astrológicas a si e aos demais interessados, inclusive aos seus heterónimos. Os seus interesses na área chegavam às organizações da Maçonaria e da Rosa-Cruz. Também na demonstração deste seu apreço nasceram alguns poemas, como “No Túmulo de Christian Rosenkreutz“, e alguns convívios, como com o ocultista britânico Aleister Crowley e a maga alemã Hanni Larissa Jaeger. Em 1915, e já totalmente imbuído na nova vaga cultural que se vinha manifestando, participa na revista modernista Orpheu ao lado de nomes como Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros ou Santa-Rita Pintor.

O vanguardismo dos conteúdos publicados viriam a abalar com os preceitos da cultura portuguesa de então e, não obstante o exíguo número de edições (duas), seria marcante no desenvolvimento de um novo heterónimo. Seria ele Álvaro de Campos, o mais modernista de todos eles e um dos mais problematizadores da realidade com a qual contactava e na qual exaltava o progresso mas também o saudosismo das memórias já idas e vividas. Já em 1924, Pessoa voltou a tentar a sua sorte nas produções públicas e assumiu novamente as rédeas de uma revista, desta feita a Athena. Ao lado do artista plástico Ruy Vaz, o lisboeta abriu a amplitude da sua produção e apresentou Ricardo Reis e Alberto Caeiro , assim como o ortónimo. Após outras ocasionais colaborações em revistas, como a Sudoeste, Fernando Pessoa é hospitalizado no dia 29 de novembro de 1935 no Hospital de São Luís dos Franceses com uma aparente cirrose hepática. No dia seguinte, e com somente 47 anos de idade, viria a partir mas sem deixar de apontar por escrito uma última afirmação: “I know not what tomorrow will bring“.

No meio de tantas aventuras e desventuras no processo criativo de Pessoa, destacam-se alguns desses corpos sem fisionomia mas com demais autonomia. Um dos principais foi Álvaro de Campos. Conforme assinalado acima, apresenta-se como um engenheiro futurista que outrora havia sido decadentista e que advoga a vida moderna e a liberdade de expressão e de sentido através de um registo despreocupado e pouco ponderado. Entre outros, é relembrado pelo poema “Tabacaria” e pelas “Odes” registadas na Orpheu, valorizando com estas a máquina e a importância da Revolução Industrial num prisma social. De seguida, era Ricardo Reis aquele que primava por ideais greco-romanos epicuristas e estoicistas, apelando à busca dos prazeres moderados e à aceitação do destino. Monárquico, emigra para o Brasil em protesto com a emergência da República mas sem esquecer a sua amada e reverenciada Lídia. O médico de profissão é talvez o mais clássico e disciplinado de todos aqueles que aqui se encontram elencados. Este era também o único que, até à escrita de “O Ano da Morte de Ricardo Reis” por José Saramago, não tinha data de morte definida pelo seu criador.

Depois, também Bernardo Soares figura na tribuna dos ilustres essencialmente pela autoria de “O Livro do Desassossego“. Porém, e pela sua semelhança ao ortónimo, apresenta a condição de semi-heterónimo. A obra produzida gerou alguma polémica na sua organização por ser um conjunto de fragmentos. Esta consistia num conjunto de reflexões introspetivas de caráter modernista elaboradas por Pessoa e foi redigida ao longo de duas décadas. É nesta que, não obstante a utilização do nome de Bernardo Soares, o poeta disseca sobre todas as questões que até então se revelavam ocultas e incógnitas quanto às linhas de pensamento e de discernimento assumidas. Apresentando um vocabulário simples e uma cumplicidade única com a Natureza, é Alberto Caeiro o que dispensa dar-se ao pensamento e que somente entrega a voz da sua palavra à sensação que sente. Por esta era considerado como o “mestre ingénuo” por parte do seu criador. Sendo o único não prosador deste elenco, considerava que a poesia bastaria para que toda a sua emoção acabasse expressa sem rodeios nem freios.

Quanto, por fim, ao ortónimo, este desvenda as dores, as preocupações, as intrigas e as lamentações do autor, apontando os custos da razão e a importância de evocar a infância para relembrar a felicidade que por lá se perdeu. Militando por várias correntes do saber e do pensar, não se privou de ser experimentalista por várias estruturas poéticas, por diferentes temas e com diversos recursos de estilo. No entanto, é notória a influência vigorosa e primorosa de um modernismo com pouco por ocultar mas com muito por exultar. A obra pela qual ficou sobejamente conhecido foi “Mensagem“, um aglomerado de quarenta e quatro poemas no qual é dissecado o passado português recheado de glórias e que marca um encontro de homenagem com a obra camoniana d’”Os Lusíadas“. Neste, a missão é também encontrar nas virtudes do povo luso um impulso para a efetivação de uma regeneração e revalorização do ser português.

I. O Infante

Deus quer, o homem sonha, a obra nasce.
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,

E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.

Quem te sagrou criou-te português.
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!

Fernando Pessoa em “Mensagem” (1934)

Fernando Pessoa foi um dos maiores criadores da cultura europeia e talvez o maior numa escala nacional. Para além de criar obras, criou gente. Gente com personalidade, com idade, com localidade, com jeitos e verdadeiros sinais de realidade. Com crenças identitárias, com experiências determinantes, com estilos literários marcantes. Pelo meio, estava ele mesmo. Com a sua humanidade e com as suas mazelas, mazelas essas resultantes dos esforços de pensar e de ser. Esforços não de suor mas de dor. A tal dor de pensar, a tal do de se ser. Foi através das suas criações que procurou a resposta. Encontrou-a, aqui e ali, de jeito mais ou menos complementar. Entre os outros demais, havia Campos excêntrico, Reis sereno, Caeiro sábio. Foi por aí que Pessoa foi uma pessoa mais algumas. Revertendo, Pessoa foi vários num só. Foi desta forma singular e modelar que Pessoa foi tudo aquilo que ambicionamos apreciar, sentir e ser. Ambição de, enfim, ser uma Pessoa. Ambição de, por fim, se atingir o melhor da civilização.

“Agora, tendo visto tudo e sentido tudo, tenho o dever de me fechar em casa no meu espírito e trabalhar, quanto possa e em tudo quanto possa, para o progresso da civilização e o alargamento da consciência da humanidade.”

Fernando Pessoa em carta enviada a Armando Côrtes-Rodrigues a 19 de Janeiro de 1915

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