Erros do ‘Pai Nosso’

por Frederico Lourenço,    28 Março, 2018
Erros do ‘Pai Nosso’
‘Sermão do monte’ por Carl Heinrich Bloch
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Ficcionista, ensaísta, poeta, tradutor, Frederico Lourenço nasceu em Lisboa, em 1963, e é actualmente professor na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Traduziu a Ilíada e a Odisseia de Homero.

Quando saiu no Outono de 2016 o primeiro Volume da minha tradução do Novo Testamento, a primeira reacção adversa de que tive conhecimento foi de alguém que me veio dizer que «os católicos» estavam «em polvorosa» com a versão que aparecia do «Pai Nosso» na minha tradução do Capítulo 6 do Evangelho de Mateus.

Fiquei surpreendido com essa reacção, pois na edição que saiu em 2016 eu até tive algum cuidado na salvaguarda de uma ou outra expressão convencional, justamente para não ferir demasiadas susceptibilidades. Um caso flagrante é a forma verbal «perdoamos», na frase convencional «assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido», onde mantive o verbo conjugado no presente – e não arrisquei pôr aquilo que lemos, de facto, nos manuscritos mais antigos do Novo Testamento: «assim como nós perdoámos» (em grego, ἀφήκαμεν, portanto aoristo, que se deve traduzir neste caso pelo nosso pretérito perfeito, «perdoámos»).

A oportunidade dada pela Quetzal de aperfeiçoar alguns pormenores da tradução na 2.ª edição dos Quatro Evangelhos permitiu-me repor aquilo que está, de facto, no «Pai Nosso» na versão de Mateus (e só Mateus transmite o «Pai Nosso» de uma forma mais completa; o «Pai Nosso» de Lucas é uma síntese muito mais abreviada, com 38 palavras, contra as 58 palavras gregas de Mateus). «Perdoámos», em vez de «perdoamos».

O alcance desta pequena mudança em português – que se traduz apenas no acrescento de um acento agudo – é enorme.

Pois o que está implícito na oração que Jesus nos ensina, se a rezarmos como ele no-la ensinou, é que Deus perdoa, sim – mas nós temos de dar o exemplo, perdoando primeiro: «perdoa-nos as nossas dívidas [não são «ofensas»], tal como nós perdoÁmos aos nossos devedores».

A passagem paralela em Lucas (11:4) apresenta a forma verbal no presente e, talvez por isso, muitos manuscritos tardios de Mateus apresentam também «perdoámos» sob a forma de «perdoamos» (do mesmo modo como a maior parte dos manuscritos da Vulgata latina nos dão a ler o presente em Mateus, «dimittimus», e não o pretérito perfeito, «dimisimus»).

No entanto, os dois manuscritos mais antigos do Novo Testamento (o Codex Sinaiticus e o Codex Vaticanus, ambos do século IV) dão-nos a ler inequivocamente «perdoámos» no Pai Nosso do evangelista Mateus. Caso, talvez, para alguns de nós fazermos um ligeiro ajuste na forma como rezamos o «Pai Nosso».

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