Entrevista. Rodrigo Cuevas: “Não gosto muito de modas, porque o pior que elas têm é que passam”

por Bernardo Crastes,    4 Novembro, 2020
Entrevista. Rodrigo Cuevas: “Não gosto muito de modas, porque o pior que elas têm é que passam”
Fotografia de Lacosta Studio
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Desde o lançamento de Manual de Cortejo, no final do ano passado, que Rodrigo Cuevas não tem parado. O autodenominado agitador folclórico tem feito ondas no panorama musical espanhol com o seu inusitado cruzamento entre música tradicional e uma electrónica experimental a roçar a pop. Recentemente galardoado com os prémios de Melhor Artista Emergente e Melhor Álbum de Músicas do Mundo nos Prémios MIN, o artista asturiano terá a sua estreia ao vivo em Portugal esta semana, no âmbito do Misty Fest. A partir da sua casa nas Astúrias rurais, Rodrigo Cuevas falou connosco sobre o seu trabalho, a vida de campo, o choque entre tradicional e moderno e os novos desafios trazidos pela pandemia, e ainda nos mostrou a vista para as belíssimas serras do Norte de Espanha.

O que é o Manual de Cortejo? De onde vem este nome?
Manual de Cortejo é o último álbum que lancei, com o Raül Refree como produtor. Parte da música tradicional asturiana, galega, samorana, leonesa — tudo aquilo que é o quadrante noroeste de Espanha, a que muitas vezes os folcloristas chamam quadrante arcaizante, juntamente com o norte de Portugal, pois é o quadrante de uma música harmonizada que praticamente consiste em percussão e voz. Ao começar a gravação do disco, fizemos uma viagem pelas Astúrias para que o Raül conhecesse em primeira mão a música tradicional asturiana e demo-nos conta de que teria de ser um disco baseado sobretudo na voz e na percussão. Eu não sabia como o disco se chamaria, mas com o passar do tempo fui-me apercebendo da excelência da música tradicional: as melodias tão bonitas, essas quadras de oito sílabas tão pequenas e tão bem feitas, o baile tão bem feito; e eu pensava “o que te pode levar a fazer coisas tão belas?”. Percebi então que a motivação era gostar, engatar e atrair, e que o que tínhamos nas mãos era como um pequeno manual de cortejo.

Como surgiu a oportunidade de trabalhar com o Raül?
Ele foi dar um concerto a Gijón com a Rosalía e o promotor desse concerto era o meu agente, por isso, quando [o meu agente] estava com ele, disse “tens de ir ver o Rodrigo, vais gostar muito”. Então, quando fui tocar a Barcelona, convidei o Raül para o concerto. Ele veio, mas no final do concerto não me veio falar nem nada, por isso achei que ele não tinha gostado. Três ou quatro dias depois enviou-me um e-mail. Na altura, o meu espectáculo era um pouco mais “cabareteiro” e ele disse que não se via a fazer essa parte mais à anos 80, mas que gostou muito da parte mais folclórica e profunda e que, se eu quisesse, faríamos um disco. Eu já queria aprofundar essa componente mais folclórica, por isso foi perfeito.

E pelos vistos essa relação continua prolífica, dado que criaram um novo espectáculo, o Llabores.
Pediram-me para fazer a estreia de um espectáculo na Fira de Manresa, uma feira de músicas do Mediterrâneo, e então vi a oportunidade de continuar a trabalhar com o Raül, já que nos estávamos a dar muito bem. Então, justamente com as gravações que fizemos naquela viagem [pelas Astúrias] e outras gravações de Alan Lomax fizemos este espectáculo, em que há muitas senhoras gravadas e tocamos como se estivéssemos com elas.

Então é algo mais ligado ao tradicional e menos à electrónica?
É quiçá mais áspero, mais perto do tradicional, mas continua a ter muita electrónica. Baseámo-lo sobretudo em cantigas de trabalho, pois reparámos que muitas senhoras nos cantavam, mais do que canções, coisas menos estruturadas e que não chegavam a ter melodias muito desenvolvidas, com letras para apanhar as abelhas, para trabalho de pedreiros, cesteiros, para amassar a manteiga. Vamos misturando diferentes jogos vocais ou cantigas para os mesmos trabalhos e acabámos por criar umas suites, são seis ou sete canções mais longas, que duram à volta de sete minutos.

Este espectáculo será editado em disco?
Eu penso que sim, que acabaremos por editá-lo em disco. Oxalá em breve.

E este espectáculo que te trará a Portugal, o Trópico de Covadonga, é mais do que um concerto, não é verdade?
Sim, há muito texto, muitos testemunhos de senhoras, muitas fotografias antigas das Astúrias feitas por fotógrafos asturianos do século XX, alguma dança, um pouco de humor — não é um espectáculo humorístico, digamos, mas é algo que sem querer me sai [risos].

Qual te parece ser a razão para esta nova onda de artistas espanhóis que cruzam a música tradicional com a electrónica — como Baiuca, Vicente Navarro, Califato ¾…?
Pois, não sei, acho que é algo que já tem vindo a ser feito há algum tempo: tens a Mercedes Peón, da Galiza, que já o faz há muito, também algumas tentativas nos anos 90 que não tiveram tanto sucesso porque já atiravam um pouco ao new age e esses estilos que acho que envelheceram bastante mal. Mas sim, agora há uma vontade de olhar para o folclórico, porque quase toda a gente agora quer ser da aldeia, toda a gente quer ser folclórica, toda a gente é “genuína” … eu não gosto muito de modas, porque o pior que elas têm é que passam [risos]. Eu penso que há gente a fazer coisas muito interessantes, à margem de modas, como os casos que mencionaste. Também tens a Maria Arnal, Marcel Bagés, Le Parody… há muitas coisas interessantes a ser feitas e eu acho isso muito bom. Em Portugal também têm as vossas coisas!

Há algum artista português de que gostes particularmente, principalmente dos contemporâneos?
A verdade é que eu sou bastante clássico em termos de gostos. Gosto muito de ouvir o António Zambujo, os Fado Bicha… há também os Galandum Galundaina, que já sigo há bastante tempo e que são de Miranda do Douro.

Porque pensas tu que é importante manter as tradições e salvaguardar esse lado folclórico e tradicional?
Sempre tive a sorte de conhecer o mundo tradicional, que está muito perto das cidades, pelo menos aqui nas Astúrias, também na Galiza e suponho que em Portugal também. É um mundo muito mais humano, poético e com um conhecimento muito mais exaustivo de tudo o que nos rodeia. No mundo urbano, há um conhecimento muito geral, muito amplo, toda a gente tem carreiras e conhece coisas de muito longe, mas vêem uma árvore e dizem “é uma árvore”. Aqui na aldeia, um camponês nunca diz “uma árvore”; diz “um freixo”, “um castanheiro”, “uma aveleira” … ou seja, diz o nome específico do que está a ver. No mundo urbano, tudo se torna muito básico, não se sabe o nome de nenhum pássaro, de nenhuma erva — tudo é simplesmente “erva”. Então, todo este mundo [tradicional] é de uma sabedoria oral, praticamente, porque quase não se utiliza a nível formal ou escrito. É todo um conhecimento que se perde e que é fabuloso, é riqueza que estamos a perder. Mas sobretudo, por detrás de toda a teoria e de todo o valor cultural da tradição oral das aldeias, está a humanidade que os povos antigos conheceram, na qual viveram, isso é o que me fascina. Eu acho que é a salvação do mundo, o humanismo das aldeias! [risos]

Tu que és um rapaz do campo, achas que haverá um êxodo rural nesta geração?
Pois, eu acho que um pouco, sim. Conheço alguns casos de pessoas que foram passar o confinamento nas suas aldeias e descobriram que estavam melhor aí. Para mim, as cidades já não faziam muito sentido antes, mas agora acho que já não fazem sentido para ninguém. Toda a parte social e cultural, que era a única que te ofereciam melhor que as aldeias, já não existe. Por isso, estar a pagar 1000€ de aluguer em vez de 200€, passar o dia no metro ou, cada vez que há um confinamento, ter de passá-lo num apartamento de 40 m2 dividido com alguém que não conheces… a diferença de qualidade de vida [entre campo e cidade] ainda se tornou maior, agora.

Relativamente à manutenção das culturas, nomeadamente das línguas — como o galego ou o asturiano — através da criação de arte, sentes que há aí alguma pretensão separatista?
Penso que, no caso concreto do asturiano e do galego, não é uma ânsia tão separatista. No caso do asturiano, que é uma das línguas mais menorizadas do estado espanhol, juntamente com o aragonês, o que se está a pedir é algo muito concreto: uma oficialização, como a que existe em Miranda do Douro, que é a mesma língua — em Miranda, em Leão e nas Astúrias. O que pedimos é simplesmente um reconhecimento oficial da língua. Isso não significa que se salve apenas com isso, mas penso que igualar os direitos das pessoas que falam asturiano e das que falam castelhano é um passo muito importante para que não haja a diglossia em que se encontra o asturiano neste momento. Há uma criação cultural muito propícia à oficialização da língua asturiana, sobretudo na literatura, que é a área que se aproximou mais da protecção do idioma, mas continuamos muito mal. Está a isto [aproxima dedos] de se perder, porque não há transmissão geracional, que é o mais importante.

Pois, penso que aqui há um esforço para manter o mirandês, mas também provém de uma região muito pequena de Portugal, quando comparada com as Astúrias relativamente ao território espanhol.
Sim, mas penso que o que está claro em Miranda, como na Galiza, no País Basco, na Catalunha, em Valência ou nas Baleares, é que ter duas línguas não é um problema, mas sim uma oportunidade. É uma afirmação turística, uma afirmação cultural e uma reclamação das ajudas da Europa para as línguas menorizadas e que nas Astúrias se estão a perder, porque não se declara a oficialidade da língua. E bom, é uma perda de cultura.

Pensas que há mais consciência do papel de pessoas LGBT na história e nas tradições ou que isso ainda continua algo branqueado? Falo, por exemplo, do Rambal [mencionado na canção “Rambalín”, penúltima do Manual de Cortejo] ou de outras personagens que tiveram um papel importante nas suas comunidades e parecem ser um pouco esquecidas.
Sim, temos tendência a apanhar referências longínquas, grandes e famosas, enquanto que às pessoas que temos ao nosso lado e que poderiam também ser referências no futuro, sendo nossas contemporâneas, fazemos bullying ou simplesmente não as valorizamos. No concerto, por exemplo, falo muito da Milia la Miruxana, que era uma senhora que viveu aqui numa aldeia nas Astúrias, e de como graças a ela se deixou de pagar um imposto aos senhorios — um imposto que existia só porque sim, no século XX. Faço o paralelismo entre ela e a Rosa Parks, que era uma mulher afro-americana que se negou a ceder o seu assento a um homem branco num autocarro, desencadeando um movimento que trouxe muitos direitos para as pessoas não-brancas nos Estados Unidos. Eu pergunto “sabem quem é a Rosa Parks?” e uns 60% do público sabem quem ela é, mas ninguém sabe quem é a Milia la Miruxana, nem mesmo nas Astúrias. Mesmo a gente da minha geração sabe das revoltas que sucederam em Nova Iorque e deram origem ao Orgulho Gay, mas não sabiam quem era o Rambal. Temos referências tão próximas e pessoas que poderiam ser referências no futuro, que ainda estão vivas, mas afastamo-las ou não lhes damos voz. Isso parece-me ser algo a vindicar, por isso vindico tanto o Rambal. No mundo rural estamos a avançar muito, há muito mais visibilidade. Eu sinto-me mais seguro no mundo rural como pessoa homossexual do que no mundo urbano.

Que novos desafios te trouxe a pandemia?
A verdade é que tenho bastante sorte porque estou a dar muitos concertos, não deixei de actuar desde que saímos do confinamento, que aqui durou até princípios de Junho. Mas claro, os primeiros concertos foram muito duros, por causa do tema das distâncias, das máscaras… sais com muita energia como antigamente e as pessoas estão sozinhas, não lhes vês as expressões, só os olhos, e então toda a interpelação que tenho com o público, toda essa quarta parede que não existe, à qual eu me agarro sempre para qualquer erro, de repente deixei de poder usá-la. No início frustrou-me um pouco, mas apercebi-me que tinha de tornar o espectáculo um pouco mais musical, mais para dentro, estar mais com os músicos. Agora já encontrei um ponto mais equilibrado com o público, porque é claro, tu não podes estar aqui [levanta mão direita] e o público aqui [levanta mão esquerda abaixo da direita]. Tens de… [aproxima mãos] [risos].

Como te sentes relativamente ao epíteto de Freddie Mercury do folclore asturiano? Achei engraçada a descrição, até está na Wikipedia e tudo.
Está na Wikipedia? Não posso acreditar! [risos] Pois, não é algo que eu reivindique, na verdade. Não sei porquê, talvez pelo bigode, mas mais nada…

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