Era uma vez um campo de concentração no século XXI

por Cronista convidado,    15 Setembro, 2020
Era uma vez um campo de concentração no século XXI
Créditos do filme “Mulan”, da Disney
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Até que ponto as considerações económicas se devem sobrepor às questões de Direitos Humanos? Infelizmente, existem vários atentados à liberdade e à democracia, muitos desses realizados por importantes intervenientes internacionais, cujas ocasionais atrocidades suscitam o desejo de respostas firmes, o que nem sempre é possível ou ideal.

A China e o Partido Comunista Chinês têm sido acusados, ao longo dos anos, de serem responsáveis por atos desumanos de desrespeito dos direitos fundamentais. Talvez o exemplo mais chocante seja a perseguição étnica do povo Uigur. Os Uigures são um grupo étnico muçulmano da região da Ásia Central que vive maioritariamente no Noroeste da China, na região de Xinjiang. Nos últimos anos tem-se observado uma progressiva limitação das liberdades dos cidadãos Uigur por parte do governo chinês. Utilizando como justificação o facto dos Uigures serem considerados extremistas pela China, foram impostas medidas de controlo religioso e cultural, nomeadamente, a proibição dos homens deixarem crescer longas barbas, a obrigação de Uigures aceitarem que oficiais do governo e membros do Partido Comunista Chinês vivam nas suas casas, de retirarem símbolos religiosos das mesmas e a proibição de participação em atividades religiosas. Mas, mais excessivo e cruel tem sido a detenção de mais de um milhão de Uigures em verdadeiros campos de concentração. Os relatos que têm vindo a público de desaparecimentos, tortura, endoutrinação, esterilização e trabalho forçados são suficientes para arrepiar o mais insensível de nós.

Vários meios de comunicação noticiaram o desaparecimento de inúmeras personalidades Uigur. O UHRP (Uyghur Human Rights Project) reportou que, desde 2017, pelo menos 435 intelectuais Uigur tinham sido internados, presos, ou simplesmente tinham desaparecido. Uma sobrevivente contou que as mulheres eram regularmente violadas e que as outras detidas eram obrigadas a assistir. Sayragul Sauytbay relatou episódios de tortura e revelou que os prisioneiros eram sujeitos a experiências médicas resultando em esterilizações involuntárias. Estes são só alguns dos relatos presentes no relatório 2019 Report on International Religious Freedom: China – Xinjiang, conduzido pelo governo dos Estados Unidos da América, mas chegam para não restarem dúvidas de que, no século XXI, na China, existem graves abusos dos direitos básicos de alguns cidadãos.

Como lidar, então, com esta questão? Têm havido denúncias por parte de vários países da situação em Xinjiang e a pressão internacional para cessão desta conduta atroz tem, sem dúvida, aumentado. No entanto, não é plausível que os países e as suas respetivas empresas cortem todas as relações com a China. Como disse, o equilíbrio económico-humanitário não é fácil de alcançar.

Ainda assim, existem atitudes que não são justificáveis. Nos créditos do seu mais recente filme “Mulan”, filmado em parte em Xinjiang, a Disney agradece às autoridades de Xinjiang, província onde as alarmantes violações dos Direitos Humanos do grupo étnico Uigur estão a ocorrer. Sendo a China um mercado essencial para a empresa de entretenimento, não é expectável que devido à situação em Xinjiang, a Disney renuncie às vendas que da China advêm. Contudo, ao agradecer, especificamente, ao Gabinete Municipal de Segurança Pública de Turpan e ao Comitê de Publicidade do Partido Comunista Chinês da região autónoma Uigur de Xinjiang, a Disney está a pactuar com responsáveis pela existência de campos de concentração.

O equivalente seria, noutros tempos, a Disney agradecer ao departamento de segurança pública de Auschwitz ou ao gabinete de publicidade dos Gulags. Assustador, não é?

P.S. Em 2019 o CEO da Disney, Bob Iger, disse à Reuters que dificilmente a multinacional continuaria a filmar no estado americano da Geórgia. Porquê? Porque se a lei que proíbe o aborto após a detecção de batimentos cardíacos fosse aprovada naquele estado, os trabalhadores da empresa não iriam querer trabalhar nessa região. Só posso atribuir tamanha incoerência à ignorância.

Para mais informações e fontes relacionadas com o tema desta crónica:

Crónica de Teresa Cunha e Sá
Teresa seguiu primeiro o caminho analítico tendo-se formado em Economia com Mestrado em Finanças. Ávida leitora de interesses plurifacetados, envereda agora pela área da Ciência Política e Relações Internacionais.

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