Entrevista. Guilherme Duarte: “Se calhar passei ao lado de uma carreira como escritor de lamechices para fazer senhoras de meia idade chorar”

por Martim Mariano,    20 Julho, 2020
Entrevista. Guilherme Duarte: “Se calhar passei ao lado de uma carreira como escritor de lamechices para fazer senhoras de meia idade chorar”
Guilherme Duarte / DR
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O Guilherme é engraçado. É mesmo. E não digo isto apenas por dizer. Digo-o porque já o vi em palco, já jantei com ele e, nessa mesma noite, vimos um jogo da seleção. Isto tudo passou-se em Leiria.

Convidei-o porque para além de ter graça, é criativo. Para além de ter piada, tem espinha. Para além de ser humorista, pareceu-me sempre um tipo sério (não muito, claro) e verdadeiro. E depois, cresceu no bairro, como eu. Sabe das coisas da vida. Sabe bem o que é que isso significa. E sabe o que são os valores.

Um humorista vive daquilo que escreve e do sucesso (e muitas vezes do insucesso) das piadas que testa. E o Guilherme não é diferente.
Só é diferente na forma como o faz. E faz o que faz de uma forma que agrada a muita gente. Basta ver o número de visualizações que têm os vídeos no seu canal de Youtube.

Poucas pessoas lidam com a crítica como ele o faz e foi também das primeiras pessoas que convidei para participar nesta série de conversas com artistas das palavras.

Por isso e porque já não há razão que justifique o estar para aqui a falar dele como se o amanhã não chegasse, senhoras e senhores, convosco, Guilherme Duarte.
(Há tanto tempo que queria escrever esta frase. Peço desculpa, sim?)

Vamos então à primeira pergunta que acaba sempre por servir de desbloqueador de conversa.

Quem é o Guilherme Duarte?
Quem é o Guilherme? Ora bem, o Guilherme sou eu. Sou um gajo introvertido que gosta de fazer os outros rir, em parte por gostar da atenção, mas principalmente porque gosta de espalhar alegria neste mundo chato.
Sou cínico com o mundo, resultado de algum idealismo frustrado e de ter percebido que esta experiência da humanidade não correu muito bem.

Acho que sou um gajo decente e com valores, mas também tenho o meu preço. Gosto de admitir a minha hipocrisia e não me colocar em pedestais de moralidade. Sou uma pessoa de gostos simples, para mim um carro é um instrumento para me levar de A a B, para mim comer é convívio e não uma experiência fine dining, mas começo a preferir hotéis de 5 estrelas face a pensões de uma. Posso estar a ficar uma diva, não sei.

Guilherme Duarte / DR

Porque é que escreves e porque é que começaste a escrever?
Eu sei lá de quem é a culpa, menino. Algures no tempo, por um acaso, em vez de escrever uma linha de código escrevi uma piada algures e tomei-lhe o gosto. Escrevo porque gosto e porque me dá prazer. Nunca tive jeito nenhum para qualquer coisa artística, mas sempre gostei de criar coisas e como nunca soube criar melodias ou pinturas, deu-me para começar nos Legos e ir parar à engenharia.

Acho que está tudo ligado a isso, a uma necessidade de criar coisas a partir do nada. E sempre gostei de pensar, dava-me prazer estar com os meus pensamentos e a escrita veio por acréscimo, materializar esses pensamentos.

Quando é que sentiste que era isto que querias fazer da vida? Lembras-te?
Isso foi há pouco tempo, há uns 4 anos, pouco antes de decidir despedir-me do meu trabalho de gente séria como informático.

Percebi que talvez conseguisse tornar o que começou como um hobbie no meu trabalho e rendimento o que é sempre um perigo porque pode começar a ser mais obrigação e menos prazer, mas cá estamos.
Foi um sentimento gradual, foi ver que aquilo que fazia de borla me podia sustentar em várias vertentes e arriscar.
Não sei se será um amor eterno, acho que me pode dar na cabeça de mudar de vida outra vez.

Recordas-te da primeira vez que provocaste algum tipo de impacto em alguém com aquilo que escreveste?
Lembro-me de deixar uma professora a chorar com uma composição que fiz no 7º ano sobre Timor. Foi giro ver que conseguia ter impacto apenas com palavras, especialmente num adulto.
Se calhar passei ao lado de uma carreira como escritor de lamechices para fazer senhoras de meia idade chorar.
Mais tarde, foi quando comecei o blogue e na internet dá logo para ver o impacto e com os primeiros textos e piadas vieram os primeiros risos e as primeiras “Não se brinca com coisas sérias” o que também é bom.
Para um humorista, o impacto, seja ele qual for, é sempre melhor do que a indiferença do público.

Quando é que começas a ser pago para escrever?
Pago directamente para escrever acho que foi há uns 3 anos quando comecei a minha crónica semanal no jornal online SAPO 24, que ainda mantenho. Até aí tinha sido pago indirectamente com publicidade no blogue ou através do stand-up em que pagavam para me ver interpretar aquilo que eu tinha escrito.

Tiveste algum mentor? Alguém que possas dizer que é a pessoa responsável por hoje ser esta a tua vida?
Nem por isso. Tenho referências e pessoas que admiro, mas mentor e responsável por este percurso acho que sou só eu e os meus pais e amigos que formaram esta minha forma de pensar e me ajudaram a não ter medo de arriscar e sempre me apoiaram nesta mudança.

Já tiveste vontade de parar de escrever e de ir fazer outra coisa qualquer?
De parar mesmo ainda não, mas de fazer um intervalo grande já.
De pelo menos deixar de publicar o que escrevo e tirar um tempo para escrever só para mim, mas ainda não surgiu o momento certo para isso. Quanto a deixar de escrever completamente, acho que só quando sentir que já não tenho nada de interessante para dizer, o que acaba por ser um sentimento que tenho todos os dias, mas lá vou espremendo e vai saindo alguma coisa.

O que é a escrita de humor tem que te diverte?
Acho que é um jogo de forças entre um lado mais intelectual e sério e um lado mais infantil e non-sense que por norma vamos perdendo à medida que crescemos. Acho que escrever humor exercita esses dois lados do cérebro e acaba por ser divertido e desafiante.
Depois há um fenómeno raro que é escrever uma piada e rir-me automaticamente sozinho com ela. Quando isso acontece, normalmente são as piadas que o público vai gostar mais.

Se não fizesses isto da vida, o que é que estarias a fazer?
Estaria no que fazia antes, ligado à informática, principalmente na óptica de criar novos produtos e start-ups e gerir todo esse processo desde a génese da ideia até à introdução no mercado e angariação de clientes.

Qual foi o teu melhor trabalho até hoje?
É difícil de escolher, porque muitos deles são um processo contínuo como as crónicas ou os podcasts, por isso é sempre mais fácil eleger um produto fechado como o melhor.

Diria que será a série de sketches Falta de Chá, tanto as duas temporadas como o especial de Natal, orgulho-me bastante desse projecto, mas talvez os espectáculos a solo de stand-up que culminaram na gravação e divulgação no YouTube seja o que mais me representa como humorista.

Já sentiste vergonha de alguma coisa que escreveste, ou já aceitaste escrever alguma coisa que odiasses apenas por dinheiro?
Sentir vergonha muitas vezes, especialmente quando vou reler coisas antigas, até me encolho às vezes, mas acho que faz parte, se eu gostasse de tudo o que já fiz passado uns anos era sinal que não estava a evoluir.

Quanto à outra parte da pergunta, que odiasse ainda não, nunca me pagaram suficiente para isso, mas já fiz coisas pelo dinheiro, claro, qualquer publicidade ou evento corporativo acaba por ser mais o dinheiro que move, apesar de depois poderem correr muito bem e ficarmos orgulhosos do resultado final.

Guilherme Duarte no Tivoli

Por onde é que começas? Texto ou título? Porquê?
Um misto, já que quase sempre começo por uma premissa ou um ângulo de um determinado tema que acaba por dar o título.

Depende muito se é algo sobre atualidade, ou algo que me aconteceu, ou simplesmente uma misturada de assuntos, não tenho um processo muito definido, às vezes já tenho tudo mais ou menos estruturado que vou escrever, outras apenas uma ideia que depois vai por caminhos que não estavam previstos.

Em relação ao stand-up, cada vez mais parto de uma ideia e ou tentando escrever em cima do palco, apesar de ser um processo muito doloroso porque a maioria das piadas acaba por ir ao lado.

Há muito trabalho e dedicação, ou acreditas que o talento é suficiente?
Talento não é suficiente, mas acho que há qualquer coisa além de trabalho e dedicação, especialmente no humor.

Há qualquer coisa que resultou da nossa infância e adolescência que nos faz ver o mundo de uma determinada maneira e fazer perguntas que a maioria das pessoas não faz, ou não dá conta que as faz.

Agora, há gente talentosíssima que não trabalha e nunca chega a lado nenhum e há gente sem talento que trabalha muito e acaba por ter sucesso. Se tivesse de atribuir percentagens diria que no humor é 80/20, trabalho e “talento”.

No dia-a-dia, tens alguma rotina, ou escreves quando calha?
Fora os prazos de alguns dos trabalhos que faço, que me obrigam a ter a rotina, normalmente é quando calha, mas obrigo-me a escrever quase todos os dias. Durante a manhã menos que o meu cérebro só está a capaz a partir das 12h.

Como é que reages às críticas?
Fazem parte, acho que temos desvalorizar tanto as críticas bota a baixo sem qualquer fundamento como “És uma merda, não tens gracinha nenhuma” como as demasiado elogiosas estilo “És um génio, o melhor de sempre”.

São ambas mentira e convém não acreditar muito nas primeiras se não perdemos auto-estima nem nas segundas se não perdemos a humildade e a capacidade de melhorar.

O humor é tão subjectivo que acho contraproducente dar ouvidos às críticas.

Claro que as há construtivas e que podemos aprender com elas, mas um médico não vai ter em conta os conselhos médicos dados pelo senhor da padaria.

Um humorista tem de ter um bocado essa arrogância de pensar “Eu é que percebo disto do humor”, apesar de o feedback do público é que diz se aquilo tem piada ou não.

Isto é um misto e um limbo entre respeitar o público e não dar ouvidos ao que ele diz. Acho que o maior respeito que eu posso ter pelo meu público é não respeitar o que ele diz e continuar a fazer aquilo em que eu acredito e acho piada.

No dia em que eu der ouvidos a dicas e a críticas individuais deste e daquele, começo a desvirtuar o meu conteúdo e a fazer coisas para “bater” e não porque acho que têm piada.

Quando é que te lembraste de começar a expor as mensagens e “ameaças” que recebes?
Foi logo no início, eu nunca fui um ávido utilizador das redes sociais, fora os tempos do mIRC e lá tinha o meu hi5, mas não era muito de usar as redes, então esse mundo todo que se abriu fascinou-me, tanto as pessoas que têm a generosidade de perder tempo a deixar um comentário de parabéns ou mandar uma mensagem a elogiar, o reverso da medalha também é interessante.

Começou de forma inconsciente do género “Olhem este anormal?
Vocês também estão surpreendidos como eu por haver gente assim que fica ofendida e ameaça pessoas por causa de uma piada?” e depois vi que era um bocado o normal das redes sociais e decidi sempre usar esse ódio que me é dirigido para divertir os outros.

Acho que transformar ódio em riso é uma espécie de mecanismo de defesa que eu tenho e que acaba por complementar o meu trabalho e imagino que não haja pior sentimento para alguém que me ofende por não me achar piada, do que ver essa ofensa a ser transformada em combustível para eu fazer rir outros.

Em 2018 ouvi-te contar uma história hilariante, num evento em Leiria, sobre teres ido falar com a mãe de um miúdo que te “ameaçou”. Queres contá-la aqui?
Se for o que eu estou a pensar faz parte do meu primeiro espectáculo a solo. Então, foi um rapaz que me foi deitar um chorrilho de insultos a mim, à minha mãe e a à minha hipotética irmã, em forma de comentário na página. Daqueles insultos valentes.

Eu fui ver o perfil dele e dei de caras com uma foto dele com a mãe, em que o perfil da mãe estava identificado.
Então, depois voltei ao comentário e respondi taggando o perfil da mãe para ela ver o que o filho dela andava a dizer nas redes sociais.
Ele apagou e bloqueou-me logo, mas eu já tinha tirado print.

Foi giro, pelo menos para mim. Cumprimentos à dona Manuela.

Qual a coisa mais incrível que a escrita te trouxe?
A liberdade desta profissão, de fazer algo que gosto e de me conseguir sustentar com isso. Acho que também me traz alguma sanidade e acuidade mental, parece-me.

E a pior?
A constante pressão de criar coisas novas.

O que é que achas do teu trabalho?
É sempre complicado fazer de júri do que faço.

Qualquer humorista que diga que não sabe se tem piada ou não, está a mentir.

É preciso acreditar muito que temos piada para lançar um texto às críticas e especialmente para subir a um palco e fazer stand-up.
Agora, a comédia existe quase no imediatismo em que é publicada, antes de publicar acho que está bom, umas vezes mais outras menos, depois há ali umas horas em que aquilo é giro e faz sentido e depois é passado e complicado de avaliar em retrospectiva, até porque a comédia tende a envelhecer mal.

Mas sinto orgulho no meu percurso, acho que conquistei coisas giras e que tenho um público exigente.
Tenho alguma segurança relativamente ao meu trabalho feito, mas muita insegurança quanto ao trabalho que está para vir, estou sempre com aquele medo que acho que é comum aos humoristas que é deixar de ter piada e coisas interessantes para dizer.

Tens autores de referência?
Por cá é a santíssima trindade Herman, Ricardo Araújo Pereira e Bruno Nogueira, são os que mais influenciaram o meu sentido de humor enquanto crescia, especialmente o Herman com o Herman Enciclopédia. Lá fora o George Carlin talvez seja a minha maior referência, mas neste momento o Ricky Gervais, como autor, é dos mais completos.

Há algum livro, texto, guião ou outro trabalho qualquer de outra pessoa que gostavas de ter sido tu a escrever?
Muitos, muitas piadas que oiço e que fico roído de inveja de não ter sido eu. Assim projectos mais de ficção por cá acho que o Último a Sair é talvez o projecto mais diferente e verdadeiramente genial, porque inventou algo. Tanto a ideia como a execução são brilhantes.

Qual é o papel do Twitter (e das outras redes sociais em que estás presente) na tua vida profissional?
O Twitter é o meu caderno de piadas, não tenho grande critério com o que coloco lá, é um bloco de notas a céu aberto e, como tal, 90% das coisas que lá meto são lixo, mas faz parte do meu processo criativo.

Também serve quase para registar piadas sobre um tema, assim fica lá marcadinho que eu fiz aquela piada primeiro.

O Facebook e Instagram uso mais para formatos longos e coisas mais polidas (fora as stories que também são lixo ou a minha cadela).

O YouTube para vídeos, até porque se fosse para outra coisa era estranho. Todas tem o seu papel e retroalimentam-se de alguma forma, às vezes faço a mesma piada de 3 maneiras diferentes, consoante a rede onde estou a publicar.

Tento não descurar as redes porque foi aí que “nasci”.
Cada vez mais protejo algum material para ser exclusivo para stand-up, mas não quero deixar de publicar coisas nas redes sociais para o público que me tem acompanhado por lá.

O que é que as palavras representam na tua vida?
Sinto que tens esta pergunta preparadas para quando entrevistas escritores a sério. Não tenho nenhuma resposta profunda para isto. Se eu ganhasse à palavra diria que representavam 50 cêntimos cada uma ou assim. Representam uma forma de fazer sentido do mundo e de contar histórias e entreter.

Enquanto humorista significam os blocos essenciais para a construção do humor. É na palavra que tudo começa, o humor na forma escrita é a forma mais pura de humor, porque não tem caretas, inflexões de voz, nada, só palavras.

Fazer rir alguém só com palavras é um fenómeno giro.  As próprias palavras em si, sozinhas, podem ser cómicas. Picha tem mais piada do que Piça. E com esta nota profunda e erudita me despeço, obrigado e até à próxima.

Entrevista de Martim Mariano, originalmente publicada em O Que Dizes Tu?, tendo sido aqui divulgada com a devida autorização.

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