“Fazei isto em memória de mim”

por Frederico Lourenço,    17 Abril, 2019
“Fazei isto em memória de mim”
A Última Ceia imaginada por Domenico Ghirlandaio
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A falta de curiosidade (sobretudo da parte de católicos) relativamente à natureza do texto do Novo Testamento tem levado à situação desconcertante de haver pessoas em Portugal que parecem pensar que inventei o método crítico-histórico na abordagem ao estudo da Bíblia, insurgindo-se, indignadas, contra aquilo que escrevo – quando estou apenas a apresentar problemáticas já com vasta bibliografia e investigação universitária desde o século XIX.

O facto de se ler criticamente os Evangelhos não significa que quem o faz esteja a «criticar» estes textos (e ninguém pode duvidar do amor imenso que tenho pelos Evangelhos): ler criticamente os Evangelhos não é mais do que tomar em linha de conta os muitos problemas que se levantam na transmissão dos textos antigos, problemas de que os textos do Novo Testamento não estão isentos. Seria lindíssimo, sem dúvida, se pudéssemos pensar que Deus (ou o Espírito Santo) tudo providenciou para que os mais sagrados de todos os textos tivessem chegado até nós com uma forma textual estável, homogénea e incontroversa. Mas não foi isso que aconteceu. Existem mais de 2300 manuscritos, anteriores à invenção da imprensa, que nos transmitem os Evangelhos. Nenhum deles é cópia exacta de outro; todos apresentam diferenças entre si; em todos lemos palavras que nos obrigam a perguntar se são as que o evangelista originalmente escreveu; ou se são palavras de redação posterior. Mesmo sem entrarmos em questões teológicas de «inerrância bíblica» ou de «Escritura inspirada», fica-nos a questão que me parece a principal: que texto é o texto que estamos a ler?

Amanhã é Quinta-Feira Santa, dia em que o mundo cristão recorda a instituição da eucaristia na Última Ceia. Todos os fiéis que vão à missa em Portugal estão habituados às palavras «fazei isto em memória de mim» (ou, traduzidas mais literalmente, «isto fazei para a minha memória»). São palavras belíssimas em grego, pois a palavra usada para «memória» é nada menos do que «anámnēsis» (ἀνάμνησις), palavra com bonito pedigree platónico.

Esta frase, porém, traz consigo dois problemas.

O primeiro problema é que está ausente de Mateus, Marcos e João: só ocorre no Evangelho de Lucas. Fora do conjunto de textos constituído pelos quatro Evangelhos, ocorre, de facto, numa passagem de Paulo (1 Coríntios 11:24), que, escrevendo antes da feitura dos Evangelhos e não tendo estado presente na Última Ceia, refere tratar-se de algo que «recebeu do Senhor». Paulo poderia ter registado que obteve essa informação da parte de apóstolos que ele conheceu pessoalmente, que estiveram presentes na Última Ceia; mas o que ele nos diz é que a informação lhe veio «do Senhor», pelo que temos de imaginar aqui uma situação que não seria atípica neste homem atreito a experiências místicas e visões.

O segundo problema é que a passagem de Lucas em que ocorre «fazei isto em memória de mim» não está presente em todos os manuscritos que nos transmitem este evangelho. Quando se trata desta passagem, estamos perante duas tradições textuais, uma delas «Lucas/longo»; e a outra, «Lucas/breve». Vejamos as diferenças:

LUCAS/breve (22:17-19): «E tendo recebido o cálice e tendo dado graças, disse: “tomai isto e dividi entre vós. Pois digo-vos: não beberei a partir de agora do fruto da vinha até que venha o reino de Deus”. E tomando pão e tendo dado graças, partiu e deu-lhes, dizendo: “isto é o meu corpo”.»

LUCAS/longo (22:17-20): «E tendo recebido o cálice e tendo dado graças, disse: “tomai isto e dividi entre vós. Pois digo-vos: não beberei a partir de agora do fruto da vinha até que venha o reino de Deus”. E tomando pão e tendo dado graças, partiu e deu-lhes, dizendo: “isto é o meu corpo, DADO POR VÓS. ISTO FAZEI PARA A MINHA MEMÓRIA. E O CÁLICE DE IGUAL MODO <TOMOU> DEPOIS DO JANTAR, DIZENDO: “ESTE CÁLICE <É> A NOVA ALIANÇA NO MEU SANGUE DERRAMADO POR VÓS”.»

A fraseologia em que Lucas/breve difere de Lucas/longo está realçada por meio de letras maiúsculas. É difícil não sentir que a redação de Lucas/longo se afigura confusa, porque repete o oferecer do cálice (situação sem paralelo nos outros evangelhos). Por outro lado, acrescenta a explicitação de que o corpo é dado «por vós» e o sangue «derramado por vós», explicitação presente em Marcos e Mateus, mas ausente de Lucas/breve. (Note-se que estas palavras «por vós», em grego, ὑπερ ὑμῶν, nunca ocorrem, a não ser aqui, em Lucas e em Actos dos Apóstolos.) E acrescenta, decerto a partir da passagem de Paulo, a frase «isto fazei para a minha memória». Não obstante o belo pedigree platónico desta palavra para «memória» (anámnēsis), não devemos fechar os olhos ao facto de ela nunca ser usada no Novo Testamento a não ser na passagem referida de Paulo, numa frase da Epístola aos Hebreus e na presente passagem de Lucas.

A tradição textual de Lucas/breve não é especialmente representativa em grego, pois só é transmitida pelo manuscrito conhecido por «D» (isto é, o Codex Bezae, do final do século IV). Mas conta bastante o facto de seis manuscritos latinos antigos – entre os quais o Codex Corbeiensis e o Codex Vindobonensis, ambos do século V – nos darem a ler a passagem na versão de Lucas/breve, o que significa que o texto latino desses manuscritos foi fixado a partir de um original grego que não tinha «fazei isto em memória de mim», nem o segundo oferecer do cálice, nem a explicitação de que Jesus morrerá «por vós».

Na ciência da fixação textual do Novo Testamento, é dado assente que a versão mais sintética de uma passagem tem mais probabilidade de ser autêntica do que uma versão mais prolixa da mesma passagem. Assim sendo, quem estuda o Novo Testamento de uma perspectiva universitária e crítico-histórica dirá que, na versão original do Evangelho de Lucas, Jesus não disse «fazei isto em memória de mim».

E esta não é uma conclusão a que chegou um iconoclasta chamado Frederico Lourenço em 2019, mas sim uma conclusão a que chegaram Brooke Westcott e Fenton Hort em 1881, na sua edição crítica do Novo Testamento, que tanta polémica suscitou no mundo cristão.

Conclusão depois fundamentada com mais rigor por D.C. Parker («The Living Text of the Gospels», Cambridge University Press, 1997, pp. 150-157) e por B. Ehrman («The Orthodox Corruption of Scripture», Oxford University Press, 2011, pp. 231-247).

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