Eric Nepomuceno: ‘O jornalismo no meu país acabou. Não existe’

por Mário Rufino,    24 Abril, 2018
Eric Nepomuceno: ‘O jornalismo no meu país acabou. Não existe’
Eric Nepomuceno
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Eric Nepomuceno, escritor brasileiro muito conhecido pelas traduções de autores latino-americanos (com as de Cortázar, Rulfo, Gabriel García Márquez e Eduardo Galeano ganhou por três vezes o Prémio Jabuti) esteve presente na 19ª edição das Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim. Tem o timbre de Barry White e uma simpatia difícil de igualar. Gosta de contar histórias e de envolver o interlocutor nas histórias que conta.
Foi junto à piscina do Hotel Axis Vermar, ao som do grasnar das gaivotas, que o autor brasileiro falou connosco sobre a política brasileira, a escrita ficcional e sobre traduções, sempre com o seu novo livro como motivo de conversa, Bangladesh, Talvez e outras histórias, recentemente publicado pela Porto Editora.

Como é que surgiu a ideia deste livro?  Foi no Festival Literário da Gardunha? 

Na Gardunha, eu conheci o Manuel Alberto Valente [editor da Porto Editora]. Ele é amigo de um amigo meu, que é um escritor argentino. E a gente se levou bem. Depois da Gardunha, eu fiquei uma semana em Lisboa. Fomos jantar, e ele foi muito cordial e muito amável. Eu ofereci uma antologia minha, por gentileza.
Nós tínhamos pensado num outro livro.

Voltei para o Brasil. Uns quinze dias depois, recebi um e-mail dele dizendo que aquele outro livro, que era de não-ficção, iria ficar para depois porque ele tinha gostado demais dos contos e queria fazer uma antologia.
Ele fez uma selecção e enviou-ma para eu aprovar. Este livro é filho da Gardunha.

Numa entrevista à TV Brasil (programa “Trilho de Letras”), disse que “em ficção você pode mentir, mas não pode falsificar”. É uma frase de Juan Rulfo. Qual é a diferença? 

É simples. Se eu acreditar numa determinada circunstância ou num enredo, se eu te conseguir convencer de que aquela mentira é verdade, não estou falsificando. Se eu inventar do nada e não acreditar, eu estou falsificando. Há uma diferença entre imaginação e fantasia. É exactamente a diferença entre a mentira e a falsidade.Falsa é uma coisa que eu sei que é falsa e nem eu acredito nela. Uma mentira é uma coisa em que posso acreditar.

É uma questão de credibilidade? 

Sim, é uma questão de credibilidade.

Nessa mesma entrevista disse que “A memória me dá a matéria-prima”. Muitas destas personagens lutam para manter a memória viva? Lutam contra as próprias armadilhas da memória? 

Nunca pensei nisso. Tudo o que está nesse livro aconteceu. Se não aconteceu, é verdade.

No conto Coisas da vida, um personagem diz o seguinte: “Quando desliguei, morria de pena de tudo. E então saí para caminhar no jardim gelado, à espera da improvável manhã.”
A solidão, a morte da inocência (como também no conto A mulher do professor) e o fracasso são os temas destes contos?  

Tem toda a razão. Lembro-me bem desse conto. É um conto de que gosto de ter escrito.
Você é a segunda pessoa que me diz que ficou um livro triste. O meu pai [entretanto falecido] não gostava de ler os meus livros de contos porque achava que eram tristíssimos e ficava com pena de mim. Eu acho que os meus contos são bem-humorados.

Por exemplo, nesse conto: Em 76, eu tive de fugir da Argentina, onde estava exilado, não pude voltar ao Brasil e fui morar para Madrid. Era a transição do Franco. Junto comigo, no mesmo voo, fugiu um grande advogado argentino de presos políticos e ficámos muito amigos até à morte dele. Eu fui morar para fora de Madrid, num subúrbio, chamado Majadahonda, lugar onde agora moram estrelas, jogadores de futebol. Naquela altura era um “pueblito” tão “pueblito” que teve festa quando inauguraram o único semáforo. Um dia ele me ligou tarde na noite dizendo que o bebezinho dele tinha nascido e sofrido uma operação de vida ou morte. Isto é real no conto.

Muitos anos depois, quinze anos depois, já de regresso ao Brasil, eu fui fazer uma palestra em Porto Alegre, lá no sul. Um amigo levou-me para ver uma exposição de fotos. Eu fiquei muito impactado com algumas fotos. Um dia, apareceram-me aquelas fotos na cabeça e eu misturei com a tristeza que tive em Madrid. Aí nasceu o conto. Tudo o resto é mentira. O conto foi nascendo assim. No fim, eu estava com uma tristeza tão grande que eu fiquei com pena de mim. Eu fecho o conto morrendo de pena de mim [risos].

Falou em Madrid, há também menções a outras cidades como Barcelona, por exemplo. Há um território afectivo? 

É muito raro ler num conto meu um nome da cidade, mas eu dou pistas. Quando eu falo no morro de Santa Luzia, quem é de Santiago de Chile sabe que estou falando de Santiago do Chile. Há menções. Não me lembro de nomear alguma cidade.

Duas: Madrid e Barcelona. 

Escapou da minha visão. Eu fui muito triste na Espanha porque eu não queria ter saído do Brasil. Saí e não pude voltar. Também não queria sair da Argentina, mas saí fugido.

Eu não queria ir para Madrid. Era uma cidade cor de cinza, uma cidade franquista. O Franco morreu, mas o franquismo continuou. Era muito triste. Hoje adoro Madrid, tenho irmãos fraternos, amigas, o que você quiser, mas naquele tempo foi muito pesado. Eu escrevi pouca ficção. Foram três anos na Espanha. Cada vez que eu escrevo imagens daquele tempo, é inevitável que o conto seja num tom menor. É inevitável porque é a lembrança de mim naquele tempo.

Em Dizem que ela existe, um personagem é preso pela polícia, talvez polícia política, mas ainda teve tempo para queimar papeis. Aconteceu consigo? 

Não, nunca aconteceu, mas é a pura verdade. É uma lembrança do meu tempo de estudante. Em 1967, ou 1966… É uma imagem que vem do meu tempo de universidade. Eu considero esse conto como uma peça de câmara musical com cinco movimentos. Foi uma encomenda. E eu não sei fazer textos de encomenda. Demorei meses com o editor pressionando. Era uma coisa política, mas eu não queria um panfleto; eu queria fazer uma coisa de emoção. Aí me veio uma ideia de cinco movimentos. Todos esses textos pequenos são histórias sobre solidariedade. Esse movimento que você menciona, em que o camarada é preso, ele está fugindo com um amigo da mesma militância, mas é preso enquanto o outro foge, consegue fugir. De repente, o outro volta e se entrega. Porquê? Ele já tinha escapado. Porquê? Porque o outro tinha sido preso e estava sozinho. Ele voltou porque preso sozinho era muito pior. Foi um gesto de solidariedade.

Este conto é muito fragmentado, mas ainda há outro conto mais fragmentado. Refiro-me a Quando o canário

Mas é uma história só. Se Dizem que ela existe é uma peça musical, o conto do canário é um filme. É um pai com um filho. Entre memórias dele e o presente, sensações….

Pensa logo de início nessa estrutura? 

Não. Eu não sou engenheiro. A escrita se determina, a história vem pronta. Eu sou dactilógrafo da minha memória. Uma imagem qualquer, um olhar, uma música, um vinho, a nuca de uma moça que caminha na minha frente, tudo isso é o gatilho para alguma coisa que eu não sei o que é.

Eu começo a escrever à mão, sempre. As minhas traduções são começadas à mão. Os textos de não-ficção são directos no computador. Eu sou um dactilógrafo muito rápido. Eu escrevo muito mais depressa no teclado do que na caligrafia. Aqui a palavra tem peso e tem o seu tempo. Quando eu começo a escrever tão rápido que eu não entendo a minha letra é a hora de passar para o computador. Aí o texto já decolou. Sobre a estrutura e o tempo, não me pergunta porque eu não sei.

A primeira frase de Um senhor elegante tem aquele jogo temporal que faz lembrar o mítico começo de Cem Anos de Solidão. Gabo é uma influência? 

Não, nenhuma. Fomos muito amigos até ao fim, sou o tradutor que mais traduziu obras dele, dois dos prémios Jabuti que eu ganhei são traduções da obra dele. Não há nenhuma influência literária. Teve uma influência muito grande na minha maneira de ver a vida e o mundo, podemos falar de influência literária indirecta. Quem Garcia Marquez influenciou e quis mostrar essa influência é escritor de porcaria.

Quem me influenciou na escrita? Eu vou copiar uma resposta do Hemingway: “Bach, Brahms…” A literatura é música. Tem harmonia, tem a pausa, tem o andamento, tem a dissonância. O Hemingway uma vez falou que quem escutar Bach vai entender a importância da pausa. Vou refazer a minha resposta: tudo é influência. O café da minha avó, a voz do meu pai… tudo é uma influência. Talvez, na maneira de escrever, eu pertença a uma certa literatura de escola norte-americana, que vem de Hemingway até Raymond Carver. Gosto da frase curta e do ritmo demarcado.

Confesso que estava à espera que me dissesse que eram os latino-americanos…

Não, nada. O Galeano talvez… Eu tive grandes amigos que eram grandes escritores latino-americanos. Foram fundamentais na minha vida. Terão sido sempre uma influência indirecta. Eu não tenho o tom de qualquer um deles.

Consegue traduzir, largar a tradução e começar a escrever ficção? 

Eu nunca faço uma coisa só. No entanto, se estou a traduzir um livro de ficção, eu não escrevo ficção.
Demorei três anos a traduzir O jogo da amarelinha, do Cortázar. Aí eu escrevi uns contos e vários livros de não-ficção.

Não há uma actividade primordial? É um tradutor que escreve ficção, ou um ficcionista que também traduz?

Se eu estou traduzindo, eu tenho um contracto com adiantamento e um prazo. Uma vez na vida, cumpri o prazo. A tradução tem o ritmo dela, também. Não adianta eu querer acelerar.

Se eu me trancar num quarto de hotel com tudo pago, eu escrevo um romance de quatrocentas páginas. Falsas. Todas falsas. A tradução é a mesma coisa. Se eu sinto que estou atropelando o ritmo dela, não vai dar certo. A função do tradutor não é traduzir. É uma relação conjugal de três partes. Eu tenho de ser fiel ao que o autor escreveu, eu tenho de ser fiel ao meu idioma e tenho que escrever no meu idioma o que ele escreveu no idioma dele.

É claro que gosto de receber prémios, sobretudo quando tem um bom cheque por trás, porém o maior elogio que um tradutor pode receber é o seguinte: Nem parece tradução. Não me paga o jantar, mas não há prémio melhor do que esse.

Muito jovem, fui morar em Buenos Aires. Comecei a fazer amigos escritores e a traduzi-los para que meus amigos no Brasil soubessem quem eram eles e o que faziam. Foi por afecto.

Disse que teve muitas dificuldades com o livro do Cortázar, demorou três anos… 

Não era dificuldade técnica. A tradução não estava boa. Era erro meu. Eu devia estar com a alma ruim, com a alma estragada.

Galeano foi o único autor – traduzi dezasseis ou dezassete livros – com quem eu revisava e negociava cada palavra. Os livros dele em português são muito diferentes do original porque ele comigo reescrevia muito. Ele morreu e deixou um livro. Foi terrível traduzir. O caçador de histórias é um belíssimo livro póstumo sobre a morte.

O ficcionista tem uma função? 

Eu vou recorrer a um grande crítico cubano chamado Ambrósio Fornet. No prefácio de um livro de Miguel Barnet, que se chama A História de Raquel, Fornet escreveu o seguinte: “Esta é a vida de Raquel tal como ela contou ao autor e tal como agora o autor conta a ela.” Esta é a função do ficcionista. A função da ficção é mentir até virar verdade. Não é competir com a realidade. A realidade é muito mais imaginativa.

Uma vez que esteve exilado, vê algum paralelismo entre o Brasil dessa altura e o de agora? Vê a democracia em perigo?

Em perigo? Total. Um golpe de Estado pela maior camarilha de bandoleiros da História do Brasil. Tirou uma presidente inepta, porém honesta. Quem roubava no governo PT agora assumiu o poder total. Nunca achei que nessa altura da minha vida… vi de perto o golpe no Uruguai, o golpe no Chile, golpe na Bolívia, da Argentina… eu nunca achei que fosse viver outro golpe nessa altura da minha vida. Se mudou? Mudou. Agora não tem mais general, agora tem juiz. Tem censura? Tem. Antes era uma censura feita pelos policiais, agora é pelos donos dos meios de comunicação. É um horror. E não se pode fazer nada.

Qual é o papel do jornalismo? 

O jornalismo no meu país acabou. Não existe. A única diversidade nos meios de comunicação no Brasil é uma diversidade de ecos de uma mesma voz, que é a voz do sistema.

Mas tem que haver uma solução… 

Eu não vou ver a solução. A minha geração não vai ver. O meu filho, que tem 42 anos, talvez veja.
O que essa camarilha de bandoleiros destroçou, entre 2014 e hoje, vai demorar décadas a reconstruir.
A direita furiosa do Brasil saiu do armário. Se eu tivesse 30 anos a menos e 100 mil euros a mais, eu saía do Brasil.

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