Entrevista. Guilherme Duarte: “O humor é para fazer rir, não é para fazer activismo”

por Comunidade Cultura e Arte,    20 Abril, 2019
Entrevista. Guilherme Duarte: “O humor é para fazer rir, não é para fazer activismo”
Guilherme Duarte
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Em plena tour do seu mais recente solo de stand up, Só de Passagem, estivemos à conversa com Guilherme Duarte, que se deu a conhecer ao mundo (ou como quem diz, às redes sociais) através da conhecida página Por Falar Noutra Coisa. Já com várias datas esgotadas em todo o país, prepara-se também para a sua estreia além fronteiras dia 4 de Maio em Londres, no Leicester Square Theatre, e a 20 de Julho no reputado clube de comédia Tinta Roja, em Barcelona.

Antes de voltar a passar por Lisboa onde o seu primeiro espectáculo esgotou, tivemos oportunidade de falar um pouco sobre o seu trajecto, os seus impulsos criativos, projectos futuros e a sua opinião sobre como a sociedade (nomeadamente a sua elite) lida com o humor.

Como foi passar do regime autoritário do curso de Engenharia Informática para a criatividade da comédia? Ficaste traumatizado?
Sim, o meu Vietname. Nem sei bem como aconteceu, na realidade. Estive lá os meus oito aninhos, a média, não é? – quem faz em cinco normalmente desconfio da sua sanidade mental – e comecei logo a trabalhar numa consultora onde estive dois anos e tal. Gostava do dia-a-dia, mas pensar que iria fazer daquilo a vida toda…iria cortar os pulsos.

Isto dentro da tua área, engenharia informática.
Sim, muito dentro da programação, e houve uma altura em que decidi que me iria despedir porque tinha um projecto maluco com um amigo meu que era viajar pela Europa inteira e filmar artistas de rua. Era uma desculpa para viajarmos à pala. Conseguimos patrocinadores e, depois, quando voltei, criei o blog. Com o tal projecto entrei mais em contacto com o pessoal de marketing digital e achei que isso poderia ser fixe, porque estava dentro das tecnologias e da internet, algo que na altura estava a surgir. Isso levou-me posteriormente a entrar numa empresa de startups, ainda na parte da informática, mas uma área mais criativa. Criava startups desde o início: da concepção até ao mercado. Nessa altura, estava a conciliar o blog com o trabalho e comecei a ganhar o gosto a escrever, era um escape, como ir ao ginásio.

Então não tinhas nenhum público alvo?
Não, zero. Aliás, quando criei [o blog] nem era para ser de humor. Depois comecei a perceber que sempre que escrevia resvalava para a tentativa de humor. Nem punha a minha cara, era anónimo; só mostrei a minha cara quando comecei a fazer stand-up e quis trazer o pessoal que lia o blog para as salas. Acabei por me interessar mais por humor também nas outras vertentes: a fazer stand-up, cursos de escrita para aprender alguma coisa e compreender se os formadores achavam-me alguma piada ou não. Assim, as duas partes foram convivendo: a parte empresarial mais formal, dentro do que eu tinha estudado durante aqueles anos, e a escrita por hobby.

Conciliaste estas duas partes durante muito tempo?
Durante dois anos, sensivelmente.

Na empresa havia pessoas que sabiam que tu tinhas aquele blog?
Sim.

E existia um confronto? Naturalmente haveria pessoas que não concordavam com as tuas ideias ou as piadas tocavam em assuntos sensíveis para elas.
Não me diziam na cara. Na net é outra coisa. E mesmo que eu escrevesse uma piada mais agressiva as pessoas conheciam-me pessoalmente, sabiam que eu estava a brincar e que não era uma besta. Então, não existia essa quezília. Por exemplo, mesmo quando escrevia textos sobre a tourada, em que eu era bastante crítico, simplesmente diziam que não concordavam, “não concordo, mas tens todo o direito de escrever as tuas opiniões”.

Seria interessante que visses comentários pessoas da tua empresa que não sabiam que eras tu.
Sim, mas não acontecia porque era uma empresa pequenina, de 60/70 pessoas.

Confrontarias a pessoa?
Não, à partida não. Agora, se fosse uma ameaça de morte, aí era diferente, “lembraste daquela vez em que me ameaçaste que me batias na rua?”. Mas nunca me aconteceu e as coisas foram convivendo pacificamente. O meu chefe sabia e era flexível caso precisasse de sair mais cedo porque tinha um espectáculo de stand-up, por exemplo. Ele sempre foi impecável e é patrono do meu podcast. Talvez se tivesse tido um chefe diferente não teria avançado com isto, porque ele deu-me espaço para a minha criatividade. Chegou uma altura em que tive que decidir o que eu gostava mais e também comecei a poupar dinheiro para em tempos de seca não ter de pedir dinheiro aos meus pais.

Já na altura, percebias que tipo de público é que te seguia?
Tens sempre aquelas estatísticas do Facebook, que nem sempre são relevantes, porque o público que põe like na página não corresponde necessariamente o público que lê mesmo tudo no blog. Mas, pelos comentários, comecei a perceber que era entre os 25 e os 30 e poucos, a minha faixa etária; eram mais mulheres do que homens, até porque as redes sociais, sem contar com o Youtube, são usadas mais por mulheres. Mas também vou tendo uma faixa etária mais jovem com outros projectos, como o Falta de Chá. E nos espectáculos é engraçado, porque vejo pais a levarem os filhos, que não me conheciam, ou até o contrário. Obviamente que também se pode tornar mais difícil para mim porque não tenho um nicho.

A partir de que momento é que te apercebeste que havia realmente público para fazer a transição do digital para o palco?
Quando fiz a primeira tour, em que estava um pouco às cegas. Eu sempre tive a noção que o like é relativo: é giro, dá visibilidade, enche o ego, mas a tradução disso para o pessoal levantar o cú do sofá e pagar bilhete é totalmente diferente. É sempre muito residual, 2 ou 3%. No Porto, por exemplo, eu queria fazer a sala pequena do Sá da Bandeira, que tem à volta de 100 pessoas, e eles queriam fazer a de 900 e, na altura, achei estúpido porque se fossem 100 pessoas numa sala tão grande seria horrível.

Tinhas feito algum teste de mercado para antever a adesão?
Não, fui fazendo em alguns bares e a colocar os cartazes na página e vi que o pessoal reagia. Mas não sabia realmente a quantidade de público que existia nos diversos sítios. É interessante também perceber que às vezes é nas pequenas cidades como Leiria que as pessoas valorizam mais estes espectáculos.

Porque têm poucas oportunidades para se cultivarem e arriscam mais?
Sim, acho que é isso que acontece.

Notas alguma diferença no público da capital ou de uma grande cidade para o interior?
Não, apesar de já ter tido uma experiência engraçada em Vila do Conde em que duas pessoas saíram nos primeiros quinze minutos, porque ficaram muito ofendidas e até pensava que aquilo iria partir para a porrada.

És da opinião que uma piada não tem de necessariamente concretizar a opinião do humorista?
Sim, zero, senão eu era uma besta. Mas acontece muito as pessoas confundirem a piada com a opinião. Nós dizemos coisas engraçadas que às vezes até vão contra as nossas opiniões.

Lidas bem com isso?
Tenho pena, porque acho que se as pessoas conseguissem compreender e informar-se um pouco mais sobre o humor e o que é rir, iria aproveitar melhor. Acho que poderia existir mais cultura humorística. Eu costumo dizer que se num jantar de amigos um deles disser uma piada horrível, tu não vais deixar de ser amigo dele porque já o conheces. É alguém que partilha a maioria dos teus valores e ele disse aquilo só porque achou que aquilo iria ter piada. Mas o pessoal como não conhece pessoalmente o humorista, não tem uma empatia, por isso parte do pior pressuposto, “aquele gajo é uma má pessoa, ele está a tentar ofender”.

Tens medo de um dia querer dar a tua opinião e ninguém te levar a sério por acharem que é uma piada?
Acho que não, porque habituei desde cedo os leitores a distinguirem os diferentes tipos de texto. Às vezes até recebo comentários ou mensagens de pessoas a dizerem, “eu estou aqui para me rir, não para falar de assuntos sérios”. Mas sempre gostei de também escrever de forma não humorística, porque às vezes é só um desabafo. Na minha página, não diz em lado nenhum que é de humor. Quando estou em palco, a intenção é fazer rir; quando estou na internet tenho uma maior liberdade, e às vezes as pessoas até me pedem para falar sobre um assunto em concreto.

Isso acontece porque as pessoas gostam que dês a tua opinião como um cidadão comum?
Eu não gosto da expressão “opinion maker”, porque quando alguém põe like no teu texto não foi porque tu conseguiste mudar a opinião das pessoas, mas porque, na realidade, és a ressonância da opinião. Possivelmente aquelas pessoas nunca conseguiram expressar as suas ideias. Por exemplo, o vídeo com mais visualizações que eu tenho no Youtube é sobre cães abandonados e tem zero piada, o que é triste para o humorista (risos).

Aproveitando a questão das causas sociais, em que tu és fervoroso quando debates sobre cães. De alguma forma, sentes que estás limitado? Ou seja, que existe uma pressão para seres engraçada se quiseres fazer, por exemplo, uma publicidade?
Eu não sou muito de causas. Quando falo do assunto é em modo de desabafo, não abraço a causa e acredito que consigo mudar o mundo. Na realidade, estou completamente pessimista relativamente à espécie humana. O tal vídeo que referi teve 14 milhões de visualizações, porque ainda chegou ao Brasil. Eu acabei por receber 3 ou 4 mensagens em que as pessoas diziam que iam comprar o cão e depois decidiram adoptar. Isto não muda absolutamente nada, mas o facto de aquelas pessoas mudarem a forma de pensar é fixe. Então como eu não tenho essa pretensão, não gosto muito de fazer estas coisas. Os meus textos da tourada não vão acabar com ela, por isso aproveito para fazer as pessoas rirem e chatear o pessoal que gosta daquilo.

Por exemplo, quando vemos um humorista a fazer uma publicidade, todos nós olhamos para ele como tal, não como actor, e, por isso, esperamos sempre quando é que vai surgir a piada.
Eu detesto ver publicidades feitas por humoristas que não têm piada. Até porque é exactamente na publicidade em que existem mais meios e onde é possível fazer algo com mais qualidade. Porém, as marcas querem sempre fazer algo engraçado, mas fugindo ao humor. Não existe uma verdadeira liberdade criativa.

Aproveitando a questão da liberdade. Até à data da entrevista, já foste duas vezes ao Levanta-te e Ri. Este é um mítico programa que está associado a um canal privado. Sentiste algumas barreiras, algumas limitações?
Há várias questões relativamente ao programa. Primeiro, existem muitas pessoas que acham que está datado, por ser um formato antigo. Eu, pessoalmente, não tenho nenhum problema com isso. Acho que o que faz sentido é existirem comediantes das várias gerações, porque também tem um público bastante transversal em termos geracionais. Em segundo lugar, apesar de aquilo ter lá uma bolinha no ecrã e passar ao final da noite, eu tenho de ter alguma sensibilidade. Disto isto, mandei o guião que me apeteceu e só me cortaram uma piada, na primeira vez. Eu também mandei as mais lixadas para ficarem as outras. Subi logo a parada. Dessa vez, fiquei um bocado desiludido, porque não consegui fazer as piadas todas, isto por causa dos intervalos, etc. Mas eu percebo as regras do jogo, faz parte. Quanto ao público foi giro ver as reacções das famílias, a encolherem-se em certas piadas e depois a rirem-se. As piadas que eu fiz lá são do meu solo antigo, por isso nada mudou realmente e só assim é que faz sentido para mim.

E, agora, vendo os prós e contras, achas que continua a fazer sentido participares nesse programa?
Primeiramente é um desafio. Em segundo lugar, eu nasci com aquilo por isso seria impensável rejeitar, é um marco. Também ficas com um carimbo de qualidade, até da perspectiva de marcas e empresas, porque valorizam mais aquilo do que os teus seguidores nas redes sociais. E se 10% das pessoas que estavam a ver gostarem e começarem a seguir-me está óptimo.

O podcast trouxe uma maior liberdade ao humorista pela forma como o conteúdo é produzido e pela forma como chega ao ouvinte. Tu próprio tens um podcast “Sem Barbas na Língua”. No ano passado introduziram-se outros formatos como o Roast. O que ainda falta experimentar em Portugal? Ainda se pode esticar mais a corda? O que falta fazer para agarrar o público português de forma diária, em termos de consumo? É possível existir um Daily Show?
Tipo Hot Clube, 3 sessões por noite tudo cheio…impossível. Um Daily Show diário também dificilmente, pelo menos com qualidade, porque é caro. O John Oliver ou o Trevor Noah têm trinta guionistas fora os milhões que têm em meios de produção. Cá, mesmo assim, o novo programa do RAP tem oito guionistas. E também é muito mais fácil quanto tens um país muito maior como os EUA. Tens muito mais sumo. Cá, durante uma semana, não tens nada, depois já tens o Neto de Moura.

Lá fora também existe o formato talk-show.
Sim, mas isso é um formato que está a morrer. Os convidados não têm nada para dizer, vão simplesmente para promover os seus livros ou as suas músicas e, hoje em dia, as pessoas querem é ouvir os podcasts durante uma hora ou mais, em que consegues aprofundar determinados temas que têm nada a ver com o trabalho da pessoa. Os momentos de humor no formato talk-show já não existem, o programa do Jimmy Fallon, para mim, já não são nada com aqueles joguinhos. Existe uma clara mudança de paradigma. E o que falta em Portugal é as pessoas comprarem um bilhete sem conhecerem o cartaz, existir uma nova cultura.

Vês um sinal de mudança dessa cultura com o surgimento, por exemplo, de podcasts?
Sim e até com a quantidade de solos, este ano. Está a correr bem para todos os comediantes e ninguém está a roubar espaço aos outros. Os próximos três/quatro anos vão ser fortes para o surgimento de novos comedy-clubs.

Achas que um obstáculo para a mudança pode incidir no facto de o público português considerar 15 euros um valor caro para um espectáculo de stand up?
Sim, mas esse é o problema de as pessoas, não saberem os custos por detrás disso e o trabalho que existiu para chegar ali: meses a escrever, meses a testar em bares e a reescrever, para depois chegares ao fim e teres uma hora e meia. A maioria do público acha que tu vais para o palco dizer umas piadas e que nada está escrito e pensado. Alguns até acham que tu vais a dois sítios diferentes e, apesar de o cartaz ser o mesmo, tu vais dizer coisas completamente diferentes umas das outras.

Podem também não saber que o humorista tem de arrendar a sala.
Sim, e apesar de ser só eu em palco, ainda tenho o gajo da produção, da promoção, o designer que fez o cartaz, uma série de pessoas. Acho que quando o público compreender todo este processo, que só acontecerá quando existir uma cultura de comedy-club, é que as coisas irão mudar. Nós agora temos o Maxime e colocámos os bilhetes à venda por 10 euros, um pouco acima dos preços de mercado, e decidimos assim porque acreditamos que vamos dar um bom espectáculo. Por exemplo, lá fora, os preços rondam os 30/40 euros. Por isso, à escala, não é caro.

Ou seja, as pessoas ainda não compreendem o processo criativo de um humorista.
Sim, e isso é uma das nossas batalhas. No fim da tour anterior, fiz uma mini-tour por bares em cidades onde não tinha ido mostrar o meu solo, cidades pequenas, e filmámos os bastidores. Ainda não publicámos, mas a ideia é mostrar o que é um beat, uma set-up, uma punchline, mostrar o que é testar o material em bares.

O que é que sentes que evoluiu desde o teu último solo?
Acho que se centra mais na entrega em palco, conseguir colocar mais energia em palco e encontrar a tua persona de palco.

Neste último, Só de Passagem, as temáticas são todas diferentes?
Sim, quase tudo. Ainda falo um pouco da religião e da morte, mas de resto é sobre a juventude, de não querer ter filhos. Agora é sobre o presente e como as maluqueiras do passado influenciaram a minha vida.

Experimentaste muito este material em bares? Por exemplo, no podcast do Joe Rogan, o Kevin Hart disse que o seu processo criativo e de limar o texto demora à volta de dois anos e o dos outros comediantes também tem um período parecido.
Sim, também já comecei a ver esse episódio. Por acaso, acho que o Joe Rogan faz um período de ano e meio. Felizmente, eu não dependo só do stand-up. Também tenho as crónicas no jornal e na rádio que me dão um rendimento fixo. Na tal mini-tour que fiz por bares experimentei um pouco de material novo, experimentei um par de noites no Porto, no Maxime, em espectáculos de empresas e festivais, mas nunca vai limado e testado quanto devia ser, é impossível.

Como é que te alimentas em termos criativos, quando queres escrever crónicas ou até para a rádio?
Baseia-se tudo na actualidade ou até em coisas giras que acontecem em tour. No texto para a minha tour já é um processo ao longo do ano, mas normalmente nunca começo por decidir ler sobre um tema e criar humor a partir daí. Obviamente que temas como a morte ou a religião são recorrentes, mas não é com um propósito especial. No Falta de Chá, se não fosse o Ricardo, todos os sketchs eram sobre isso. Eu sabia que queria fazer um espectáculo que tocasse no tema da morte e nos vivos e o facto de não querer ter filhos encaixa bem nisso, porque isso faz com que tenha uma perspectiva diferente relativamente à vida. Depois, o título que dou no fim é escolhido posteriormente com base no todo: o primeiro capítulo é sobre como nasci, o segundo sobre a fase dos meus vintes anos em que fumava muita ganza e outras maluqueiras e a terceira parte sobre a morte; acho que acabou por fazer sentido, mesmo construído de forma orgânica como um puzzle.

Já fizeste uma série de sketchs em conjunto com o Ricardo Cardoso, no Falta de Chá, que passou na Sic Radical. Foi somente uma experiência única ou pensas repetir? É um tipo de humor que puxa por ti?
Sim, curti muito, porque fiz com o Ricardo e dei-me logo bem com ele, temos uma química boa e o pessoal da produção esteve sempre a adicionar qualidade ao trabalho. Quanto à minha qualidade como actor se calhar sou horrível, não posso pensar nisso. Na primeira temporada, havia muito pessoal que só me conhecia a partir da escrita e escrevia comentários a mandar vir comigo. Aí pensei que se calhar tinha mesmo mais jeito para a escrita. Na segunda temporada, isso já não aconteceu, já tinha quebrado a barreira. Acho que tenho jeito para fazer algumas personagens, menos com as “normais” em que sou péssimo. Quero continuar a experimentar está área. Agora, ser actor puro tenho zero interesse. Mas gostava de experimentar, por exemplo, uma série, mesmo que seja um drama com comédia como a série do Louie do Louis C.K.

Gostavas de realizar?
Sim, gostava de escrever e realizar longas-metragens, quer em filme ou série. Se calhar nem tanto a ver com comédia, talvez até thriller.

Como o caso do Jordan Peele que agora lançou um novo filme, Us?
Sim, por exemplo. Ele tem sempre a ironia e a crítica social.

O caso em que o juiz Neto de Moura processou várias pessoas, inclusive humoristas (menos a ti, até agora), pode significar que uma parte da elite portuguesa convive mal com a liberdade de expressão, inclusive quando tem uma forma satírica? Por exemplo, antes era impensável um político aparecer num programa televisivo.
Agora vão com perguntas combinadas. Eles vão para lá fazer boa figura. Por um lado, é bom que os políticos apareçam, existe um sentido de humanização, mas, por outro, falta um Sacha Baron Cohen para meter os dedos no cu. Se bem que, como humorista, tenho de admitir que ele também sofreu de bullying, apesar de ser merecido. Essa é que é a diferença. Claro que houve ofensas gratuitas. Eu próprio fiz.

Se um cidadão comum tivesse dito o que tu ou outro humorista disse não seria ilegal.
Sim. Obviamente se passar para o nível do boato, “ah eu vi o Neto de Moura a enrabar um cão”, ele tem todo o direito de se defender e de te processar. Agora, por processares por ofensa à honra não é nada, é abstrato. Quando entra por aí é perigoso, mas não vai dar em nada. Ele tem a legitimidade de processar, como é óbvio. Porém, o dia em que juízes condenarem humoristas, como no Brasil com o Rafinha Bastos, será perigoso. Lutou-se tanto pela liberdade de expressão que espero que, agora, não se a perca. Por exemplo, nos Globos de Ouro, lá fora, o apresentador é um humorista, como já foi o Ricky Gervais. Cá, não. Tens sempre aquelas piadinhas que passaram pela lupa de mil e uma pessoas. Ainda por cima as elites são as pessoas perfeitas para serem gozadas, são pessoas privilegiadas. Ainda vivemos num país atrasado. Lá fora, em países ditatoriais, os ditadores têm medo dos humoristas e do seu suposto poder.

Nenhuma revolução começou com um humorista.
Sim. O humor é o barómetro da sociedade. Aliás, o bom humor é anti-sistema.

Achas que existe um lobby feminista que está contra o humor e que quer que os humoristas, pelo menos, se censurem?
Eu não gosto de chamar a essas pessoas de feministas, porque isso seria ofender as verdadeiras que lutam em várias áreas e países. Cá, existe um grupo de pessoas que só quer aparecer e importou algumas coisas dos EUA. Apesar de eu não concordar com muita coisa que as “neo-feministas” dizem, nunca se falou tanto da igualdade de género e isso é importante. Acho que estamos todos a falar da mesma página. No outro dia vi um artigo em que diziam que o homem branco heterossexual não devia votar durante vinte anos para equilibrar o sistema. Isto é ridículo e é um discurso de ódio. Se o homem branco está no poder, tu precisas do apoio dele. O movimento civil norte-americano só conseguiu acabar com a escravatura com a ajuda do homem branco. Acho que devia ser crime este tipo de discurso, porque se dissesses que os negros não deviam votar seria crime. Uma coisa é uma conversa no café, mas não é o caso: elas têm uma plataforma. O que vale é que Portugal ainda tem muito presente a ditadura e os movimentos extremistas não têm muito sucesso. Os PNR da vida não conseguem ter sucesso cá. O mesmo acontece com movimentos de extrema esquerda. O público, parecendo que não, não é tão influenciado por esses tais lobbys.

Numa entrevista ao Sol, a Rita Ferro Rodrigues, disse que achava que deveriam existir mais mulheres comediantes feministas. Achas que tem de existir esse tipo de categoria?
Não, não tem. Tem é de existir humoristas que façam rir. Eu não conheço nenhum humorista que não seja a favor da igualdade de género. O humor é para fazer rir, não é para fazer activismo. Talvez faça humoristas diversificados. Porque é que não fazem falta humoristas negros? Também faz. Quando sai um cartaz de um festival não se vêem mulheres, mas eu garanto-te que, muitas vezes, duas ou três humoristas mulheres foram convidadas e que, ou por acharem o preço baixo ou por não fazerem stand-up, não aceitaram. Qualquer boa humorista vai-te dizer que hoje, ser mulher é uma vantagem, porque existe uma necessidade de haver um equilíbrio. Isto tem coisas boas ou más: existe o tal equilíbrio mas, muitas vezes, vão mulheres que não têm jeito nenhum. E isto é mau para as outras mulheres, porque se só forem para preencher quotas vai dar uma noção para o público que elas não têm jeito por defeito. Eu não sou a favor das quotas, apesar de compreender que, por vezes, é um mal menor.

Muito menos nas artes.
Sim, porque, aí o público é que manda. Aliás, a maior parte das pessoas que se revolta por não existirem mais mulheres no humor, são as mesmas que não pagam um bilhete para as ver. O riso não é preconceituoso. Porém, acredito que a forma como as mulheres são educadas, para não serem engraçadinhas e rebeldes, pode influenciar a iniciativa e a coragem das mesmas para subir ao palco, acredito nisto. Mas também acho que existam razões evolucionais envolvidas nesta dinâmica; já não sei quem dizia que “os homens têm sentido de humor para engatar e as mulheres têm mamas”. Ou seja, o homem desenvolve desde muito cedo essa arma e as mulheres não precisam disso. Era uma explicação evolucional para mostrar a razão dos homens quererem ser os engraçados mais cedo. Isto não significa que as mulheres tenham menos sentido de humor, mas sim menos interessadas em fazer humor. É uma explicação sociológica que tendo a concordar.

Bilhetes para as restantes datas da tour

Entrevista realizada de João Pinho e João Estróia Vieira

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