Entrevista. Rui Tavares: “Esquerda e direita faz cada vez mais sentido. É a grande divisão política no mundo”

por Luís Grilo,    13 Novembro, 2020
Entrevista. Rui Tavares: “Esquerda e direita faz cada vez mais sentido. É a grande divisão política no mundo”
Rui Tavares / Fotografia de Rui André Soares – CCA
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Nota prévia: Entrevistámos o historiador e político Rui Tavares no passado dia 22 de outubro, em Lisboa. A História e a política são dois temas amplos, ricos e intensamente interligados, pelo que as duas horas de entrevista passaram rapidamente. Para isso também contribuíram as pessoas que acompanham a Comunidade Cultura e Arte, que enviaram temas e questões, que em muito enriqueceram esta conversa. Agradecemos a vossa colaboração. Queremos que estes trabalhos sejam representativos dos vossos interesses, porém, não foi possível incluir algumas das temáticas que propuseram, dadas as limitações do tempo. Assim, priorizámos temas prementes, que estejam na ordem do dia e que podem ser apresentados da seguinte forma: a) eleições norte-americanas; b) a atualidade política e presidenciais portuguesaso mais recente projeto de Rui Tavares, “Agora, Agora e Mais Agora”, que originou um podcast e, em breve, um livro.

Durante este ano, em parceria com o Público, criaste um podcast sobre História. Como apresentarias o “Agora, Agora e mais Agora” a quem não o conhece?
Esta é uma dificuldade que tenho. Não é só minha, mas também de outros escritores ou historiadores. Dá mais gozo escrever, ou neste caso fazer o podcast, do que “vendê-lo”. Ao meter o podcast num soundbite, numa só frase, não consegues dizer o que ele é. 

Este podcast é uma tentativa de responder a uma pergunta que me foi legada por uma bisavó que teve um AVC e durante muito tempo só dizia “agora, agora e mais agora?”, até ao momento em que morreu. Esta frase ficou-me, pois ela usava-a para tudo: para ralhar, para dar carinho, para perguntar coisas… Sempre soube que ia escrever um livro com este título, mas pensava que seria um livro sobre atualidade. Pensei numa coisa do género do conto escrito pelo autor de ficção científica polaco, Stanislav Lem, chamado “Um Minuto no Mundo”. Bem, mas esta ideia, como muitas outras, ficou pendurada. Anos depois, voltei a ela por causa da minha enorme curiosidade sobre um filósofo do século IX, X, chamado Al Farabi, vindo talvez da Pérsia Oriental, da região de Samarcanda, e que é a origem nossa palavra “alfarrábio”. É praticamente impossível esclarecer porque é que o nome deste filósofo, do outro canto do mundo, resulta numa palavra do português antigo que noutras línguas não aparece. Entretanto, estive nos Estados Unidos, com acesso a uma boa biblioteca e pensei “bem, deixa ver se há cá qualquer coisinha sobre o Al Farabi”. Encontrei uma estante sobre filósofos daquela época e comecei a tirar livros. Aquela biblioteca não tinha limite de livros, nem de tempo para a requisição e durante um tempo fiquei completamente mergulhado naquelas histórias do ano 1000. 

Agora talvez venha o tal soundbite sobre o “Agora, Agora e Mais Agora”. Pensei que deveria escrever algo sobre dilemas em épocas de grande polarização, dos últimos 1000 anos, com seis episódios. É inspirado no Calvino e no “Seis Propostas para o Próximo Milénio” e que, de certa forma, ajudassem a responder à pergunta que fazia a minha bisavó: “então agora, agora e mais agora?”. É uma pergunta que devemos fazer frequentemente, mais ainda quando percebemos que a política pode mudar de um dia para o outro. Ou quando vivemos numa democracia plena, mas de repente podemos ter que nos exilar, tal como aconteceu quando, no século, num período de 10 anos a maior parte dos regimes europeus tornaram-se autoritários e mesmo fascistas. Aí, muita gente perguntou-se: “e agora, agora e mais agora, fico? Saio? Confronto? Luto?”. 

Os seis episódios estão divididos: um sobre o Al Farabi, que foi um filósofo que tentou preservar a filosofia, numa época de fanatismo; outro aborda guelfos e gibelinos, a polarização destrutiva na Itália da Baixa Idade Média, em que dois partidos geraram guerras civis; depois, falei da geração de Damião de Góis, Lutero, Erasmo de Roterdão, ou basicamente, o que fazer enquanto jovem durante uma revolução nas tecnologias da comunicação, que no caso foi a invenção da imprensa, e, simultaneamente, decorriam guerras de religião na Europa; há, ainda, uma memória sobre o século XVIII e outra sobre o século XIX; o “caso Dreyfuss”, em França, que foi importantíssimo, pois foi um caso de antissemitismo e esteve um bocadinho na base dos fascismos do século XX; e a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Portanto, seis memórias do último milénio, onde as pessoas tiveram que se perguntar “agora, agora e mais agora?”. 

O podcast foi feito ao mesmo tempo que escrevias um livro. O que nos podes revelar sobre esta futura publicação?
Escrevo este livro como se fosse para qualquer pessoa, sem recear entrar nas História da Filosofia, História da Religião, mesmo que sejam consideradas rebuscadas. Pretendo fazê-lo como se estivesse a falar com a minha bisavó ou com alguém à mesa do café. Este trabalho acaba por ser uma história das ideias, sem expressão geográfica, pois começa na Ásia, mas não vou à Índia, nem à China. Acabei por usar a expressão “Figueiristão”, que é o espaço central destas memórias e abrange a mancha originária da árvore figueira, que começa na zona de Samarcanda, até à zona de Portugal. Foi uma região do mundo influenciada por várias religiões. Falo do zoroastrismo, do maniqueísmo e de outras menos conhecidas, nas quais a figueira era importante. Tal como no Génesis, a figueira é logo a primeira árvore real que aparece. Fez-me pensar: há uma espécie de pulso na História, onde podemos ir buscar coisas muito relevantes para a nossa História Cultural, outras que têm que ver com o futuro, como até onde pode ir o conceito de Direitos Humanos.  

Essa dinâmica de construir o podcast também vai servir para a escrita do livro?
Sim, por detrás da complexidade está a ideia simples de ter uma conversa, de assumir e valorizar o lado do diálogo, da conversa, logo a partir da primeira memória. Al Farabi terá vindo da região de Samarcanda, em Bagdade, viajando em caravanas, que variavam conforme o tipo de camelos — andei a aprender estas coisas — e a viagem podia demorar três semanas. Ao longo do caminho ia-se parando, fazendo umas fogueiras, tocando umas músicas… o Al Farabi era também músico, mas o grande fascínio dele era a filosofia grega. Ele queria ler e provar que Platão e Aristóteles eram compatíveis. Portanto, ele está a viver 1500 anos depois de Aristóteles, o que faz com que nós estejamos mais próximos do Al Farabi, do que o Al Farabi estava desses filósofos clássicos. O que torna tudo mais fascinante! Um homem que vem desse canto do “Figueiristão”, talvez de um povo chamado sogdianos, conhecidos por serem comerciantes e colocarem cola nas mãos e mel na ponta da língua dos bebés, para que estes, no futuro, agarrassem os proventos e tivessem “lábia” para vender. Depois, seguiam por aquilo que mais tarde se chamou Rota da Seda. Alguns deles também aprendiam música, que era uma arte considerada nobre. Nas caravanas, uns eram eruditos, outros não o eram, mas todos tinham que conversar. E isso pareceu-me uma ideia humana e forte. Essa ideia passou para o podcast que, apesar de ser um monólogo, pretende ter a dinâmica de uma conversa. As seis memórias estão divididas em conversas e o livro também deverá ser assim. Esse aspeto de conversa entra na leitura. 

Tens alguma previsão para a publicação do livro?
Tinha! (risos) É uma boa altura para dar uma notícia: estou atrasado. Até agora não o tinha dito, mas devido a diferentes episódios da vida pessoal e profissional, revelou-se mais fácil fazer o podcast. Mas grande parte do livro está escrita. Falta, por exemplo, colocar a bibliografia de um modo convidativo, para que quem queira saber mais possa seguir as ligações, confirmá-las… A má notícia é que está atrasado. A boa notícia é que talvez sejam seis livros, em vez de um, tal como o número de memórias, de forma a fazermos uma série, que caiba numa caixa. Mas vamos ver… 

O Al Farabi foi esquecido, até ao século XVIII, onde se interessaram por ele. O que não é por acaso. Nesse século, tentou escapar-se à ideia de que a intolerância era positiva. Hoje, parece estranho, mas no século XVII e parte do século XVIII a ideia era que ser intolerante era ser superior. Tolerância vem do verbo latino tolerare, significa “aguentar”, aguentar a dor, no sentido que a suportavas. À partida, não teria um sentido positivo, pois toleravas porque não podias fazer outra coisa. 

Subentende-se que na Europa do século XVII, se pudesses, massacravas hereges, infiéis, não devias tolerá-los. No século XVIII, altera-se o sentido da palavra “tolerância”, até que hoje tem uma carga positiva. Curiosamente, vai buscar-se a outras religiões exemplos de filósofos e autores que são tolerantes e foram perseguidos pelas suas religiões por serem tolerantes, como o Averróis, aqui na Península Ibérica, ou antes, o Al Farabi. No outro dia, encontrei uma história do século XVIII sobre o Al Farabi, em que ele toca três músicas: numa põe toda a gente a rir; noutra põe toda a gente a chorar; e noutra deixa toda a gente a dormir. Aí, o sultão pede-lhe para ele ficar, mas ele vai embora e é apanhado por um bando de ladrões, na estrada de Damasco, sendo então assassinado, o que, aparentemente, é verdade. Morreu na mesma estrada onde São Paulo se converteu ao cristianismo. E esta história tem que ficar no livro, pelo que o fim será alterado, de forma a incluí-la. Portanto, isto vai demorar. Acho que o livro já não vai ser editado em 2020.

Os nossos leitores e leitoras querem saber se tens perspetivas para fazer um novo podcast. 
Primeiro tenho que acabar este livro, mas tenho imensa vontade de fazer podcasts. Não sei se faça sobre História, ou sobre temas dos quais me apeteça falar, ou com outras pessoas… Por agora, vou fazer uma ressurreição de um podcast, com o Bernardo Pires de Lima, a Sofia Lorena, a Susana Peralta e a Ana Santos Pinto. Vai ser sobre atualidade mundial. 

Atualmente, sinto que há uma ideia a ganhar força entre as pessoas, que é a de que a História se repete. Concordas?
Há uma frase atribuída ao Mark Twain, mas que parece que não é dele, que diz: “a História não se repete, mas lá que rima, rima”. Evidentemente, as circunstâncias não se repetem, mas, se pensarmos bem, a nossa experiência humana vai beber a algumas relações de base com o tempo e com os outros. Quanto ao passado, vivemos numa relação de memória. Em relação ao futuro, vivemos numa relação de imaginação. Mas, no que toca ao passado, vivemos, muitas vezes, uma relação de culpa: “porque é que tivemos estas guerras? Porque é que tivemos o século XX que tivemos?” e por aí fora. Em relação ao futuro, há imaginação, mas também pode haver ansiedade. A chave está em como é que nós, no presente, conseguimos lidar bem e saudavelmente com culpas do passado e a ansiedade do futuro, para que o lado positivo da memória se transforme em imaginação, através da coragem, em grande parte diria.  

Atualmente, olhamos para a política e sabemos que há coisas que parecem repetidas, mas são rimadas. Agora, agora e mais agora o que devemos fazer? Temos que dar coragem a nós mesmos, olhando para o passado e percebendo que o pior pode acontecer, mas do pior que aconteceu podemos retirar sentidos e significados, que são emancipadores para a Humanidade. Esta é uma atitude filosófica que se chama otimismo trágico, uma vez que se pretende retirar significados das piores experiências da humanidade. Esta é uma atitude muito necessária nos dias de hoje. Muitas pessoas acham que estamos perdidos. Até entre o discurso mais progressista, de esquerda, às vezes cai-se no erro de só assustar as pessoas, com uma espécie de… 

…fatalismo?
Precisamente! Há quem ache que decifrou as leis da História, coisa de que eu duvido, e diga “isto inevitavelmente vai neste sentido, económico ou ecológico”. Isso dá, a muita gente, uma atitude de puro desespero e que depois vai alimentar autoritarismos e egoísmos. Se sentes que está tudo “a ir para o galheiro”, pensas: “vou mas é fechar-me em casa, com os meus”. O instinto é esse. 

O papel que devemos ter, enquanto otimistas trágicos, é dizer “calma, também há boas ideias! No passado existiram boas ideias que nos fizeram sair dos buracos mais profundos que a humanidade cavou e algumas destas ideias — Direitos Humanos, dignidade humana — são importantes hoje em dia”. Na verdade, os repositórios de experiências onde vamos beber são, fundamentalmente, os mesmos. Os símbolos são mais ou menos os mesmos, mas lá dentro há muito material diferente. Hoje em dia, temos tecnologia que antes não havia. Não é surpreendente que a História rime! Há coisas fundamentais que não mudam. Temos que resolver a relação connosco mesmos, com os outros, temos que arranjar formas de convivência entre humanidade e o planeta, no seu todo. Isto já existia antes.

Rui Tavares / Fotografia de Rui André Soares – CCA

Consegues encontrar paralelismos entre a História de Portugal e o momento atual?
Há um mais ou menos evidente, o de há 100 anos atrás. Não é rebuscado. Vivia-se uma pandemia, a pneumónica ou gripe espanhola, saía-se de uma crise europeia profundíssima, a Primeira Guerra Mundial, e tinha-se um regime democrático republicano que não conseguiu sobreviver a esses embates. 

A diferença é que, apesar de tudo e por muitas frustrações que tenhamos com a Europa, neste século XXI ainda não tivemos uma guerra de todos contra todos. Parece uma fasquia baixa, mas na verdade é uma fasquia que não superámos nos últimos séculos. Por esta altura, ano 20 de cada século, aconteceu a Primeira Guerra Mundial; no século anterior tivemos as Guerras Napoleónicas; no anterior, tivemos as Guerras de Sucessão Espanhola; Ae ntes, tivemos a Guerra dos 30 Anos, que foi absolutamente terrível, com muitas mortes. Mas no século XXI estamos a aguentar-nos. Ainda não aconteceu, apesar não estarmos livres disso. 

Talvez o facto de conhecermos esta parte da História permita utilizar a imaginação, que muitas vezes só veio no pós-guerra. Só inventámos a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a ONU e o projeto europeu depois da Segunda Guerra Mundial. Agora, temos que inventar antes de chegarmos à desgraça. Antes da catástrofe, temos que inventar ferramentas que permitam atingir um novo contrato entre humanidade, natureza e tecnologia. Isso é essencial. A situação pandémica diz que é disso que precisamos. Se o conseguirmos fazer, então, as democracias aguentam-se melhor. Existe esse paralelismo, apesar de não ser perfeito, porque a primeira república não sobreviveu. Quero acreditar que, neste século, Portugal tem condições para se manter como um país democrático, aberto e de progresso. Esperemos que a Europa e o resto do mundo não dêem uma guinada para o pior, mas se acontecer, que Portugal não fique uma ilha de autoritarismo, esquecido num canto do continente, como aconteceu enquanto o resto da Europa se democratizou, depois da Segunda Guerra Mundial. Saibamos manter a nossa democracia e os valores neste momento que vai ser, certamente, difícil para as democracias no nosso mundo. 

Entendes que os jovens não se interessam por política? Qual é a melhor forma de os convencer a comparecer nas assembleias de voto?
Não acho que os jovens tenham desinteresse pela política. Os discursos que temos disponíveis na política atual não convencem os jovens. Há muito político que está a analisar a realidade e a tentar adaptá-la aos livros que leram, há 30 ou 40 anos. Mas houve mudanças significativas! Vimos isso na discussão à volta da crise da zona euro. Tivemos muitos economistas habituados, porque assim aprenderam, a um tipo de economia nacional com instrumentos típicos e, precisamente por só saberem pensar a economia nesses termos, foram dizendo que não podia funcionar noutros termos. Ora, podia discutir-se se o Euro podia ter sido implementado doutra forma, mas a verdade é que desfazê-lo é muito difícil. E em Portugal, por exemplo, a discussão ficou dividida entre os que diziam “estamos no Euro, temos que aplicar austeridade” e os que defendiam “se temos que aplicar austeridade, temos que sair do Euro e acabou a conversa”… Mas os jovens já nascidos no projeto europeu, habituados a fazer Erasmus, para quem não existia fronteiras, acharam esta discussão completamente absurda, como se fosse noutra dimensão. 

Basicamente, a maior parte dos jovens mundiais estão do lado certo. São contra ideologias do egoísmo, por ideias de generosidade, sentem a humanidade como uma só. E há quem critique os jovens por saírem à rua por causa de um assassinato nos Estados Unidos da América, mas não saem à rua por causa de algo que se passou duas ruas abaixo. Não é mau sair à rua por qualquer coisa que aconteceu noutro lado do mundo ou porque uma adolescente sueca criou um movimento. Isso significa que os jovens sentem-se parte da mesma família e sem esse sentimento é impossível fazer face à crise ecológica e à globalização desregulada em que vivemos. Esses são fenómenos que afetam o mundo. Um jovem que tenha estes pensamentos, ainda que pouco articulados, olha para o discurso político, hoje em dia, e onde encontra estes valores plasmados? Daí, vemos os políticos mais velhos a dizer “os jovens não se interessam pela política”. Mas não! Os jovens não se interessam pela política desses políticos. Em grande medida, os jovens têm a sua própria política e o seu próprio interesse pela política. 

Em Portugal, como tens acompanhado o aparecimento de forças reacionárias? 
Não são uma novidade. Apareceu uma extrema direita um bocadinho mais competente. É mais competente em esconder o seu aspeto vigarista e ilegal. Apareceu alguém que soube ocultar as assinaturas falsas para a legalização do partido, tal como a origem do dinheiro que o financiou, que nunca ficou claro, e teve algum sucesso. Há votos suficientes, no país, para levar ao parlamento este tipo de ideias.

Agora, temos vários debates sérios a fazer. O primeiro é o papel do Tribunal Constitucional e o papel do Ministério Público. Não estarão a ser demasiado permissivos em relação às vigarices que já se conhecem deste partido de extrema direita? Outro aspeto é a irresponsabilidade, mais do que a permissividade, de órgãos de comunicação social, canais de televisão, clubes de futebol e um partido político central em Portugal, que é o PSD, que deixou criar a criatura que hoje em dia tem um partido de extrema direita. Esse líder da extrema direita já dizia as coisas que dizia, na altura em que era candidato do PSD. Qualquer pessoa pode ir ao website do PSD ver a declaração de princípios e estatutos do partido e percebe que aquilo que o atual deputado da extrema direita dizia, no tempo do PSD, é uma violação dos estatutos e da carta de princípios. É a mesma experiência que o Partido Republicano tem com o Trump. Tiveram imensas ocasiões para dizer “olhe, desculpe, você tem o direito de dizer o que diz, mas não no nosso partido, porque esses não são os nossos princípios”. Em vez disso, mais agarrados aos cargos e ao poder do que aos princípios, deixaram a criatura criar-se. 

E num contexto de tribalismo e desinformação, como se pode promover o diálogo informado?
Vivemos uma revolução tecnológica e comunicacional que, na verdade, tem poucos paralelos. Talvez só se compare à invenção da imprensa, que não se desliga do ambiente em que nasceram as guerras de religião, na Europa. Mais tarde, valorizaram-se as coisas boas da revolução da imprensa, como o facto de um livro que, antes da imprensa, para ser comprado precisaria de dois anos de trabalho e, passado um século, com duas horas de trabalho comprava-se o livro. 

O que se passa é que, enquanto humanidade, temos que conseguir digerir a abundância que vem nesta revolução tecnológica. Ainda não conseguimos fazê-lo, pois a revolução é muito recente. Estamos a vivê-la e se pensarmos no potencial de perturbação das redes sociais, à escala social, pondo toda a gente em contacto com toda a gente, esperando ainda mais desenvolvimentos como a tradução automática, o 5G e a sua menor latência, percebemos que vai haver uma ansiedade natural. Será que conseguimos digerir isto? Quando surgiu a imprensa também se disse “estão a aparecer livros a mais, não conseguimos acompanhar”. Isto gera medos, intranquilidade e fenómenos, como as notícias falsas, apelos à censura… Vamos ver uma série de coisas até conseguirmos digerir e debelar esta revolução. Portanto, essa questão continua a ser uma pergunta em aberto, mas acho que vamos conseguir fazê-lo. Daqui a uns tempos, talvez décadas, conseguiremos retirar coisas positivas, além destes, digamos, produtos colaterais negativos que temos visto crescer, como o discurso de ódio e o impacto real, em termos de violência política, etc.

Esta é uma parte da resposta. É preciso aguentar firme, com esperança e otimismo. Seremos capazes de dar a volta. Como é que o faremos? Em parte, tem que ver com um tipo de discurso diferente daquele que fazemos. A ideia de seduzir as pessoas para conversar e para contar histórias, além daquelas que cabem num tweet, é levá-las a fazer algo que já gostamos de fazer, que é metermo-nos no lugar do outro. Fazemo-lo quando vemos programas de televisão sérios, quando lemos romances, quando assistimos a um teatro ou filme… No entanto, parece que estamos viciados na comunicação das redes sociais, que é sobre o meu lugar, a minha opinião e se não for a minha, não vale. Então, contar histórias é uma boa maneira de perceber que ainda temos todos a mesma linguagem! 

E em último lugar — fui muito vago e devia ter começado a resposta pelo mais concreto —, educação! Nós precisamos de educação. Não há resolução de nenhum problema, mesmo dos mais complicados, que não passe pela educação. Mas uma educação reformada, para todos. Defendo uma universidade universalizada, em Portugal, que seja gratuita no acesso. Podemos discutir se quem tem curso superior pode contribuir mais no IRS, para garantir bolsas para os próximos estudantes. Pode ser uma ideia interessante. Também defendo um novo modelo de financiamento para o Ensino Superior, que passe por uma parte do IRC para um fundo de investimento em universidades, das quais a economia vai beneficiar muito, pelo que faz sentido que os agentes económicos paguem uma parte, enquanto o Estado paga professores, funcionários e, depois, discutir se as pessoas que beneficiam de ter passado pelo Ensino Superior e se têm rendimentos superiores à média podem contribuir para aquilo que chamaria Fundo de Apoio ao Estudante do Ensino Superior, para financiar as bolsas, refeitórios, residências… Um ensino mais descentralizado, que chegue a todos, torna mais fácil incentivar atitudes cívicas perante a política, atitudes responsáveis perante o planeta, distinguir fake news de notícias verdadeiras, promover a cultura científica, preservar o património que vem do passado. No fundo, será mais fácil ter democracias saudáveis e plurais, sem o risco de se tornarem inviáveis. A educação é essencial para dotar as pessoas com ferramentas, que podem ser utilizadas como quiserem, mas que nos tornarão mais fortes perante quem quer utilizar a democracia para destruir a democracia. 

Rui Tavares / Fotografia de Rui André Soares – CCA

Um dos nossos leitores disse que te ouviu falar de uma nova segmentação política, além da esquerda e direita. Qual é o valor simbólico e prático desta visão?
Esquerda e direita faz cada vez mais sentido. É a grande divisão política no mundo. Nasceu logo a seguir à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789. Não é por acaso que aqueles deputados na assembleia nacional revolucionária francesa aboliram os direitos feudais, aprovaram os direitos do cidadão, embora, imediatamente surgissem feministas que alertaram para a falta de direitos da mulher, significado de que a discussão não se tinha fechado. Mas aí surgiu a divisão de esquerda e direita, à volta do veto do rei. A direita achava que o rei tinha direito a vetar as decisões da assembleia e a esquerda achava que não. Era uma divisão quase prosaica, uns estavam mais a direita da sala e outros mais à esquerda.

A política é cada vez mais global, pelo que a divisão faz sentido. Desde o século XIX que temos esquerda e direita europeias. Atualmente, também faz sentido esquerda e direita global, mas isso não esgota a política. Além de esquerda e direita, temos libertários e autoritários, o que já tinha importância em épocas passadas, pois havia uma esquerda autoritária que apoiava regimes autoritários e uma esquerda libertária que era inimiga feroz desses regimes. Por vezes, mais do que a própria direita autoritária. Há gente que, desde que seja autoritário, está bem. Por isso é que há uns “apparatchik” de regimes autoritários de esquerda que são iguais aos “apparatchik” dos regimes autoritários de direita. Não nos enganemos, a divisão entre autoritário e libertário é muito importante, na política. 

Depois, é cada vez mais importante a divisão entre nacionalistas e cosmopolitas. Os primeiros acham que a soberania é indivisível, ou existe ou não. Também existe uma esquerda nacionalista, que diz defender que é impossível haver democracia europeia e global. Metodologicamente, quem acha que a democracia só vai até à fronteira e que depois disso não temos validade política enquanto cidadãos, também acha que devem ser uma série de governos nacionais, reunidos em cimeiras de vez em quando, a decidir para o resto da União Europeia. Por outro lado, a visão cosmopolita é a de que somos sempre cidadãos, incondicionalmente. Devemos, embora não esteja completamente realizado esse ideal político, desenvolvê-lo para que tenhamos agência política fora das fronteiras do teu país. O único sítio do mundo onde isso existe, de forma embrionária, é na União Europeia. Podes ser cidadão do mundo na Eritreia, ou na Coreia do Norte, mas não tens um bilhete de identidade de cidadão do mundo, nem tens um “Tribunal Internacional dos Direitos Humanos dos Cidadãos do Mundo”. Na Europa, apesar de tudo, sendo cidadão nacional, és cidadão europeu e tens uma Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, pode recorrer-se ao Tribunal de Justiça da UE, ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos… Existe uma espécie de embrião de uma política transnacional continental, portanto. Quem é de esquerda, do meu ponto de vista, devia aproveitar esta oportunidade, pois poderá servir para construir mais democracia e direitos humanos, podendo até ser replicada e melhorada noutros lugares do mundo. Não sou europeísta por achar que a Europa é melhor que outros continentes. Até o sou por achar bom que o ciclo imperial tenha acabado e que a Europa seja um continente como os outros, sem ocupar ou colonizar outras partes do mundo. 

A América Latina também pode criar a democracia transnacional, pois há enorme facilidade em comunicar culturalmente entre os vários países. Tem potencial! Só o tradicionalismo, de algumas esquerdas inclusivamente, tem impedido isso. As novas gerações latino-americanas têm potencial para criar coisas transfronteiriças. E em África também. Há uma nova geração de africanos que não está satisfeita com os regimes que tem e porque as fronteiras são artificiais, legadas pelo colonialismo, olham para a União Africana e outros tipos de projeto, pois existe liberdade de circulação, facilidades de comunicação através de línguas tradicionais africanas… Ou seja, o que estamos a fazer em termos de projeto europeu, criar a democracia para lá do estado-nação, é algo que não é monopolizável pelos europeus. Pode ser recriado e temos que dar o nosso contributo para que isso aconteça. 

Seria uma boa forma de pagar a dívida que o eurocentrismo deixou?
Sim. Mesmo aqueles que negam o passado do imperialismo, os atos terríveis em termos humanos, desde o Congo belga, ao império britânico, a Moçambique, sabem bem o que foi o passado. Um bom papel da política é demonstrar que o novo século não tem que ser tão mau como o século passado. África pode fazer coisas fantásticas connosco, em benefício dos dois continentes. Um continente é mais jovem do que outro. Tal como um é mais rico que outro. Há muita coisa a fazer! E nós, do sul europeu, seríamos grandes beneficiários disso. Basicamente, uma nova relação descolonizada, se assim quiserem, entre Europa e África, voltará a fazer do Mediterrâneo um mar central. Fomos habituados, durante a crise da zona euro, a ser tratados como periferia da Europa, mas somos a periferia, uma ova! Quem olhar para o Mediterrâneo ao longo da História, vê que é um ponto de passagem entre três continentes diferentes! É isso que se pode fazer, se conseguirmos sair de uma relação de culpa, em relação ao passado, e de angústia para com o futuro, passando para uma relação positiva de memória, de construção do futuro.

Podemos dar mais exemplos: porque é que a Europa não faz uma grande oferta a Israel, Palestina e ao Líbano, dando-lhes, se não a entrada na União Europeia, uma esfera de liberdade de circulação e de acesso ao mercado comum europeu? Com a condição de um tratado de paz, com independência para a Palestina, tendo em vista a solução de dois estados… Porque vemos a administração Trump a ser agente no Médio Oriente? A Europa, com muitas culpas históricas para redimir, em relação à própria comunidade judaica europeia, que foi dizimada no Holocausto, em relação aos impactos que isso teve e a própria geografia do local… A História desta região é, em grande parte, comum! Se Chipre faz parte da União Europeia, que está a 60 quilómetros da Síria, a Síria também tem uma História comum. Estes países nasceram na Primeira Guerra Mundial, que foi uma guerra europeia. Portanto, a História é comum e o futuro também devia ser comum. Em grande medida, isso passa pela criação de pontes entre blocos regionais europeus, africanos e do Médio Oriente, que comuniquem entre si. 

O teu posicionamento político está intimamente ligado a uma democracia europeísta. Como se pode tornar a União Europeia mais democrática?
Uma democracia europeia significa, no mínimo, ter aquilo que qualquer democracia tem. Ou seja, eleger representantes que fazem lei, não só os que estão no Parlamento Europeu, mas também os que estão no Conselho da União Europeia. A maior parte das pessoas não tem noção, mas somos representados, quotidianamente, por embaixadores e, em certos dias e situações, por ministros, que não foram eleitos para aquele Conselho, que devia transformar-se numa espécie de senado europeu, com senadores eleitos. Bem como eleger a Comissão Europeia, mediante um programa, obrigando à existência de candidatos que façam uma campanha pan-europeia, com listas transnacionais, que tenham assento no Parlamento Europeu e que apresentem um programa, para que os europeus escolham com o seu voto. Hoje em dia, a Comissão é escolhida pelos Estados-Membros, não é discutida durante as eleições e o programa só é apresentado depois das eleições. 

Mas deve ser mais do que isto. Este modelo de democracia que temos é do século XIX. E no século XXI temos que melhorar a democracia, tornando-a mais capaz de lidar com a complexidade geral em questões como finanças, estado de direito, combate à corrupção, Direitos Humanos. A democracia europeia precisa de instrumentos novos. Alguns existem em embrião, como as iniciativas cidadãs que, com um milhão de assinaturas em, pelo menos, nove países da União Europeia, pode apresentar-se uma proposta legislativa. Mas podemos pensar noutro tipo de coisas, como assembleias cidadãs. Aliás, seria desejável que a Convenção sobre o Futuro da Europa decorresse assim, e este pode ser um primeiro ponto de pressão que devemos utilizar, para garantir que esta seja uma grande assembleia cidadã europeia e não apenas uma convenção com os nomeados pelos governos. 

Também precisamos de instrumentos de democracia deliberativa para discussão de propostas de lei, para a transparência de tratados comerciais e internacionais, para que as nossas preocupações cidadãs se possam inserir nesses processos, em fases mais iniciais. Estou certo que os tratados comerciais teriam mais preocupações de proteção laboral, ambiental e fitossanitárias do que têm atualmente. Imaginemos um tratado comercial com a China. Se os cidadãos participassem, através de consultas públicas, espaços de debate criados pela União Europeia, seria difícil manter certos tipos de mercados, como aquele de Wuhan, onde, provavelmente, começou a pandemia. Tal como não podíamos assinar um tratado comercial se os trabalhadores chineses continuassem sem lhes ser permitido sindicalizarem-se. Se os cidadãos tivessem estas garantias e fossem envolvidos, não vejo porque não se produzisse mais e melhores instrumentos de direito nacional, internacional e europeu. A União Europeia podia dar o exemplo! Mas nada disto nos vai ser dado, na verdade. Enquanto cidadãos europeus temos que despertar as nossas consciências para a necessidade de conquistar estes instrumentos. É um escândalo que não existam! É um escândalo que o Conselho da União Europeia nos represente através de embaixadores ou ministros e não representantes eleitos. Com uma revolução política, liderada pelos cidadãos, há muito para construir neste continente.

O que esperas da campanha presidencial, em Portugal?
Fiquei muito contente por a Ana Gomes ter apresentado a sua candidatura e apoio-a. Acima de tudo, ela salvou-nos, através da candidatura, de umas eleições presidenciais que podiam ser dominadas por uma espécie de bipolarização entre o Presidente da República atual, como presidente do sistema, nem de esquerda, nem de direita, e o candidato “antissistema” que tem aliados na arte de dominar a agenda política. À esquerda, tínhamos, basicamente, candidatos partidários apresentados pelos próprios partidos, quando a lógica das presidenciais não devia ser partidária. A Ana Gomes, numa fase difícil da vida dela, pois tinha acabado de enviuvar, apresentou-se e deu-nos a possibilidade de ter eleições presidenciais acerca de temas que verdadeiramente interessam para os próximos anos. Mas, na verdade, não chega. Nós, cidadãos, temos que exigir que estas eleições sejam à volta de temas de futuro para Portugal. 

Temos estado numa política de curto prazo, mas pensemos bem: no próximo mandato presidencial o 25 de abril vai fazer 45 anos. E esta data é importante porque significa o momento em que Portugal vai ter mais dias de democracia do que teve de ditadura. É extraordinário termos vivido 48 anos e alguns meses em ditadura. O meu pai nasceu em 1929, portanto, nasceu, cresceu, casou, teve dois filhos, enviuvou, casou novamente, teve mais três filhos, em ditadura! Viver quase meio século em ditadura tem um impacto que ainda não está bem digerido no nosso contexto cultural, político e social, e só agora vamos viver mais tempo em democracia do que em ditadura. Esta data deve ser assinalada como um dia importante! É esse o dia em que realmente derrotamos a ditadura. E chegou a haver quem dissesse que não estávamos preparados para a democracia. 

Depois, o 25 de abril vai fazer 50 anos, também no próximo mandato presidencial. É uma ocasião para discutir o Portugal dos próximos 50 anos! O que é que Portugal vai fazer em relação à inteligência artificial, à robótica e o impacto que isto vai ter no emprego? Não quero ver acontecer na Península de Setúbal o que vi acontecer no meu concelho, que é a Azambuja, quando a Opel saiu de lá. O concelho não aproveitou o repositório de conhecimentos da empresa, que usou a nossa força de trabalho e foi-se embora. Passados alguns anos, essa força de trabalho, se tivesse sido ajudada pelo município e pelo Estado, já não precisava da Opel para nada, pois poderiam ter sido feitas outras coisas, novas indústrias, mais ecológicas, mais emancipadoras… Quando a Autoeuropa sair da Península de Setúbal, porque não vai estar lá para sempre, já devíamos ter apostado naquele lugar, para que fosse uma área avançada de experimentação em relação à inteligência artificial. E quem diz a Península de Setúbal, diz o Vale do Ave e outras regiões do país onde se pode pensar o futuro do país a longo prazo. A mesma coisa para as ilhas. Com a crise ecológica e a importância dos fundos marinhos, a Madeira e os Açores, a sua relação com o todo nacional, devem ser discutidos antes de haver alguma crise. Devemos aproveitar os próximos anos para fazer esse tipo de debate. E isto espero que a Ana Gomes possa ajudar a fazer. Mas não depende de uma candidata, mas sim de vários. Daí a importância da Marisa Matias, do João Ferreira, do próprio Marcelo Rebelo de Sousa, para que saibam fazer o debate sobre temas que são verdadeiramente decisivos para nós, mesmo sendo temas em que não se pensem todos os dias. Se fizermos eleições ricas nessas temáticas, o outro tipo fica a falar sozinho do seu ódio, egoísmo e preconceitos. E os portugueses ficam a falar daquilo que interessa a Portugal. Para isso, temos que ser muito exigentes para que candidatos e candidatas o façam, pois são políticos de grande qualidade, têm capacidade para o fazer, mas, às vezes, a lógica de curto prazo da agenda mediática não ajuda.

Esta entrevista também teve o contributo de Rui André Soares.

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