‘Fahrenheit 451’ não resulta num filme sólido

por João Pinho,    11 Julho, 2018
‘Fahrenheit 451’ não resulta num filme sólido
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Numa distopia futurista adaptada onde não só os livros, mas todas as formas de transmitir conhecimento, desde pautas musicais até ao jornalismo, são abulidas e queimadas, os bombeiros transformaram-se na nova força de censura onde o fogo tornou-se no melhor amigo do homem nesta sociedade.

O grande problema de filmes baseados em livros clássicos, principalmente quando se trata de uma distopia, é que não existe tempo suficiente para imergirmos no mundo distópico. O que nos atrai tanto e, ao mesmo tempo, nos assusta nestes mundos, é a rotina mecanizada e a perda da liberdade que atinge até os nossos pensamentos mais profundos. O cidadão desses mundos tem medo de pensar de forma antagónica ao credo, por isso tem medo que até os seus próprios pensamentos possam ser o seu maior perigo, porque nada escapa ao regime ditatorial. E esta sensação de choque demora algum tempo a ser criada. Precisamos de percorrer o quotidiano da personagem principal, o herói sofredor, desde o seu trabalho ao tempo que passa em casa e, principalmente, conhecermos todos os pensamentos perversos dela. E é aqui que Fahrenheit 451 peca.

O filme passa demasiado rápido da lavagem cerebral absoluta da cultura criada ao longo de décadas e das gotas que têm como sintoma e objectivo a perda de memória para um rebelde, interpretado por Michael B. Jordan, com pensamento crítico e vontade de basear as suas ações no livre-arbítrio e num sentimento comum a todos os seres humanos: a curiosidade. E não é necessariamente por culpa do realizador e muito menos dos actores, mas sim da escolha do formato da história. Faria mais sentido escolher uma mini-série onde pudéssemos conhecer melhor todos os pormenores da sociedade e até melhorar as contradições das personagens.

Apesar destas dificuldades, claramente o realizador americano, Ramin Bahrani, e director de fotografia Kramer Morgenthau quiseram passar uma marca na imagem. Escolheram uma palete de cores, algumas que nos fazem lembrar o último filme da saga Blade Runner, que tanto dão um lado mais futurista ao enredo como um lado mais sombrio enquanto o fogo nos hipnotiza em câmara lenta ou enquanto Captain Beatty, interpretado pelo já conhecido Michael Shannon, sofre pelos sentimentos contraditórios de quem se atreveu a ler e escrever em segredo. Para além disto, Ramin Bahrani quis tentar, ao escolher uma sociedade não muito longe de nós em termos temporais, fazer algumas comparações com a nossa sociedade contemporânea que aos poucos substitui o conhecimento pelos algoritmos e figurinhas. O cineasta ainda adicionou alguns pormenores interessantes como um sistema com voz de Siriq eu nos controla a tempo inteiro ou as gotas que nos fazem perder a memória.

O desafio não era fácil e, no fim, não resultou num filme sólido, mas mesmo assim foi uma boa experiência que espero que resulte numa nova vaga de adaptações de filmes clássicos. Espero ver mais tentativas nos clássicos distópicos que ainda têm tanto para ensinar. Isto, claro, sem substituir os livros. E o realizador percebeu que nunca poderia fazer uma cópia literal da obra. Agora, talvez só mesmo lendo o livro.

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