Eu nunca olho lá para fora

por Valério Romão,    28 Janeiro, 2020
Eu nunca olho lá para fora
“Morning Sun” (1952), pintura de Edward Hopper
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Uma sondagem da Morning Consult/Politico concluiu que apenas 28% dos eleitores americanos conseguem apontar, num mapa, onde se encontra o Irão. Tendo em conta que alguns até indicam sítios no oceano onde não existe terra ou então Espanha, não sei bem que pensar sobre a qualidade dos dados recolhidos, mas uma coisa é certa: a ignorância da maioria dos americanos sobre assuntos que ultrapassam as suas fronteiras é lendária. As incursões americanas no Iraque e no Afeganistão geraram sondagem com resultados em tudo semelhantes. Porventura, muitos de nós portugueses e europeus falhariam nos mesmos testes; estou no entanto convencido de que pelo menos na zona do alvo (médio oriente) a maior parte acertaria.

De certo modo, é absolutamente expectável que os americanos não nutram grande curiosidade acerca do mundo que os rodeia. Apenas quarenta por cento dos americanos têm passaporte. Não têm especial interesse em viajar para fora dos Estados Unidos da América, que geograficamente dispões de uma variedade notável de climas, paisagens e diversidade de flora e fauna. Para quê ir para um resort nas Filipinas quando se têm as praias de Flórida intramuros, ou para a Suíça fazer ski quando se tem Aspen? Mais a mais, dizem os próprios, “lá fora as pessoas geralmente não gostam de nós”. Os americanos, sobretudo desde o 11 de Setembro, têm medo do que está lá fora e estão convencidos de que o resto do planeta é ou está em vias de se tornar um albergue de terroristas prontos a se auto-detonarem à visão de uma t-shirt a dizer “I love NYC”. E é verdade: a maior parte do mundo olha para os americanos como a maior parte da turma olhava para o puto rico e meio tonto a quem se adivinhava um futuro garantidamente radioso sem que precisasse para isso de fazer grandes esforços.

A ignorância americana acerca do que a rodeia resulta, paradoxalmente, do enorme sucesso da sua cultura. Os americanos são auto-suficientes culturalmente. Ouvem música popular americana. Lêem autores americanos. Vão à Broadway. Assistem a filmes de Hollywood. Para quê mais? A própria imaginação colectiva americana está refém dessa particular distorção de óptica em jeito de auto-centramento: as invasões extraterrestres ou começam nos Estados Unidos ou têm neles o centro nevrálgico. Os Estados Unidos são, literalmente, um mundo dentro do mundo. Certa vez, estando eu numa festa de aniversário num subúrbio de Lisboa, calhei a confessar a um amigo que estava comigo à janela a fumar “tenho saudades de ter uma casa com alguma vista”. Ele virou-se para mim e disse-me “eu nunca olho lá para fora”. Os americanos são um tanto ou quanto assim.

Não é por isso maximamente surpreendente que desconheçam boa parte do que acontece em seu redor. Muitos de nós, aliás, temos talvez maior consciência extrafronteiriça mas igual deficiência no saber para além da rama do assunto. Somos todos taxistas quando nos cabe falar de algo que em grande parte desconhecemos mas que de algo modo nos puxa pelo nervo comentadeiro. Na noite da réplica iraniana à morte de Qasem Soleimani pelas forças armadas norte-americanas, que consistiu num disparo de uns 22 mísseis terra-terra (mais para consumo interno do que para destruir o que quer que seja) sobre bases americanas em solo iraquiano, vaticinava-se Facebook fora o princípio do fim do mundo ou, pelo menos, o início da terceira guerra mundial. Não aconteceu – praticamente – nada.

Mas o que me assusta, isso sim, é a possibilidade dessa ignorância generalizada se corporizar em alguém que concorre à presidência. O que me assusta é, como dizia alguém logo a seguir às últimas presidenciais americanas, é que os americanos possam eleger um presidente que é “uma espécie de caixinha de comentários com pernas, braços e boca”. Isso sim, assusta-me.

Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização

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