Existe escrita no feminino?

por Cláudia Lucas Chéu,    23 Outubro, 2020
Existe escrita no feminino?
Cláudia Lucas Chéu / Fotografia de Vitorino Coragem
PUB

Há uma história que circula no meio literário sobre o momento em que Sophia de Mello Breyner foi apresentada a Miguel Torga, por um amigo em comum, numa conferência no Porto. Sabe-se que o célebre escritor português escreveu mais tarde um comentário à dita pessoa em comum, referindo-se a Sophia como “amiga muito bonita, pena escrever poesia”.
Para algumas autoras, não há nada mais ofensivo do que serem colocadas na secção “escrita no feminino” ou chamarem-nas de poetisas, em vez de poetas. É como se o género se antecipasse a anunciar o estilo da escrita. No entanto, para outras escritoras, essa categorização é tida como elogiosa, reconhecendo no género feminino uma espécie de distinção literária. É, de facto, uma questão há muito debatida: existe ou não uma escrita no feminino? É mito ou realidade?

Perguntas e mais perguntas

A expressão francesa écriture féminine tem origem no séc. XIX e refere-se à produção literária caracteristicamente feminina. Mas o que é isto do caracteristicamente feminino? É que a ideia de uma escrita feminina levanta questões sobre o próprio conceito de feminino. Partindo do pressuposto de que há uma escrita feminina e uma escrita masculina distintas, quais são então os traços de cada uma? Não poderá o feminino corresponder ao género biológico masculino, e vice-versa?Isabel Allegro de Magalhães serve-se das Mémoires d’une jeune fille rangée, de Simone de Beauvoir, como prova da existência de um discurso caracterizado pelo masculino, embora de autoria feminina, e apresenta, por exemplo, a escrita no feminino de Virginia Woolf como termo de comparação. Para Allegro de Magalhães, Beauvoir desenvolve uma escrita repleta de factos e datas, enquanto Woolf se caracteriza pela fragmentação do discurso. Mas não serão novamente os preconceitos a criar os paradigmas de género na escrita (racional = masculino vs. emocional = feminino)?

YES and NO

Segundo a controversa autora e feminista Monike Wittig, a mulher não pode ser associada a um tipo de escrita. Para a autora, ser mulher é uma construção, não uma realidade concreta. Assim, afirmar que existe uma forma característica da mulher escrever significa naturalizar uma espécie de escrita, a escrita feminina, considerando-a escrita da mulher. Na realidade, Wittig vem à pendura da teoria de Beauvoir, desenvolvida no livro O Segundo Sexo: “Não se nasce mulher, torna-se mulher.” Neste caso, subvertendo a semântica e a sintaxe, poderíamos dizer “não se nasce poetisa, tornam-te poetisa.”
Já Hélène Cixous diz que, ao contrário de Wittig, considera que a escrita no feminino “surge de um reencontro da mulher com o seu corpo”. Cixous afirma que “ao libertar-se do discurso centrado no falo, a mulher alcança a sua identidade, e a produção literária feminina torna-se inesgotável.” Ademais, para Cixous, a relação com o materno desempenha um papel fundamental nesta descoberta da escrita no feminino; embora acrescente que esta é possível para os dois sexos, homem ou mulher; quem escreve não condiciona a sua escrita unicamente pelo facto de pertencer a este ou àquele sexo. Concluindo, no entanto, que “é certo que é de mulheres a autoria da maior parte dos textos com marcas de feminino.”

Escritoras de diferentes nacionalidades

Há uns anos, num encontro literário em Paraty, no Brasil, três escritoras foram desafiadas a falar sobre o tema, num debate intitulado “Sexo, Mentiras e Videotape”. A escritora portuguesa Inês Pedrosa foi assertiva e disse: “Tretas. Não existe literatura feminina. Existe é boa e má literatura. Tudo o que seja criar guetos – na arte, na literatura, na vida – é estúpido.”  Já Cíntia Moscovich, escritora e jornalista brasileira, usou a ironia para dar uma resposta: “Se há uma literatura feminina, tem de haver uma literatura homossexual; se há uma literatura homossexual, tem de haver passiva e activa.” Contudo, Cíntia acabou por afirmar que, no seu entender, “sim, mas há um jeitinho feminino, sim”. A terceira interveniente no debate, a escritora e jornalista inglesa Zoë Heller, deu a sua resposta recorrendo à analogia de avaliação da escrita entre os géneros: “Quando a mulher fala da experiência feminina, é colocada num gueto. Ouve-se muito: ‘Ah, essa é uma questão feminina.’ Quando um homem fala da experiência masculina, o tema é universal.” Opinião esta partilhada pela escritora norte-americana Siri Hustvedt, que também acusou essa diferença; a discrepância de avaliação das temáticas, consoante a autoria, homens e mulheres. Hustvedt frisou que se uma mulher escreve sobre o amor, a obra normalmente é avaliada como literatura cor-de-rosa. Contudo, se a mesma temática for abordada por um homem, estamos no domínio da condição humana.
Sem respostas científicas, resta-nos reflectir acerca do tema e concluir que tanto na literatura como nas outras áreas, a arrumação por gavetas acaba por ser sempre maniqueísta excluindo uma possibilidade infinita de desarrumações. Meras tentativas de rotular o que mais interessa, o inefável e essencial – a escrita.

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.