Éramos felizes e não quisemos saber

por Manuel Clemente,    4 Dezembro, 2020
Éramos felizes e não quisemos saber
Manel Clemente / DR
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Entrámos na reta final do já longo 2020. Com o vislumbre de uma vacina ao fundo do túnel, podemos finalmente começar a pensar num futuro melhor. Ao longo dos últimos meses, as nossas vidas transformaram-se numa enorme sala de espera, onde o contador de senhas tardava em chamar-nos. Talvez em 2021 chegue a nossa vez. Uma nova normalidade, um resgatar de afetos, um recuperar do tempo adormecido. Em sentido oposto ao da economia, as expectativas relativamente a um amanhã melhor crescem. Abdicámos deste presente aparentemente infértil, para projetarmos tudo o que ambicionamos para o pós-pandemia. Seguindo a lógica do “nunca mais bebo”, será que, após esta prolongada “ressaca”, não iremos esquecer tudo o que estamos a viver? No que toca a decorar as lições da História, o ser humano nunca foi um aprendiz dedicado. A juntar ao Alzheimer coletivo, podemos acrescentar uma insatisfação e insaciabilidade crónicas. Éramos felizes e não sabíamos. Agora somos alunos e será que temos consciência disso?

Vivemos num mundo profundamente lógico e racional, onde a procura por preenchimento é feita de fora para dentro. Olhamos para o exterior em busca de algo que nos faça sentir satisfeitos — seja uma boa refeição, sexo, dinheiro, uma relação, sucesso ou, neste caso, a “normalidade”. Aliado a uma fraca gestão de expectativas, o desejo de algo pode conduzir-nos a um abismo sem fim à vista. Desejar rima com excesso de futuro. Projetamos uma felicidade que não sabemos encontrar aqui e agora. Acreditamos piamente não ser possível sentir a paz duradoura, enquanto não alcançarmos o que desejamos. Tem sido assim a nossa vida toda. Inventamos sempre uma cenoura nova para perseguir. São sucessivas caças ao tesouro que nunca nos fazem sentir verdadeiramente afortunados.

Buda retratou muito bem esta situação ao compará-la a um peixe que quer morder o isco. Encadeado pelo instinto predador, o pobre animal não tem forma de saber que há um anzol escondido. À primeira vista, o isco é tão apetecível que só apetece morder. Assim que se deixa levar pelo seu desejo, fica agarrado e é apanhado. Connosco acontece exatamente o mesmo. Estamos sedentos para que fique “tudo bem” para, aí sim, sermos profundamente felizes. Entretanto, vamos alimentando as nossas ansiedades, corroendo a paz de espírito e ficando, cada vez mais, deprimidos. Da mesma forma que existe um anzol escondido no isco, também há um potencial perigo no objeto do nosso desejo. E se aquilo que estamos a viver agora for melhor que o amanhã? Não sabemos. Em 2019 também quisemos acreditar que 2020 ia ser o Ano. Se tivéssemos visto o anzol antes, teríamos aproveitado melhor aqueles 365 dias? Muito provavelmente.

Aceitar as limitações do presente requer ousadia, destreza e alguma criatividade. É sempre mais tentador acreditar que vai ficar tudo bem, em vez de aceitar que agora está tudo bem. Seja lá o que o “bem” for. Talvez exista uma ordem natural para o caos, incapaz de ser decifrada pelas nossas mentes limitadas. Talvez. A aceitação é o primeiro e mais longo passo para aliviar as dores de crescimento. Será que este mal veio por bem? Só mais à frente é que iremos saber.

Esta reflexão não se trata de um manifesto ao pessimismo e ao conformismo, bem pelo contrário. É saudável ambicionar um amanhã mais prolífico, sem dúvida. Como tão bem afirmou o escritor Neale Donald Walsch, em vez de desejos, talvez seja mais prudente ter preferências. Como é natural, todos preferíamos estar a viver um outro contexto, mais sereno, amigável e pacífico. Ainda assim, gosto de acreditar que nada é por acaso. Mais que não seja porque podemos sempre atribuir um significado à aleatoriedade. Essa interpretação depende estritamente de nós. Como escolhemos olhar para o presente? Já aprendemos tudo o que temos a aprender? O que podemos fazer melhor daqui em diante? Quer queiramos, quer não, aqui e agora é tudo o que temos. Se é perfeito? Longe disso. Se poderia ser melhor? Claro que sim. Um dia o futuro será presente. Nesse dia, será que vamos saber aproveitá-lo ou vamos deixar, novamente, para amanhã?

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