Entrevista. Papillon sobre “Chillin”: “Ou ganhamos todos ou ninguém ganha”

por Gustavo Carvalho,    6 Setembro, 2020
Entrevista. Papillon sobre “Chillin”: “Ou ganhamos todos ou ninguém ganha”
Papillon / DR
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Papillon lançou “Chillin”, um produto do confinamento, mas também das tensões sociais que se passam um pouco por todo o mundo, desde o movimento Black Lives Matter, às manifestações da extrema direita em Portugal. “Chillin” é uma música que parte de fora para dentro e divide-se em dois temas: “Chill”, que marca a estreia de Papillon em inglês e conta com a produção de Holly; “In”, no habitual português e com produção de Slow J. O artista acredita que a “dança” só será mudança se se der dentro de cada um. Além de outras músicas a título individual (que podem sair ainda este ano), o seu grupo GROGNation tem ainda temas por lançar do projeto com Sam The Kid. Mas não é só de música que falamos: também sobre outras narrativas que tem vindo a explorar, do projeto que fez para o MOTELX e sobre alguns dos artistas que mais o inspiram: comediantes.

“Chill” é a primeira música em que assumes o inglês numa música completa. Porquê?
Para mim a música completa é o “Chillin”. O jogo que nós fizemos foi quase criar uma oportunidade de escolheres qual é que é o caminho. Mas as duas músicas acabam por ser só um som, pelo menos conceptualmente funcionam num. Relativamente ao inglês: senti que o timing e a mensagem que eu queria passar era transversal, por isso achei que havia uma oportunidade de experimentar e combinar sabores. Aproveitei este momento para mudar um bocado a língua. O som também não fala só sobre a pandemia – é sobre todos os eventos que têm acontecido ultimamente no mundo, e que o têm impactado de alguma maneira, seja socialmente ou mediaticamente. Consumo o que se passa no mundo através da internet e acabo por me sentir afetado pelas coisas que vão acontecendo. O culminar dessas situações, que senti que era um struggle partilhado pelo mundo todo, fez-me querer exprimir em inglês, que é a língua que eu sinto que faz com que consiga comunicar com qualquer pessoa, em qualquer parte do mundo.

Papillon no palco do Sumol Summer Fest, em 2019, durante o concerto de GROGNation (Tiago Filipe/CCA)
Papillon no palco do Sumol Summer Fest, em 2019, durante o concerto de GROGNation (Tiago Filipe/CCA)

Como é questão de rimar em inglês? Sentiste que foi algo fluído ou estavas mais preso?
Não, foi bastante fluído, e a razão pela qual o som acontece é exatamente essa. Foi muito fluído. Eu não pensei: “Vou fazer um som em inglês”. Isso não aconteceu. Estava a ouvir o beat e as palavras começaram a surgir na minha cabeça, da mesma maneira que surgem em português, só que começaram a surgir em inglês. Tudo o que fiz foi aproveitar essa pequena faísca e ir até ao fim, ver até onde é que essa veia criativa me levava. Não foi nada fácil, o processo foi praticamente igual ao estar a fazer um verso em português. E lá está, o inglês que eu uso ali está dentro do básico, que é aquele que eu domino – e sinto que a própria mensagem tem a simplicidade suficiente para chegar a qualquer pessoa que entenda o básico da língua. Ou seja, eu não estou a falar para pessoas que saibam o inglês de um curso universitário. Estou a falar para qualquer pessoa que consiga entender aquela língua.

Da interpretação que fiz, o “Chill” está mais ligado à fase inicial do confinamento, onde tentámos ser otimistas. O “In” já é um bocado o apercebermo-nos de que certas coisas que achávamos que iam mudar – houve muito a narrativa de que íamos ficar mais generosos – ficaram iguais. Era esta a tua ideia?
Exato, eu concordo, a ideia passa muito por aquilo que acabaste de dizer. É importante perceber que não foi só o confinamento que aconteceu: foi a tensão social com o George Floyd, foram estes extremos políticos cada vez mais ativos nos nossos canais mediáticos, foram estes feelings todos. Tentei colocar no som o captar destas ideias e destas emoções todas. A música acaba por ser uma metáfora desta fase que estamos a passar, que é marcada muito pelo confinamento e pela pandemia, mas não só.

Há um verso, que se repete várias vezes, em que dizes: “A dança é cá dentro”. Liga bem com essa ideia da metáfora, no sentido em que a ideia do dentro tanto liga ao confinamento como à nossa consciência, e de que a mudança tem de partir de cada um de nós. Estou certo?
Exatamente. Tem de partir um bocado de cada um de nós. Eu tento sempre aglutinar as pessoas. Quando tínhamos a oportunidade de dar espetáculos, reparava que tínhamos pessoas de todas as vertentes, de todas as cores, e acho que a ideia é sempre essa. Estamos numa fase em que se está a apelar muito à divisão e àquilo que nós somos por fora. Temos de contar mais com aquilo que nós somos por dentro, o nosso valor intrínseco. Não aquilo que nos divide. Eu gosto de deixar a interpretação para quem ouve e não quero estragar a tua (risos), nem a de quem vai ouvir, mas é só ter em conta que isto é mais do que a pandemia. O som é um exercício de introspeção e é pensares um bocado no que está a acontecer à tua volta, na forma como temos estado a fazer as coisas, e tentar perceber se esse é o caminho ou se podemos fazer as coisas de uma maneira diferente.

No processo de construção da música surgiu logo a ideia de fazer uma música que se consegue dividir em dois sons, ou surgiu uma das partes primeiro e depois é que decidiste criar mais?
As duas músicas foram finalizadas ao mesmo tempo, começaram foi em processos diferentes. O “In” comecei ligeiramente antes do confinamento, e o “Chill” surge no período do confinamento. Percebi que conseguia criar este conceito de viagem que vai de fora para dentro em vários aspetos: por exemplo, o facto de eu estar a falar em inglês, que é a língua universal, e depois transitar para o português; nos elementos sónicos que usámos para fazer o primeiro beat, começamos com um ambiente mais exterior, com alguns elementos de ambientes externos, e depois passamos para um ambiente mais interno, mais introspetivo. Por isso é que para mim é um som. Podes decidir qual é a tua vibe. Se for mais externa, e te apetecer apenas ouvir o “Chill”, ouves só o “Chill”; se te apetecer ouvir o “In”, ouves o “In”; se te apetecer ouvir os dois, ouves os dois. Foi importante dar esse livre-arbítrio a quem escolhe. Mas como disse, finalizei os dois ao mesmo tempo, não finalizei o “In”, e depois o “Chill” e juntei os dois. Comecei em momentos diferentes, mas finalizei como se fosse tudo só um som.

Neste tempo de quarentena suponho que tenhas andado a criar mais sons para além deste…
Sim, sim

Mas em termos de consumir coisas, houve algum artista que descobriste? O que é que andaste a ouvir?
Estranho, andei a ouvir mais do mesmo (risos). Acho que a tendência é ir para coisas reconfortantes, não é? Portanto, estou sempre à volta do que é que o Drake lança; o J. Cole lançou umas coisas interessantes, ouvi e gostei bastante; estou sempre a ansiar que o Kendrick Lamar lance qualquer coisa (risos), portanto é um bocado por aí. Gostei bastante de algumas canções que saíram alusivas ao que tem vindo a acontecer, mais numa ótica de Black Lives Matter. O que a Jorja Smith fez, o Anderson Paak, estive a consumir um bocado de tudo. O Slow J também dropou uma cena, portanto acabei por ir ouvindo o que já costumo ouvir, numa de me reconfortar. Mas ouvi coisas mais antigas do que propriamente coisas novas.

Relativamente à parte da criação estás a pensar em lançar mais alguma coisa entretanto?
Sim, estou a pensar em lançar mais algumas coisas.

Singles?
Sinceramente acho que vai ser mais orientado para singles, ainda assim gostava sempre de tornar as coisas um bocado mais compactas e ir para além de simplesmente estar a lançar sons soltos, mas neste momento é aquilo que estou a experimentar. Tenho mais algumas canções que estou a finalizar, outras que já tenho finalizadas e que lançarei quando for oportuno. Também tenho estado a experimentar outras formas criativas e estou a tentar perceber se consigo lançar alguma coisa interessante ainda este ano. Mas está tudo ainda no processo, vamos tentar perceber se conseguimos finalizar e empacotar para mostrar ao pessoal. 

Estás a dizer que gostas de projetos mais compactos, na minha opinião isso deu para perceber bastante bem com o Deepak Looper. Não quero estar a pôr pressão, mas já começas a pensar num novo álbum?
(Risos) Eu pensar estou sempre a pensar. Não te vou mentir. Estou sempre a pensar nisso. Praticamente desde que terminei o “Deepak Looper” que o meu processo é dar continuidade ao trabalho que foi feito. Mas ao mesmo tempo gosto de acreditar que as coisas acontecem no timing certo e não gosto de forçar aquilo que não faz sentido estar a forçar. Acho que no final do dia, se é para lançar um álbum é para que o pessoal goste. O que eu tenho vindo a fazer é tentar estar o mais ativo possível, continuar a fazer música com entusiasmo, alimentar a minha fome de curiosidade, de querer saber mais, de querer aprender mais sobre música. Ainda me considero um aprendiz. Quando lançar um novo álbum não quero que seja uma repetição do álbum antigo, mas sim uma progressão. Por isso é que às vezes demoro um bocadinho mais, mas já estou no processo. Quero acreditar que vou trazer algo de novo e alguma coisa para acrescentar. Estou nesta fase de aprender, de experimentar, e quando chegar o seu tempo, vamos anunciar o álbum e vai ser com o intuito de voltarmos a celebrar um projeto. Mas acreditem em mim, se há pessoa que está a pensar no segundo álbum sou eu (risos). Quero muito poder dar o sucessor do Deepak Looper. O processo até agora tem sido muito no sentido de calibrar a máquina para conseguir dar o melhor segundo álbum possível.

Sobre o “Chillin”, no YouTube escreveste: “Sempre me considerei caseiro e introvertido por natureza mas descobri o valor do contacto com o exterior e com os que me são mais queridos”. Eu também me considero introvertido, e tenho ideia de que quem gosta de estar em casa, ao sentir-se obrigado a estar em casa…
Tem a tendência para fazer o contrário, não é? Como somos obrigados a estar em casa agora ficamos com vontade de ir para a rua.

Exatamente. Imagino que quando estás fechado, para trabalhar numa música, ou num projeto – o que seja – gostas de estar focado naquilo, mas do ponto de vista social e mental é sempre importante mantermos o contacto e interagirmos com a família, os amigos, a namorada. Como é que és tu a gerir essas situações?
Acho que sou péssimo a gerir isso (risos). Tento ao máximo equilibrar, mas dou sempre por mim a dar mais atenção a uma coisa do que a outra. Nomeadamente acaba sempre por ser a música ou o trabalho, mas tive bastante vontade de estar com as pessoas que me são mais queridas. A intuição partia para aí – estar com amigos, fazer jantares. Mas lá está, eu sou a pessoa que mais falha aos jantares e dei por mim com vontade de fazer um jantar em minha casa. A dinâmica foi um bocado essa. Deu para dar atenção a esse lado de família e de amigos e gerir a vida social de uma forma mais equilibrada, mas tendencialmente acabo sempre por dar prioridade à música. Felizmente o meu seio de amigos vai compreendendo aos poucos, mas faço um esforço para estar mais presente nas atividades sociais. Quero continuar neste caminho de equilibrar ao máximo estas duas dinâmicas, que são ambas muito importantes na minha vida.

No “Três Pancadas” disseste que tinhas vontade de explorar outras narrativas para além da música, mencionaste na altura o humor. Tens escrito algo nesse sentido de explorar outras narrativas?
Sim, tenho escrito outras coisas, sempre na base das experiências, para tentar aprender. Tive agora a oportunidade de fazer parte de um projeto com o MOTELX. Criámos um espetáculo que envolvia videomapping e tive de adaptar um texto do Gonçalo M. Tavares e torná-lo numa canção, dar-lhe ritmo e melodias, dentro do contexto do terror. Tentámos criar uma espécie de filme. Já estou a tentar explorar um bocado essas vertentes, estou a ir por caminhos que não costumam estar dentro daquilo que é o meu normal, da minha zona de conforto. Na comédia (risos), vou escrevendo umas coisinhas, mas é mais inside jokes, não me considero propriamente um comediante, mas gosto de meter sempre um bocado de humor nas coisas que vou escrevendo, porque é também um exercício de inteligência, de conectar pontos que se calhar outras pessoas não estão a ver. Estou sempre a tentar exercitar um bocado isso. Tive a oportunidade de mostrá-lo no espetáculo do MOTELX, e aqui e ali vou tentando continuar a exercitar a minha escrita, porque acho que acaba por ser benéfico para a própria música.

Quem é que te inspira nestas outras vertentes como a comédia? No “Três Pancadas” falaste um pouco sobre o Dave Chappelle, que com esta tensão social (que já aqui abordámos), lançou um especial mais curto sobre o assunto, não sei se viste…
Claro, vou buscar muita inspiração aos comediantes. Há uma frase muito interessante, que eu não sei de quem é, mas diz que: “Hoje em dia, rimos com os políticos e aprendemos com os comediantes”. Algo deste género. Não sei de quem é a frase, mas sei que a ideia está na perspetiva de que os comediantes têm muito mais para dar do que simplesmente fazer rir as pessoas. Nós aprendemos muito com os comediantes, eu aprendo muito com o Dave Chappelle… há uns que estiveram envolvidos em algumas polémicas, mas… Louis CK, o Chris Rock, o George Carlin, o Trevor Noah também é muito forte. Cada vez que vêm com um special sinto que estou sempre a beber da forma como eles executam as piadas. O pessoal pode não perceber, mas aquilo é mesmo uma arte, é um craft que com o tempo que passa começas a dominar, começas a perceber como fazer melhor, como executar da melhor maneira, e não é simplesmente fazer rir. É uma maneira de escrever que admiro bastante. Os comediantes são das minhas principais fontes de inspiração.

Papillon no palco do Sumol Summer Fest, em 2019, durante o concerto de GROGNation (Tiago Filipe/CCA)
Papillon no palco do Sumol Summer Fest, em 2019, durante o concerto de GROGNation (Tiago Filipe/CCA)

Com GROGNation, foi anunciado que iam fazer um EP com o Sam The Kid. Já vimos algumas dessas músicas, a última que saiu foi a “Body”. Vamos ter direito a mais músicas, ou foi a última música do projeto?
Vamos lançar mais coisas, vão sair mais músicas do projeto com o Sam The Kid. Para muito breve.

Vão estar a lançar até ao final deste ano?
Quero acreditar que sim. É uma questão de planear, estamos exatamente no processo de finalizar coisas para saber qual é que é o melhor timing para lançar. Mas é super divertido e uma grande honra fazer um projeto com o Sam The Kid. Agora temos mais uns quantos sons para sair. Como são decisões conjuntas não te consigo precisar. Temos tido reuniões, mas está quase aí, já estamos na reta final.

Em termos de concertos para este ano, está nos planos fazer alguma coisa?
Estou expectante. Estou a tentar perceber qual é que é a melhor maneira de fazer algo interessante e que respeite tudo o que tem vindo a acontecer ultimamente. Acho que estamos todos um bocado expectantes. Fizemos algumas coisas de transmissão, porque sentimos que havia as condições para fazer tudo em segurança. Vamos ver como é que as coisas se desenrolam nos próximos tempos para perceber se existem as condições para fazer bons espetáculos que a malta consiga ver e gostar. Mas como sabes está tudo meio parado e eu estou dentro dessa situação. Mas continuamos a criar e a fazer música, e havemos de fazer as coisas de outra maneira.

Para terminar, já falámos um pouco sobre o Black Lives Matter, mas acho que era importante teres o espaço para acrescentares alguma coisa se achares necessário, alguma mensagem que queiras deixar…
Neste momento, acho que tudo o que tenho para dizer está na música que lancei. Acho que os entendedores entenderão o que é que eu quero dizer com a música. Nestas conversas é sempre difícil teres um discurso que não contribua para o barulho. Estou a tentar não contribuir para o barulho e ser mais parte da solução do que do problema. As mensagens que eu quero passar estão quase todas nas minhas canções, porque quase todas são de união, de passar a mensagem de que ou ganhamos todos ou ninguém ganha. Devemos usar as ferramentas que temos ao nosso alcance para combater as injustiças todos os dias, nas pequenas e grandes decisões. Não é só quando acontece uma desgraça que temos de fazer manifestações. A manifestação é todos os dias. A reconciliação é todos os dias, desde o momento que sais de casa e vais ao café, até ao momento em que estás de facto no meio da manifestação. É com as nossas decisões diárias que vamos fazer a diferença. É essa a mensagem que tenho para passar e que está na música.

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