Eunice Muñoz, a eterna rainha da representação portuguesa

por Lucas Brandão,    30 Julho, 2016
Eunice Muñoz, a eterna rainha da representação portuguesa
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Eunice Muñoz marcou e vem marcando as gerações de atores portugueses que se acumulam no decorrer do tempo. Evidência esta que aponta para a intemporalidade e para o indelével cunho desta figura na representação. Porém, é uma das múltiplas que dão a conhecer e a louvar o talento e a obra de uma atriz com raízes alentejanas mas que singrou num alcance nacional. Da Amareleja para os vários ecrãs e palcos de todo o país, emerge a imponente mas ainda com um toque subtilmente inocente de Eunice Muñoz, a eterna princesa da cultura portuguesa.

A futura atriz nasceu a 30 de julho de 1928 na vila de Amareleja, no concelho alentejano de Moura. Crescendo no seio de um casal de atores, foi bem cedo que a apetência pela encarnação de um outro alguém dominou os sonhos desta jovem. Em 1941, com somente 17 anos, estreou-se nas lides do teatro profissional na peça “Vendaval” num dos palcos mais conceituados do país, o Teatro D. Maria II. Despertando a atenção dos membros da Companhia Rey Colaço/Robles Monteiro, granjeia com facilidade um lugar regular nos seus trabalhos e inicia uma coleção de sucessos, tais como “Riquezas da Sua Avó” (1943) e “Labirinto” (1944). Estes trabalhos possuíam a particularidade de ser essencialmente redigidos e encenados por artistas portugueses, podendo este facto ser fundamentado pela conjuntura sócio-política vigente. Paralelamente a esta profissionalização da sua paixão, ingressou no Conservatório Nacional e na sua Escola de Teatro, terminando a sua passagem com uma cotação de 18 valores. Entretanto, tornam-se bem mais numerosos os trabalhos que desenvolve, integrando-se neles algumas partilhas de palco com nomes como Vasco Santana, Maria Lalande ou Mirita Casimiro.

Nunca desprimorando o teatro, Eunice aventurou-se na sétima arte logo em 1946, aparecendo no filme “Camões”, de Leitão de Barros. Com o papel desempenhado, conquistou o prémio de melhor atriz cinematográfica do ano para o Secretariado Nacional de Informação. Entre mais alguns trabalhos, casa-se pela primeira vez com o arquiteto Rui Couto e com ele dá à luz uma filha. Dois anos depois, retorna a mais um prestigiado palco luso, desta feita ao Teatro Nacional, protagonizando uma adaptação da obra de Júlio Dantas “Outono em Flor”. Com Palmira Barros, encenadora com quem já havia trabalhado de forma frutífera, surge como a personagem principal de “Espada de Fogo” e consolida o seu estatuto como uma das estrelas cadentes que iluminavam a representação com selo lusitano. Porém, e já bem dentro dos anos 50, decide retirar-se dos palcos durante quatro anos, originando reações de incredulidade por parte dos seus admiradores e pela comunicação social. No entanto, retorna ao Teatro Avenida, na capital do país, assumindo-se com a elegância e a vivacidade habituais na peça “Joana D’Arc”, de Jean Anouilh. Tanto a crítica como os seus fiéis e calorosos apreciadores deleitaram-se com a sua performance, dando razão ao estatuto consolidado nos trabalhos feitos tanto em cinema como em teatro. Na mesma década, em 1956, contrai matrimónio pela segunda vez, desta vez com o engenheiro Ernesto Borges, com quem teve quatro filhos. No que restou até ao início dos anos 60, Eunice assumiu papéis em peças de dramaturgos como o britânico William Shakespeare ou o italiano Luigi Pirandello.

Com a chegada dos anos 60 e trazendo estes no bolso a emergência da televisão, a atriz deparou-se com oportunidades duplicadas de exibir toda a sua imponência artística, registando a sua patente representativa no subconsciente dos portugueses. Para além disso, não se coibiu de arriscar em novos géneros para além dos comumente encenados. Por exemplo, no Parque Mayer, ao lado da companhia de Teatro Alegre, aventura-se na comédia. A televisão, porém, não surge na sua carreira somente por sua vontade mas chega-lhe em grande parte por força dos seus fãs, os mesmos que se queriam deliciar ao contemplar uma segunda vez as peças anteriormente assistidas. Trabalhos de autores como o russo Anton Tchekov (“O Pomar das Cerejeiras”) ou o francês Alexandre Dumas Filho (“A Dama das Camélias”) foram alguns que conheceram essa transposição para uma caixa que, embora não transmitisse o fulgor sensorial do teatro, permitia reviver esse toque íntimo e marcante. Também é nesta década que assume uma postura ainda mais empreendedora e proativa, criando com o também emblemático ator Raúl Solnado a Companhia Portuguesa de Comediantes (CPC), assente no Teatro Villaret. Após um terceiro casamento, agora com o poeta António Barahona da Fonseca e com quem também gerou uma filha, não descartou a sua paixão profissional e embarcou numa tournée nas então colónias portuguesas Angola e Moçambique. Essa tournée foi feita com a Companhia Somos Dois, criada por si e por José de Castro já na década de 70.

Nesse novo período de tempo, Eunice estreou-se a encenar e com uma peça do francês Jean Cocteau designada “A Voz Humana”. Na representação, integrou uma formação artística inovadora no Teatro São Luiz, onde assume as rédeas de José Régio. Importa também frisar que, não obstante o sucesso de “O Duelo”, protagonizado por si e por João Perry, a atriz também sentiu a influência da censura na sua movimentação artística. Uma das peças onde iria atuar, de nome “A Mãe”, de Stanislaw Wiktiewicz, foi proibida pouco antes de se estrear, levando ao diretor da companhia a demitir-se. Ampliando o seu alcance cultural, deu expressão à sua paixão pela poesia portuguesa, dando voz e alma aos versos de Florbela Espanca e de António Nobre no palco, em disco ou até em ambientes mais informais e discretos. A sua participação na representação não havia sido beliscada pelo incidente pré-revolucionário e, como tal, participou em outras obras de renome, tais como “Fedra”, da autoria do francês Jean Racine e pela qual viajou de novo pelo continente africano. Porém, só em 1978 regressa com consistência aos palcos portugueses, assumindo-se como uma das constituintes da companhia do reaberto Teatro Nacional D. Maria II. Encenadores como Filipe La Féria ou João Lourenço providenciaram-lhe mais um manancial de chances para estender o seu sorriso às personagens dramáticas que assumia. As peças que interpretava contavam com a autoria literária de nomes como o alemão Bertolt Brecht, o grego Eurípedes ou o austríaco Hermann Broch.

Os anos 80 e 90 solidificaram o legado de Eunice Muñoz a partir das plataformas cinematográfica e televisiva, participando esta em filmes e telenovelas que se perpetuaram na extensa herança cultural portuguesa. “Manhã Submersa” (1980), do cineasta Lauro António, e “Tempos Difíceis” (1987), do realizador João Botelho, viram Eunice a corroborar o brilho que contagiava os mais apaixonados pelos palcos e pelas suas incidências. Ao nível da televisão, a sua ilustre participação iniciou-se com a interpretação da famosa personagem D. Branca em “A Banqueira do Povo” (1993), de Walter Avancini. No mesmo par de décadas, a atriz tornou-se Oficial da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada (1981, tornando-se Grande-Oficial desta em 2010) e Grande-Oficial da Ordem do Infante D.Henrique (1991), coincidindo com os cinquenta anos da sua carreira dramática.

Ninguém consegue explorar o teatro português sem travar contacto com Eunice Muñoz. Não obstante a sua pluridimensionalidade artística, foi o palco que a viu florescer para o país e, consequentemente, para o mundo. Ao lado de nomes como Ruy de Carvalho, Amélia Rey Colaço, Vasco Santana, Raúl Solnado ou Beatriz Costa, Eunice emergiu como um dos nomes que caraterizou a vibração dos palcos pelos quatro cantos de Portugal. Uma eterna jovialidade que resplandece nos papéis que continua a interpretar. Uma eternidade que já ninguém lhe tira por ser conquistada com tamanha devoção e adequada dose de paixão. O amor por fazer arte falou mais alto em toda a sua vida. O amor de dar realidade à representação. O amor de acrescentar vidas às que já existem. O amor de relatar o mundo e as suas evidências através de um outro. O amor que a todos chegou, tanto através dos palcos como pelo pequeno e grande ecrãs. Eunice Muñoz surge assim, diante de todos os portugueses, como a rainha que nunca se viu sem a sua tiara, sendo esta o sorriso e o brilho que a acompanhou para onde quer que fosse. É assim, no auge desta brilhante realeza, que se evidencia Eunice Muñoz e a sua evidente e reluzente riqueza.

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