Entrevista. Três Tristes Tigres: “As influências que vêm do silêncio e os erros que se abraçam”

por Linda Formiga,    14 Maio, 2020
Entrevista. Três Tristes Tigres: “As influências que vêm do silêncio e os erros que se abraçam”
Três Tristes Tigres / Fotografia de Cristina P. Pinto
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Perdoem-me os prolegómenos mais nostálgicos e pessoais, mas o Zap Canal dos Três Tristes Tigres será, provavelmente a música que mais trauteei na vida, remetendo-me imediatamente para aquele dramazinho adolescente numa matiné qualquer depois das aulas nos idos, nem por isso saudosos, anos 90. Os Três Tristes Tigres voltaram, 22 anos depois de Comum.

Mínima Luz é o quarto registo dos Três Tristes Tigres, o terceiro com Alexandre Soares. E, à semelhança dos outros registos, traz-nos poemas crípticos, existencialistas, ora ríspidos ora doces de Regina Guimarães, as dimensões sonoras de Alexandre Soares e a belíssima voz de Ana Deus. E foi no seguimento do lançamento deste álbum, no passado dia 1 de Maio, que interrompemos a tarde criativa de Alexandre Soares e os mui variados afazeres de Ana Deus, para uma conversa sobre o que o futuro nos reserva e o passado nos trouxe.

Com um início de conversa com alguma discórdia, pelo facto que não estarem totalmente convencidos pela influência que tiveram em muitos dos que viveram a adolescência/princípio da idade adulta nos anos 90, embora por aqui e por ali pululem umas quantas vozes que o corroboram, como a de Fred Ferreira que até participa no disco, Ana Deus reconhece só teve essa consciência depois de a banda ter terminado e de, com o passar dos anos, ter recebido esse feedback. “De alguma forma, apanhou a ti, como apanhou o Fred e uma na geração que vivia muito a música nessa altura e para quem os discos eram muito importantes, como ressonância das suas ideias e o que andavam a viver.”

E, findas as discordâncias, a conversa propriamente dita passou-se assim:

As influências que tinham nos anos 90 e as influências que têm agora mudaram?
Alexandre Soares [AS]: As influências são fases da tua vida. Eu não penso em influências musicais, porque não ouço música para fazer música. Eu ouço música porque eu gosto de imenso de música, as minhas influências nem são musicais, vêm do silêncio, de coisas que eu leio, de conversas que tenho. A minha matéria realmente é o som e transporto isso para o som, mas não procuro som para fazer som.

Ana Deus [AD]: Eu vou gostando de coisas diferentes ao longo do tempo. Há coisas que gostava e já não gosto de outras que ainda gosto, mas não posso dizer que esteja agarrada. Talvez o disco – mas é uma excepção – que eu sempre gostei seja o Colossal Youth dos Young Marble Giants, porque acho que atravessou a minha vida durante vários anos. O resto, aquilo que gostavas depois deixas de gostar, pelo tipo de som, tipo de produção. Mas acho que sou mais influenciada pela escrita, pela montagem das coisas, pela edição.

Pela montagem instrumental, digamos assim?
AD: Sonora ou imagens. A ligação entre as coisas, a maneira como as coisas se organiza. Sei que é uma coisa estranha de se dizer sobre a forma como isso pode influenciar a música, mas reparo muito nisso.

É curioso estar a falar nisso porque eu já ouvi o álbum várias vezes e parece-me que existe um acompanhamento da música com a letra em muito contribui para a imagética.
AS: Sim, nós complementamos muito isso. Improvisamos muito. A Ana com textos que eu não li, eu a fazer sons que ela não ouviu e vamos fazendo coisas até elas se complementarem bem.

Ao nível sonoro, a profundidade é um pouco diferente da dos anos 90, fruto talvez de uma nova tecnologia, ou de novos processos?
AS: Sim, ou de uma velha. É uma mistura porque na altura eu usava, além das guitarras, muitos samplers e as coisas digitais da altura. E agora uso muito sintetizadores analógicos e trabalho os sintetizadores de outra forma. Mesmo a elaboração da forma como eu junto as guitarras e como misturo o som das guitarras um atrás do outro.

Na parte instrumental, principalmente na Galanteio, e também na Língua Franca, a dimensão parece não estar limitada, parece haver um espaço que vá dar azo a um maior improviso e para uma experiência que possa ser diferente ao vivo.
AS: Pode ser. Isso é uma coisa que nós fazemos naturalmente quando fazemos a recriação ao vivo, com outros músicos. Criamos sempre espaço para todos os músicos poderem improvisar e ensaiamos bastante para podermos ser livres ao vivo, e alterarmos as coisas. E é provável que existam alguns temas que vão mudando a cada espectáculo, assim como na altura que compusemos e fizemos o desenvolvimento sobre essa época em que compusemos o disco.

Vi-vos nos Bons Sons e ainda não tínhamos este álbum, mas foi possível ver que havia ali muito espaço para improviso..
AS: Sim, isso é uma coisa que trabalhamos e temos muito gosto em fazer. Para nós e para toda a gente. Tens de fazer um espetáculo mesmo alerta, porque que há momentos em que fazes o que queres e os outros músicos estão parados…

AD: E às vezes há erros também – e erros que se abraçam e que se vai por aí fora.

AS: É uma questão de saber onde te estás a pôr, ver o que aconteceu e o que queres fazer daí.

AD: O Alexandre normalmente não acaba o improviso até o resolver. Imagina que ele tropeça, enquanto ele não ficar de pé… (risos)

AS: Não, vou fazer um desenho inteiro sobre uma nota qualquer que é suposto estar ali…

AD: Ficamos ali que tempos a ver quando é que a coisa dá a volta.

AS: (risos)

AD: Ninguém sabe.

A Ana e o Alexandre e até a Regina Guimarães têm trabalhado em conjunto noutros projetos, como os Osso Vaidoso. Mas demoraram 22 anos a ressuscitar os Tigres. O “Mínima Luz” só fazia sentido sob a chancela dos Tigres?
AS: Aquilo também foi aquela história de 2017, não é, dona Ana?

AD: O facto de termos sido convidados… Mas eu estou a ver a questão, se nós voltaríamos a fazer… Tem muito a ver com o trabalho da Regina, é certo. E com letras feitas de propósito para nós – por esse lado poderíamos lá ir parar também com o Osso. Eu gosto muito de musicar poemas mas que já existem, há poemas dos Osso Vaidoso que são para mim muito perturbantes, como são os poemas do Rilke, de quem gosto mesmo muito. Mas já sentia essa falta de pensar na questão global, ou de pedir isto ou de pedir aquilo, de querer trabalhar sobre este tema ou a partir de uma ideia. Uma coisa que já estava a fazer falta com os Osso é que o Alexandre queria tocar com mais gente, e eu também gosto de tocar com mais gente, mas ele sente mais essa falta porque estava a cobrir tudo com a guitarra e o convívio também é importante. Então, se calhar os Osso também iriam passar a ser maiores. Por outro lado, os Tigres também têm um património. Não é serem conhecidos, são gostados, respeitados. Houve gente que cresceu com essa música, portanto combinando essas três questões, e pegando nesse convite, acho que fazia todo o sentido assim. Mas se não fosse assim, era assado. Se não houvesse convite para fazer Tigres provavelmente voltaríamos na mesma.

O convite foi o concerto no Rivoli, certo?
AD: Sim, para recriarmos o Guia Espiritual. Era uma noite de um disco, uma banda. Foi um ciclo de concertos e o convite foi para fazermos o Guia Espiritual. A partir daí fizemos uma série de concertos não foi só do Guia, mas também canções do Comum. E as coisas começaram a correr bem, sentimos vontade de fazer músicas novas e os últimos concertos, como o do Bons Sons, já tinham músicas novas.

O concerto do Rivoli foi então um exercício e depois verificou-se que tinha pernas para andar…
AD: Depois de teres aquele trabalho todo, com pessoas que nunca tocaram aquelas músicas a tocá-las. Para nós foi um exercício de memória, de voltar para trás…

AS: E trazer essas músicas para o som que nós temos hoje. Porque nós fomos logo alterando, quando fizemos as músicas criámos com os sons de altura e fomos reconstruindo as músicas de uma forma que nos agradasse agora. Ao fazermos isso, preparámos a coisa para continuarmos a trabalhar.

Começaram a fazer o álbum há quanto tempo?
AS: Nos últimos dois anos começámos a trabalhar.

Foi sempre com vista a este fim ou foi numa perspectiva de ver o que iria dar?
AS: A ideia era fazer um disco, mas se não gostássemos do resultado o trabalho parava.

AD: Ou parava ou continuava até gostarmos.

AS: É verdade, nós não somos de parar…

AD: Ora agora!

É o princípio do novo ciclo ou ainda não sabemos de nada do que vem por aí. Por agora estamos limitados em termos de promoção porque não podemos fazer nada, mas veem uma continuidade, uma nova vida dos Tigres?
AS: Eu acho que sim. Nós agora vamos preparar o grupo para fazermos os espetáculos. Entretanto eu continuo a trabalhar aqui nos sons. Já perguntei à dona Ana no outro dia…

AD: Sim, este acaba por ser outra vez o disco um. Portanto, eu sei que a seguir ao disco um vem o dois no embalo do um.

AS: Nós demoramos o nosso tempo a fazer as coisas por isso acho que sim, mais dois anitos e tal (risos)

Em relação às letras. A Ana assina uma música…
AD: Tenho. O Alexandre insistiu. Eu não queria muito meter essa música, mas o Alexandre insistiu. Eu esforço-me por escrever mas… eu esforço-me por fazer esse exercício, são coisas que eu gosto de pensar, mas ao mesmo tempo é um exercício de “caramba faz lá as tuas coisas com essa idade já devias estar a escrever as tuas coisas, tens as ideias mas depois não escreves”. Mas depois tens depois tens uma pessoa que escreve tão bem e vais fazer o quê? Vais dando os teus palpites e pronto.

Pode ser desafiante ter uma Regina ao lado…
AD: Ah pois é, fico tolhidinha (risos). Mas é outra perspetiva bastante diferente. Bastante diferente da dela, mais solta, uma escrita muito menos regular.

E vão falando sobre o processo ou o poema aparece e é musicado?
AD: Não, eu falo com a Regina sobre o poema. Em alguns eu dei sugestões, uma frase, ou escreve-me sobre isto outros não. Depois vou discutindo com ela. Há coisas que ela faz que têm muito que ver com ela, com a vivência dela, e eu vejo-a tanto ali que vou recortando um as pontas para que possa ser um pouco mais geral. Na sala, discutimos mais a produção e a mistura.

Há um ambiente um pouco mais soturno, mais existencialista. Musicar a tristeza é também não classificá-la como um bicho de sete cabeças, mas torná-la humana?
AD: Oh, não era para ser!

AS: Eu gosto muito da tristeza, nada contra o universo emocional que por vezes se evita. Eu acho que eu tenho de estar tudo, também não consigo ser de outra maneira.

É também uma expansão do nosso ser, não é?
AS: Eu tenho a certeza que sim. Universo mais negro, mais pesado, seja o que for, tem muitas formas. E eu acho que isso é matéria. É uma zona que não digo que seja confortável, mas uma zona onde me encontro com frequência e é esse o meu trabalho.

A minha interpretação é que este álbum também explora muitas vertentes da existência humana, mas pode ser só a minha interpretação…
AS: Ainda bem que achas, porque eu acho também. E tu, Ana, o que achas?

AD: Eu tentei puxar a coisa de uma forma diferente. Mas já conhecendo o Alexandre e a Regina… Não quero arranjar adjetivos, mas vou dizer que sou mais leve (risos). Ali abordam-se questões da igualdade, a questão da ecologia. A questão da Criação, seja da música, seja dos tempos, do universo. Questões um bocadinho celestes. Mas sei que é como se estivesse no meio de uma trovoada (risos).

AS: Trovoada também é uma coisa linda.

AD: Mas não é tão soturno como os poemas que eu estava a falar, do Rilke. As músicas do Miopia são bem mais pesadas e mais dramáticas.

Ficamos à espera de vos ver, esperemos em breve, a apresentar este álbum no palcos!

“Mínima Luz” está  disponível por encomenda através do mail (correiodostigres@gmail.com). Os interessados podem encomendar o CD e receber um exemplar em casa, por 10€ + portes de envio. Também será possível comprar o disco numa loja de discos local, assim que normalizada a distribuição.

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