Era uma vez… uma “Branca de Neve” escravizada, sem o seu beijo

por Ana Monteiro Fernandes,    15 Setembro, 2019
Era uma vez… uma “Branca de Neve” escravizada,  sem o seu beijo
Ilustração de Ricardo Ladeira / CCA
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Se algo ficou das minhas estadias na aldeia, enquanto criança, na casa da avó, foram as histórias, muitas histórias. Sempre 5 ou 6 contadas logo de uma assentada porque assim eu o exigia (para desespero da senhora e gáudio meu) e isto quando não pedia para voltar a repetir a mesma umas 2 ou 3 vezes. O bom é que tive direito a todo o cliché associado aos contos e, isso, fica sempre gravado lá no baú da nossa primeira infância ― noites à lareira, no escano (casa antiga) a ouvir o crepitar da lenha, eu a moer o juízo à avó para contar mais, “só mais uma”,  e a avó a tentar, por todos os meios, persuadir-me para ir para a cama e já com uma ligeira vontade de me ir ao gasganete … enfim, quem nunca ?! As histórias não eram lidas, até porque a minha avó não tinha livros infantis em casa, nada disso, eram ‘contadas’ – daí advém a palavra ‘conto’, algo intimamente ligado à oralidade – o que só melhorava todo o quadro. Quando não se é um leitor exímio ou muito bom, há sempre uma tendência, nem que seja ligeira, para se ficar preso ao livro e ao acto da leitura. Uma vez que as pequenas histórias são óptimas para as decorarmos, então torna-se mais fácil para quem as conta apropriar-se delas,  ser mais espontâneo, acrescentar um ponto aqui e ali sempre que se quiser, tal como se estivesse a contar uma novidade a um amigo ou a ter uma conversa real. Acreditem em mim, este treino é maravilhoso e faz magia à mente. Daí podemos perceber a razão pela qual a maioria dos contos vem do povo, das raízes populares, sem aqui entrar em jogo a questão da classe social. Oralmente não há outra alternativa senão recorrer-se à espontaneidade e, para quem ouve, é isso mesmo que diverte.

A primeira de todas as histórias era sempre a Carochinha, depois vinha a Branca de Neve, a Gata Borralheira (na altura ainda não conhecia o nome Cinderela), a Capuchinho Vermelho, O Lobo Mau e os Sete Cabritinhos e, geralmente, acabava com a fábula do Lobo e da Raposa que eu adorava. Com séculos e séculos de tradição oral, os irmãos Grimm foram os principais responsáveis pela compilação em formato escrito destes contos, juntando-se a outros nomes igualmente importantíssimos que, também, vão ser abordados neste artigo como, por exemplo, Giambattista Basile e Perrault. Desde as suas versões originais até à forma como chegaram até nós muito se modificou. Convém relembrar que foram sofrendo alterações, até nas próprias edições dos irmãos Grimm. Na primeira edição lançada pela dupla, as histórias foram retratadas de forma mais fiel, mais crua e sem floreados, respeitando a tradição oral. Na última edição, como cedência ao gosto da classe média e erudita, os contos foram alterados, foram omitidas partes importantes  e ficaram, significamente, diferentes. Daí, quando se fala nas compilações dos dois irmãos mais conhecidos dos contos de fadas, convém relembrar que, para se ir directamente à fonte, não há nada melhor do que a primeira edição. Mais tarde, nasceu um senhor com o distinto nome Walt Disney (nada conhecido certo?), responsável pela primeira longa metragem de animação da história, a Branca de Neve, em 1937, e criador de uma empresa cinematográfica com uns tentáculos tão longos capazes de abarcar quase tudo no que concerne à animação e entretenimento infanto-juvenil. Então, ainda mais bonitinhos e floreados ficaram, tendo em conta os públicos infantis para os quais a Disney, no início, se dirigia.

Não nos podemos esquecer que a sociedade, embora com determinados aspectos que perduram, também se vai modificando – é a chamada mudança na continuidade – e é disso mesmo que todos acabam por ir atrás. Tendo em conta esse aspecto, e agora, o que resta? Desde uma adoração sem refreio até a um ódio visceral, desde o sonho até à brutalidade, especulações e acusações de contribuírem para a futilidade e rebaixamento da mulher, muito se tem dito sobre estas histórias de encantar e aterrorizar. Não quero entrar nesse jogo radical de opostos (nem tanto ao mar nem tanto à terra). O meu propósito vai ser, antes, reflectir sobre a importância da oralidade das histórias, a função principal destes contos e, por fim, discorrer sobre as diversas versões que, afinal, são mais vastas do que o monopólio Disney. A principal questão é esta. Por que razão é que passado tanto tempo ainda nos sentimos, de alguma forma, ligados a estas histórias? Convém relembrar que já haviam sido contadas à minha avó e a minha avó, por conseguinte, contou-as a mim, sem eu suspeitar que tivesse ouvido falar do velho Walt ou dos Grimm. Curioso que agora, em quase todos os natais, gosta de ver a Cinderela (Gata Borralheira) quando passa na televisão. A reacção é sempre a mesma, nunca falha. Primeiro ri-se muito, depois chega ao fim e diz, “oh, só fantochadas. Nunca ouvi dizer que os ratos e os periquitos tivessem ajudado a Cinderela a costurar o vestido. Sinceramente, este filme é só bicharada.”

Os contos como reflexo das sociedades

Grande parte dos contos que se pensam ser do norte europeu e fizeram a alegria do romantismo alemão (que Walt Disney amava), principalmente por aliarem, por um lado, a candura e, por outro, o terror, não têm uma data certa para o seu surgimento. O facto de terem sido transmitidos oralmente dificultava o estabelecimento de datas, assim como a lembrança da sua verdadeira origem. Portanto, quando se diz que, por exemplo, determinado conto tem origem em um determinado local, também é preciso ter cuidado porque é possível alguém rebater que, do outro lado do mundo, há uma outra história com aspectos bastante semelhantes. Confesso, portanto, que é difícil jogarmos aqui no campo das certezas. Mas, geralmente, considera-se a era medieval e anterior como o verdadeiro ponto de partida. Ainda sem Gutemberg (época em que os livros eram manuscritos e, por isso mesmo, um bem raro até para as classes mais altas) e sem Tesla e Edison, que nos deram esse bem precioso que dá pelo nome de electricidade e tornou possível todo o desenvolvimento tecnológico posterior, as histórias contadas à lareira constituíam a única forma de cultura criativa e imagética das populações, dos camponeses, acima de tudo. Era a forma de fabularem, terem o seu folclore e desenvolverem todos os aspectos mentais, de comunicação, socialização e criação que todo o acto de contar exige. Não liam livros, era verdade, mas liam palavras.

Outro ponto importante a considerar é a forma como a noção de infância e adolescência evoluiu. O trabalho infantil e a brutalidade dos pais não eram considerados maus tratos (ainda bem que isso mudou totalmente). Passada a primeira infância, transitava-se para a idade adulta e, de alguma forma, isso está explícito nos contos. Na versão dos irmãos Grimm da Branca de Neve, por exemplo, esta tem sete anos quando se perde na floresta e encontra a casa dos sete anões. Na versão da Disney, por alguma razão ela não aparece como uma criança, no máximo, como adolescente ou no final da adolescência. Conseguem imaginar, actualmente, uma criança de sete perdida e sozinha numa floresta? Mas mais desconcertante ainda, conseguem imaginar uma mulher adulta, para os nossos parâmetros, com inveja da beleza de uma criança? A adolescência e a infância só passaram a ser consideradas e levadas em conta com outros olhos após as duas guerras mundiais, antes disso ou se trabalhava, ou se trabalhava. Nas classes mais baixas, essa realidade era, ainda, mais pungente. Não admira, portanto, os contos estarem repletos de crianças obrigadas a trabalhos forçados e não haver tanto prurido no que diz respeito a pormenores mais aterrorizadores. Temos de perceber que as condições de vida eram muito mais duras e isso fazia, por si só, sociedades mais duras.

O facto dessas personagens, afinal, numa situação de exclusão, serem, posteriormente, transformadas em príncipes e princesas, não seria mais do que uma vontade catártica de reconhecimento dessas mesmas populações ou, então, a vontade de que algo bom acontecesse depois da calamidade. Por outro lado, também temos de reconhecer que é muito curioso, em alguns contos, serem os próprios aristocratas ou monarcas a receberem o castigo da exclusão e estarem, muitas vezes, numa situação inferior dos comuns mortais da sociedade. Tal leva-nos a outro ponto, numa época sem tablets, PCs, televisões e telemóveis, também não é linear que estes contos fossem pensados, apenas, para crianças – isso é uma suposição nossa. Depois, quem já esteve em acampamentos ou ouviu histórias à lareira sabe como os pormenores fantasmagóricos e assustadores brotam por si só.

Era uma vez … uma Cinderela sem fada-madrinha

Agora que já temos aqui um contexto devidamente preparado, vamos ao que interessa. No caso da Cinderela ou Gata Borralheira, como quiserem, é melhor deixar estar a bicharada até porque há mesmo bicharada metida ao barulho, mas já lá vamos. Se há conto com várias versões e repercussões em outras partes do mundo, é este mesmo. A par das versões dos irmãos Grimm, de Perrault e de Basile (os dois últimos, respectivamente, poetas e escritores do séculos XVII e XVI, que também se dedicaram aos contos de fadas) estima-se que haja versões muito mais antigas com, aproximadamente, 1000 anos. Segundo um artigo do Observador, baseado numa publicação do ABC, há versões da história que remontam à antiga China, mas também uma muito significativa que faz a ponte com a Grécia e África. Segundo esse mesmo artigo, essa versão diz respeito a uma menina grega, Ródope que, pela sua imensa beleza, foi raptada por piratas egípcios para ser vendida como escrava. Uma vez no Egipto, foi comprada por um homem que, independentemente da sua bondade, deixou-a à sua sorte no meio das outras mulheres que moravam em sua casa. Por Ródope ter vindo de um país diferente, trataram-na mal e votaram-na a fazer os trabalhos mais pesados. Como amigos, só tinha um bando de passarinhos, um macaco e um velho hipopótamos. Foi, então, que o Imperador decidiu organizar um banquete e convidar todas as pessoas. Ródope queria muito ir mas não a deixaram. Decidida a ir à  revelia, pôs a sua melhor roupa e calçou uns sapatos de ouro. Um falcão, no entanto, passou por ali e levou os sapatos ao Imperador. Este pensou que era um sinal divino para se casar com a dona e assim o fez. Encontrou Ródope, os sapatos serviram-lhe e casaram.

A versão de Basile é, já, muito diferente com madrastas, fadas, árvores mágicas e o nome Gata Borralheira (a primeira vez que este aparece). Mas é, também, onde ocorre o primeiro crime da nossa protagonista. Nesta versão, o pai de Zezolla (o nome da gata borralheira) enviuvou e casou uma segunda vez. Como a madrasta era bastante má para a enteada, Zezolla queixava-se continuamente à sua governanta, de quem gostava muito. Queria que esta fosse, antes, a mulher do seu pai. Então, Carmosina (o nome da governanta) disse-lhe que a situação se resolveria se Zezolla pedisse à madrasta para lhe dar um vestido velho e já carcomido. Pelo prazer de ver a enteada andrajosa, a madrasta não iria recusar. Então, quando esta se curvasse na arca da roupa velha para ir buscar o vestido, Zezolla só teria de deixar cair o tampo da arca no pescoço da madrasta para a matar. A nossa Gata Borralheira assim o fez e convenceu o pai a casar com a governanta. Mas, para mal de seus pecados, Carmosina afinal tinha mais 6 filhas, trouxe-as para o palácio, obrigou Zezolla a ir para a cozinha e passou a chamá-la Gata Cinderela ou seja, Gata Borralheira. Nesta versão, a fada-madrinha não aparece, literalmente, a Cinderela, mas há fadas. Quando o seu pai, que aqui também a negligenciava, teve de fazer uma viagem a Sardenha (terra das fadas), Zezolla quis que este pedisse à rainha das fadas que lhe enviasse algo. O homem assim o fez. Foi, então, que Gata Borralheira passou a ter na sua posse uma árvore mágica capaz de lhe conceder tudo o que precisasse.

A versão de Basile não constituiu, entretanto, o primeiro registo escrito do conto, na Europa. Antes, já havia aparecido no livro de Bonaventure des Périers, Les Nouvelles Recreations et Joyeux Devis, de 1558. Em 1501 apareceu, igualmente, num sermão entregue em Estrasburgo. A versão de Basile é, no entanto, a primeira  mais detalhada e longa. Por isso mesmo, a mais lembrada como sendo a primeira versão escrita.

Apesar da princesa cândida nesta versão ter matado, mais escabrosa ainda é a versão dos irmãos Grimm. Nesta versão, as irmãs chegam a cortar os próprios dedos dos pés e o calcanhar para poderem enganar o Príncipe e calçar os sapatos. No final, quando as irmãs aparecem no casamento de Cinderela, as pombas começam a bicar-lhes os olhos. Não há resquícios de fadas nesta versão, apenas uma árvore e as duas pombas provenientes do túmulo da mãe de Cinderela que a ajudam e lhe concedem tudo o que menina pedir. Neste caso, simbolizam o espírito da mãe. Há, aqui, uma curiosidade interessante. Na versão dos Grimm, há uma parte em que as irmãs atiram uma série de grãos, ervilhas e lentilhas para as cinzas do fogão e obrigam a Cinderela a separar os grãos bons dos maus. Isto faz-me estabelecer a ponte com Eros e Psique: um dos quatro trabalhos que Afrodite dá a Psique consiste, precisamente, na separação de grãos. Há, ainda, um outro conto russo em que uma menina, Vasalisa, também vivia com a sua madrasta e duas meias-irmãs terríveis. Estas mandaram-na atravessar a floresta para ir a casa de uma suposta bruxa pedir fogo mas, afinal, queriam que a bruxa a matasse. Essa mesma bruxa mandou-a fazer uma série de trabalhos, entre os quais separar grãos também. Neste conto não há Príncipes, apenas a capacidade de Vasalisa cumprir as tarefas da bruxa e chegar a casa mais segura de si, com a capacidade de se libertar da madrasta e das irmãs. A menina não tinha, igualmente, uma fada-madrinha, mas uma boneca mágica dada pela mãe, no leito de morte, que lhe fazia as vezes.

A versão da Cinderela de Perrault é a que se aproxima mais da versão da Disney, apenas com uma diferença: no final da versão de Perrault, a madrasta e as irmãs são perdoadas e arrependem-se, na versão da Disney isso não acontece. Outro aspecto que merece ser ressalvado é que a ligação da maldade à fealdade e da beleza à bondade está muito mais demarcado no filme da Disney, de 1950. Nas versões originais, a protagonista é sempre descrita como bela, é verdade. Mas, na versão dos irmãos Grimm, por exemplo, as irmãs até são caracterizadas como bonitas, embora malévolas.

Quanto a problemas familiares, quem os teve foi também a Branca de Neve. Enganam-se, no entanto, caso pensem  que houve beijo no final.

Mas, então, e o beijinho da Branca de Neve?

Pois é, mais um caso de uma jovem vítima de maus tratos familiares, como a Cinderela,  que tem de percorrer uma floresta, como a Capuchinho Vermelho, e que acaba por ser desperta por um beijo, como a Bela Adormecida. Estamos a falar, nem mais nem menos, da menina de cabelos tão pretos como ébano, lábios tão vermelhos como o sangue e pele tão branca como a neve.  Ela é, isso mesmo, a Branca de Neve.

Mais uma vez, não podemos jogar no campo das certezas quanto à altura em que o conto surgiu. Mas, pelo que se sabe, foi o nosso já conhecido Gianbattista Basile que se responsabilizou pelo que se consta ser o primeiro registo escrito do conto, em 1634, desta feita com o título A Jovem Escrava. Comumente, a Branca de Neve é apontada como sendo do folclore tradicional alemão, porém, a história da jovem escravizada de Basil, considerada a verdadeira precursora, também é apontada como tendo influências da tradição oral italiana. No que diz respeito, então, à primeira versão de 1634, Cilla é irmã de um Barão e, enquanto brincava com outras donzelas da sua idade no jardim, descobre com as suas amigas uma rosa em pleno desabrochar. Decidem, então, fazer uma brincadeira: quem conseguir pular em cima da rosa, mas sem lhe tocar ou fazer cair as suas pétalas, ganha algo no final. Todas saltam mas sem sucesso. Quando chega a vez de Cilla, esta só faz cair uma pétala, mas, sem ninguém reparar, apanha-a do chão e engole-a. Passados três dias, a menina descobre que está grávida dessa mesma pétala e, mesmo tentando esconder a gravidez, dá à luz uma linda menina, Lisa. Várias fadas ocorrem para lhe dar a sua benção e dons, mas uma em particular amaldiçoa-a da seguinte forma,  quando chegar aos sete anos, a mãe esquecer-se-á da escova nos cabelos da menina enquanto a penteia, e esta morrerá. Assim aconteceu.

Pensando a mãe que a filha estava morta, coloca-a em sete caixões de cristal, num quarto recôndito do palácio. Quando Cilla morre confia a chave ao Barão, o seu irmão, ante a promessa de nunca o abrir. Mais tarde, já quando o barão é casado, a mulher descobre e abre o quarto. Quando vê Lisa nos caixões, extremamente bela, começa a espancá-la brutalmente, desferindo-lhe golpes na cabeça, deixando-lhe os olhos roxos e os lábios ensanguentados. Ante tal brutalidade, o pente sai do cabelo da menina (afinal não estava morta) e acorda. Quando o Barão chega a casa e vê Lisa de tal forma desfigurada que não a reconhece e pergunta à mulher quem é a menina, esta mente-lhe e diz que é uma escrava. Dessa forma, Lisa passa a condição de escrava e continua a ser brutalmente agredida pela mulher do seu tio. Uma vez, o Barão ausenta-se para uma feira e pergunta a todos da casa, inclusive a Lisa, o que pretendem que traga. Lisa responde que quer uma boneca, uma faca e uma pedra de amolar. Quando o tio lhe entrega o que foi pedido, a menina, escondida, começa a contar toda a sua vida para a boneca e ameaça matar-se com faca, afiada na pedra, caso a boneca não lhe responda. O tio, por sorte, ouve tudo e intervém a tempo. É então que afasta Lisa da mulher, deixa-a recuperar dos maus tratos desferidos e envia a sua esposa, de novo, para casa dos pais. Como recompensa, deixa a menina casar-se com um homem da sua escolha. Esta versão não tem espelho, floresta nem anões nem beijos mas, além de ter algumas semelhanças com a Bela Adormecida, continua a insistir com o número sete.

É pelos irmãos Grimm que passamos a conhecer os vários pormenores que, actualmente, associamos à Branca de Neve: a madrasta, a rainha, o espelho, a maçã, a floresta, os sete anões, o príncipe e o nome Branca de Neve. Mas continua a não haver beijo e, nesta versão, neste caso, a madrasta tem um fim mais malvado. Uma das grandes diferenças face à versão que conhecemos actualmente, esquecida graças ao filme da Disney, é que a madrasta da Branca de Neve vai três vezes, não apenas uma, à cabana dos sete anões. Da primeira vez, tenta matá-la com um laço ao apertá-lo demasiado na cintura da protagonista; da segunda é com uma escova de cabelo (neste aspecto em particular, fazendo uma ponte com a versão de Basile) e, na terceira vez, aí sim, com uma maçã envenenada. Quanto ao Príncipe, este aparece no final mas não a beija. A Branca de Neve acorda porque, ao tentar levar o caixão para o castelo, o seu amado tropeça e faz o caixão estremecer. É então que a Princesa cospe o pedaço de maçã e acorda. Quanto ao final da história, a madrasta vai à festa de casamento da enteada. É, então, que a obrigam a usar umas botas de ferro em brasa e dançar até morrer. Mais uma vez relembro, a protagonista tinha, apenas, sete anos quando se perdeu na floresta.

Recentemente, surgiu na imprensa (BBC, Público e MAGG)  a descoberta de que a Branca de Neve poderia muito bem ter existido. Isto, porque foi encontrada a lápide de Maria Sophia von Erthal, que vivia no castelo de Lohr am Main, no norte da Baviera, Alemanha, no século XVIII. Vivia com o seu pai e com a madrasta muito dominadora que favorecia os filhos biológicos. No conto, a madrasta tinha um espelho mágico, ao que parece a zona de Lohr era famosa pelo fabrico de vidro e, ainda mais coincidências, o pai de Maria Sophia tinha uma fábrica de espelhos. Existia, igualmente, por perto, uma floresta conhecida pelos seus animais perigosos e, para se chegar às minas da Baviera, era necessário atravessarem-se sete colinas. Lembro que, no conto dos irmãos Grimm, a Branca de Neve atravessou sete colinas para chegar à casa dos sete anões. Mas vamos por partes.

Mais uma vez, não podemos falar em certezas, mas há provas subtis que os irmãos Grimm também levaram em conta a versão de Basil, muito mais anterior à vida de Maria Sophia. A fada que castiga Lisa diz que o feitiço se cumprirá quando esta completar sete anos; no conto dos irmãos Grimm, a madrasta ordena o assassinato da enteada aos sete. Outra semelhança é a questão da escova. No conto dos Grimm, a segunda vez que a madrasta a intercepta na casa dos anões é com a escova do cabelo; no conto de Basil, é a escova que provoca o sono da menina. Outro ponto, sim, na versão de Basil, Lisa é de origem aristocrática e vive no palácio, também. Mas toda esta associação com o caso real é muito interessante. Mostra, afinal, como os contos acabam sempre por reflectir aspectos sociais. Relembro o que disse sobre a questão da infância e seus direitos no passado, que eram inexistentes. Não é, portanto, de espantar que, mesmo sem ter uma ligação directa ao conto, estamos perante um caso em que a arte imita a vida ou em que a vida imita a arte. Mas, como na perspectiva dos irmãos Grimm, o conto é alemão e como viviam, até, perto de Lohr (fica apenas a 50 quilómetros de Hanau, onde nasceram), é normal que tivessem aproveitado a geografia da região para colocarem mais descrições que não estavam tão bem estabelecidas na versão de Basil. O que me faz dizer que o conto tem raízes mais antigas à história de Maria Sophia, mesmo na versão da dupla irmãos, é o facto de, numa primeira versão que os Grimm abafaram, a Branca de Neve não ter sido subjugada pela madrasta, mas pela própria mãe. Já vamos a isso. Primeiro, temos de visitar uma outra bela que gostava muito de dormir.

Afinal … o Rei da Bela Adormecida já tinha uma outra Rainha.

Estamos a falar de um conto que, sem surpresas, tem várias versões entre si, mas que também foi o mais contestado pela passividade da princesa. Em primeiro temos a versão de Basil, intitulada O Sol, a Lua e Talia. O pai de Talia (nesta versão o nome da protagonista), um distinto lorde, pede a astrólogos e adivinhos para preverem o futuro da sua filha. Estes dizem-lhe que um pedaço de linho causará a morte prematura de Talia. O dia chega e todos pensam que a menina está morta. O pai, com o desgosto, coloca-a num trono de veludo, fecha as portas e abandona a casa. É então que um Rei chega, sim, tem relações com ela (uma violação) e vai-se embora. Ainda inconsciente, Talia dá à luz dois gémeos, Sol e Lua, e um dos gémeos começa a sugar fortemente nos dedos da mãe. O pedaço de fio de linho que estava preso num dos dedos de Talia sai e esta acorda.

Há aqui uma outra parte da história totalmente desconhecida para nós. Afinal, havia outra e o nosso rei aproveitador era mesmo casado. Depois de regressar ao local, de ter visto os gémeos, ter explicado o que aconteceu a Talia e de lhe ter prometido que um dia a levaria para o palácio (ingenuidade), este volta para o seu reino. Como o inconsciente e os sonhos sempre nos traem (o que Freud e Jung diriam disto) num dos seus sonhos o Rei chama por Talia e pelos seus filhos. A Rainha, astuta e desconfiada, suborna o secretário do Rei, descobre a verdade, manda uma carta (fingindo que seria o seu esposo) e pede para a nossa bela lhe mandar os gémeos. O que ela queria, na verdade, era mandar cozinhar os bebés e dá-los a servir ao seu marido (verdade), mas o cozinheiro real esconde as crianças e serve, antes, sem a rainha saber, carne de cordeiro ao Rei. Eis que chega o dia em que a Rainha manda vir Talia com o intuito de a queimar viva. O rei chega a tempo de impedir a acção e queima a mulher juntamente com aqueles que o traíram, excepto o cozinheiro. Talia, o Rei e seus filhos viveram, depois, felizes.

Perrault não foi tanto ao pormenor na sua versão que, aliás, é muito mais parecida com a que conhecemos actualmente. Inclui, também, esta segunda parte de Basil mas quem tenta comer as crianças é a mãe (descendente de um ogre) do Príncipe e não a mulher. O Príncipe já não viola a princesa (nesta versão a Bela Adormecida já é filha dos monarcas), só a beija. Mas ficam a conversar, gostam muito um do outro e casam-se em segredo (nesta história não há mulher oficial). É então que têm dois filhos, Aurora e Dia, que a própria avó tenta comer. O Príncipe, no entanto, descobre tudo e a mãe acaba por cair na própria armadilha que preparou, um tubo cheio de cascavéis para matar a nora. Apesar das sessões de terapia que o galã deve ter precisado para digerir o facto de que, afinal, descendia de uma ogre que queria comer os próprios netos, viveram felizes para sempre.

A versão dos irmãos Grimm é a mais próxima da versão actual (sem dúvida) e tudo acaba com um simples e cândido beijo. Os irmãos optaram por separar as histórias. A versão da Bela Adormecida tem como título ‘Briar Rose’, o nome da princesa, mas incluíram na primeira edição da sua colectânea de contos um outro intitulado  A sogra, muito semelhante e igualmente assustador.

É de notar as parecenças, neste caso, entre a primeira versão da Branca de Neve, de Basil, e a da Bela Adormecida (mesmo nas versões de Perrault e dos irmãos Grimm). Tal como a segunda princesa, Lisa é amaldiçoada por uma fada, abençoada por outras e escondida quando cai num sono que se pensa a sua morte.  Mas, por este prisma, também podemos dizer que há semelhanças entre a Cinderela e a própria Branca de Neve, uma vez que ambas foram escravizadas e negligenciadas por quem deveria olhar por elas.

As mudanças das histórias nas edições dos irmãos Grimm

Segundo uma edição nova, de 2014, do primeiro e segundo volumes da colectânea organizada pelos irmãos Grimm publicados, respectivamente, em 1812 e 1815, e sob coordenação de Jack Zipes, o desejo da dupla ser honesta e fiel à tradição oral era, mesmo, verdadeira. Até porque ainda eram novos e sem experiência suficiente para terem a iniciativa de fazerem essas alterações. Por isso, quem lê essas primeiras edições originais do início do século XIX, com o título Kinder-und Hausmärchen (Contos para crianças e para o lar) fica mesmo impressionado pela quantidade de pormenores sangrentos e pelo aspecto incompleto e incisivo das histórias. É verdade que, antigamente, não havia a tendência (de longe) de se protegerem os mais novos da brutalidade da vida. Por isso mesmo não é de espantar que a primeira colectânea da dupla alemã esteja repleta de crianças que se vêem abraços com o perigo, com o assassínio e a escravidão.

Houve, no entanto, algo que os traiu: Jacob e Wilhelm Grimm não saíram pela Alemanha e Europa fora, pessoalmente, à procura desses mesmos contos orais. Apenas fizeram isso uma única vez para ouvir, directamente, da boca das mulheres do povo uma série de contos que conheciam. Para o resto, contaram com os parcos registos escritos existentes e a ajuda de académicos com a partilha das histórias que já conheciam. Eles já eram, por si só, brilhantes filólogos e escolásticos e, por isso mesmo, faziam o trabalho à secretária. Era para essa mesma classe que a colectânea se destinava, por isso mesmo, aumentavam as pressões dessa mesma classe para os contos serem alterados, eliminarem-se as partes mais escabrosas como, também, havia o apelo para florear e tornar mais artístico o aspecto cru e incisivo dos contos orais – no fundo, queriam-se histórias mais refinadas e pensadas. Os escrúpulos de Wilhelm, principalmente, foram preponderantes para essa mesma cedência. Uma das primeiras alterações foram mesmo aos contos da Branca de Neve e de Hansel e Gretel já, por si, bastante sugestivos. Segundo esse mesmo livro de 2014, preparado por Jack Zipes, na primeira edição publicada pelos irmãos Grimm, afinal, não eram as madrastas as agressoras e as más da história mas, sim, as próprias mães. Essa ideia, por ser demasiado desconcertante e ir contra à ideia sacralizada da maternidade, foi alterada e posta de parte.

Após o primeiro livro seguiram-se mais 6 edições com a última a ser lançada em 1857. Desde a primeira até à última edição, foram várias as histórias que sofreram alterações, entre as quais a Rapunzel. No caso de Rapunzel, por exemplo, na primeira edição publicada trata-se de um conto curto, incisivo e provocador. A  protagonista chega a engravidar do Príncipe enquanto este ainda a visita na torre. Aliás, a sua guardiã descobriu que ela estava grávida porque esta chegou-lhe a perguntar por que razão as roupas já não lhe serviam e estava a engordar. Na segunda edição da colectânea dos Grimm, lançada em 1919, tal já é omitido. A guardiã descobriu que o Príncipe subia à torre porque Rapunzel lhe perguntou porque é que o seu amado era mais leve que a sua guardiã, mais pesada. No primeiro livro aparecia, igualmente, o conto Como algumas crianças brincavam no matadouro que, nas edições posteriores foi omitido. Nesse conto, mais uma vez curto, um grupo de pequenos rapazes e raparigas, de 5 e 6 anos, brincavam aos talhantes e cozinheiros. Então, uma fazia de talhante, outra de cozinheira, outra de ajudante para ajudar a recolher o sangue para chouriças, e a última de porco. No que era suposto ser uma brincadeira inocente, a criança que fazia de porco chegou, mesmo, a ser assassinada.

O menino responsável pelo assassínio é apresentado ao juiz que, sem saber muito bem o que fazer neste caso, decide dar a escolher ao rapaz uma maçã, numa mão, ou uma moeda de ouro, na outra. Se o menino escolhesse a moeda, seria preso, se escolhesse a maçã seria libertado. A criança escolheu a maçã e saiu em liberdade. Nesta história, o sentido estrito e rígido de justiça e moralidade não ganhou, no final, uma vez que a criança saiu em liberdade. É muito curioso porque, ante a brutalidade do acto, estamos perante um dilema nada fácil de resolver, daí a dificuldade do juiz se decidir: como é que funciona a relação da maldade e inocência? Como é que se enquadra um mau acto com consequências reais, realizado sem consciência? A inocência e actos maus surgem sempre em separado ou, se não houver orientação, também se cruzam?

Há, aqui, aspectos importantes. Em primeiro lugar, seriam estes contos, realmente, para crianças? Quanto muito eram histórias sobre crianças e as suas condições de vida (muitas delas aliás). Os irmãos Grimm não podiam controlar o facto de estes serem contados aos mais novos. Se repararmos com atenção, quase todas as histórias são sobre petizes mal-tratados ou que maltratam, marginalizados ou escravizados (sujeitos a canibalismo) a abandonar, só e apenas, a sua primeira infância. Isto dá-nos outra conclusão. Os contos orais dão-nos pistas sobre as sociedades que os criaram e estão sempre em mutação. Por isso começaram de forma tão bruta e, actualmente, são mais suavizados. Por isso mesmo, independentemente dos ogres, das fadas e tudo mais, há o conto da Branca de Neve e a descoberta de uma história real semelhante e, mesmo assim, não podemos dizer se foi a arte que imitou a vida ou a vida a arte. Só recentemente é que começamos a ligar estes contos à bondade sempre bondosa. Afinal, indo à sua raiz, descobrimos que há falhas de personalidade em algumas destas versões. A Cinderela matou, o seu pai foi mesmo considerado negligente na versão de Basil, a Branca de Neve (Lisa) fragilizou-se e tentou matar-se perante a sua boneca, a mãe desta fez batota com a rosa, o rei da Bela Adormecida não era tão encantado e a Rapunzel engravidou à revelia da sua tutora.

O que aconteceu foi algo estrondoso, mesmo assim, a personalidade destas personagens manteve-se à tona e o que guardavam de bom não pereceu. As mudanças posteriores permitiram a actualização destes contos, o que é óptimo porque estamos a falar de uma mutação viva, mas,  por um lado, acabou com o que tinham de melhor. Não, não falo do aspecto do terror apenas pelo terror em si. É porque os protagonistas, na sua passagem para a idade adulta, têm de aprender a encontrar o seu lugar no mundo (que sim, pode ser difícil mesmo sem ogres) e definirem perante isso a sua personalidade longe da protecção da infância. Isso acaba, sempre, por ser actual, daí a constante analogia com a floresta que se tem de atravessar. É como se a própria vida lhes perguntasse, “foi-te mostrado o mundo, e agora? És capaz, ante a realidade, de manter a matriz da tua personalidade e o que te faz como pessoa, na tua essência, ou vais deixar que a realidade que vês te molde?

Mesmo com aspectos datados, há conceitos intemporais nestes contos: a vaidade e a influência do reflexo do espelho em ti (a relação do reflexo com a nossa persona, a nossa consciência, a forma como te vês e como os outros te vêem), a cedência à tentação e a sobrevivência a isso mesmo (como a maçã), a forma como a vida te tira do teu lugar e como regressas mais conhecedor de ti (como se atravessa a floresta). Até a representação da árvore neste contos, que acabou por ser a antecessora da fada-madrinha, representa o cuidado, a nutrição, o núcleo e formação da nossa psique, o modo como crescemos e nos moldamos. Há outro símbolo fundamental, a rosa, de uma forma ou de outra sempre presente, que representa não só fertilidade mas, também, o desabrochar, o crescimento e a passagem do tempo com a queda das suas pétalas.  No fundo, no fundo, quem é que é velho de mais para as histórias? Mas, bem lá mesmo, mesmo no fundo, o que torna os contos tão divertidos é o facto de todos nós podermos contribuir com mais uma ideia, até porque quem conta um conto, acrescenta um ponto.

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