Entrevista. É Apenas Fumaça: “O jornalismo isento é uma coisa que não existe”

por Comunidade Cultura e Arte,    7 Maio, 2018
Entrevista. É Apenas Fumaça: “O jornalismo isento é uma coisa que não existe”
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O É Apenas Fumaça é, na descrição dos próprios, “um projecto de media independente, onde se fala sobre a sociedade com quem quer falar sobre ela”, procurando “dar voz a quem não a tem e escrutinar os assuntos aos quais não é dado espaço pelos media tradicionais.” Começaram por, em formato podcast, conduzir entrevistas com especialistas nas áreas que lhes interessava debater, mas desde então compuseram já reportagens acerca de temas diversos, desde o acompanhar de manifestações, como a que recentemente se insurgiu contra a possível exploração petrolífera na costa de Aljezur, a peças sobre Chelas ou sobre a casa que esteve ocupada no número 69 da Rua Marques da Silva, em Arroios, Lisboa. Já se aventuraram até no formato vídeo, numa entrevista ao ex-primeiro-ministro José Sócrates que lhes deu ainda maior tracção, e dizem que o formato vídeo é uma aposta futura. São parceiros da Comunidade Cultura e Arte e, na nossa óptica, uma das plataformas média mais interessantes do país. Falámos com o Ricardo Ribeiro e o Frederico Raposo sobre o projecto.

O É Apenas Fumaça é uma plataforma que pretende, entre outras coisas, dar voz a quem menos direito a ela tem. Consideram-se, enquanto plataforma, politicamente alinhados?

Ricardo Ribeiro: Alinhados com alguma coisa? Sim, sim, eu acho que o jornalismo é um acto político, e, portanto, os jornalistas são actores políticos, tal como as pessoas são actores políticos. Portanto, sim, alinhados com aquilo que nós, como colectivo de jornalistas, temos vindo a pensar, e a verdade é que nós pensamos todos pelo menos de uma certa maneira num tema: somos progressistas, e assumimos isso. Na medida em que acreditamos no progresso social e que todas as pessoas devem ter direitos humanos assegurados e necessidades básicas garantidas. Portanto a carta de direitos humanos da União Europeia é uma coisa em que nós acreditamos piamente. Se há pessoas que não têm direito à habitação, nós estamos contra. Há várias soluções para ela, há pessoas de uma certa ideologia com a qual eu não concordo que dizem que se faz de uma maneira, e há outras com uma ideologia com a qual eu concordo que dizem que se resolve o problema da habitação de uma outra maneira com a qual eu concordarei. E isso aí nós divergimos, obviamente. Mas aquilo que dizemos é que, não interessa o que é que cada pessoa faz, quantos filhos tem, de que cor é, de onde é, se é estrangeiro, se é português, se é de uma certa etnia, se é homem, mulher, se não assume nenhum género binário, se é transsexual ou se não é, se nasceu pobre ou se nasceu rico, todas as pessoas têm de ter habitação garantida. Nós achamos isso, e, portanto, somos alinhados nesse aspecto, claramente.

Então há sempre viés nas vossas reportagens? E em que medida é que nos outros média também há?

RR: Isso totalmente. Nós não acreditamos no jornalismo isento, isso é uma coisa que não existe. O jornalismo não é isento nem é imparcial, nem sequer é o objectivo do jornalismo. Aliás, o código deontológico não diz nada sobre o jornalista ter de ser isento. Diz que tem de ser transparente, diz que tem de ser honesto, talvez. Deve dizer qualquer coisa mais, mas nunca diz que tem de ser imparcial, porque isso é impossível. Portanto há um viés, claramente, e há o viés que nós damos. Aliás, se tu leres uma peça do Fred [Frederico Raposo], ou leres uma minha, é diferente, e isso vê-se por muitas coisas, vê-se na maneira como fazemos perguntas. Nós até podíamos dizer assim “Não somos nós a falar, as pessoas que entrevistamos é que falam”, mas as perguntas que tu fazes, a escolha das perguntas é parcial, a maneira como as perguntas são feitas é parcial, a maneira como introduzes a pessoa é parcial, onde e como interrompes também é parcial. O texto que fazemos também, os editoriais também, as pessoas que escolhemos entrevistar também. Mas isso também são actos políticos, não é? Enquanto que, em quase todos os meios de comunicação tradicionais, quando ouves a palavra “Chelas” é para falar sobre quão perigoso é o bairro de Chelas, e o crime, e como as pessoas de raça negra ou etnia cigana são os maus da fita, nós decidimos ir dar o outro lado, e isso é um acto político, obviamente. Os jornalistas que trabalham para médias tradicionais têm tanto viés como nós, e têm outro problema que é não serem independentes, na medida em que não são os jornalistas que detêm a redacção. Nós dizemos que fazemos jornalismo independente porque são os jornalistas que detêm as escolhas editoriais, e todas as escolhas, na verdade, do É Apenas Fumaça. Um Expresso não pode ser isso, o Expresso é detido por uma empresa. Portanto, mesmo que o jornalista queira fazer uma coisa, vai ser condicionado de alguma maneira. Não estou a dizer que lhe vão dizer “Agora não podes escrever sobre isto” ou “Tens que escrever isto”, mas é condicionado pelo facto de não ser ele a decidir, quando nós somos nós a decidir. É verdade que o Expresso tem 50 pessoas, e se calhar se nós tivéssemos 50 pessoas não era tanto assim, não sei. Mas o facto de termos uma estrutura horizontal e em que são os jornalistas que detêm, não há um chefe que manda fazer, faz com que seja muito mais transparente. Eu acho que é isso que o público tem de exigir. Não é a imparcialidade nem a isenção, mas é a transparência e a honestidade.

Frederico Raposo: Concordo, mas parece-me que há um problema nos média tradicionais que é eventualmente uma tentativa de negação desse viés. Uma tentativa de não assumir a sua importância, ou de tentar fazer parecer que o jornalismo é isento. Hoje em dia parece que está muito enraizada e que me parece que é propagada pelos média tradicionais, a ideia de que o jornalismo deve ser isento. E acho que o Ricardo deixou aqui muito claro que não deve ser.

Anunciaram recentemente terem recebido financiamento de 80 mil euros da Open Society Foundation, organização filantrópica do bilionário húngaro George Soros e, ainda que isso seja óptimo para a continuidade do vosso projecto, em que medida é que uma plataforma como a vossa justifica ser financiada por alguém que, apesar de tudo, é fruto do mais extremado capitalismo, tendo quase mais poder que um Estado?

RR: Já fomos entrevistados duas vezes ou três desde que anunciámos isso e ninguém nos fez essa pergunta, que era a pergunta que eu faria de certeza! [risos] Nós não nos assumimos como anticapitalistas, somos progressistas. Se tu achares que não é possível a conjugação dos dois, isso é algo que tu achas e que alguns de nós talvez possam achar, mas nós não nos assumimos como isso. Mas bem, como justificamos? Justificamos porque nós conseguimos com isto manter todo o controlo editorial, de tudo o que acontece. O controlo fica exactamente da mesma maneira em que estava antes de nós termos a bolsa, e essa é a linha. Quando alguém nos disser “vocês recebem este dinheiro, mas são condicionados desta maneira a fazer alguma coisa”, nós não aceitaremos. E o condicionamento até é uma coisa muito interessante, porque a verdade é que, imagina, o condicionamento pode ser, e é o mais fácil de perceber, o George Soros chegar ao pé de nós e dizer “Agora vocês fazem isto mas não podem escrever contra mim, contra as minhas empresas”. E isso aí não vai acontecer, nem poderia acontecer, se nós fizéssemos. Mas também pode ser de uma outra maneira que é o George Soros, a Open Society Foundation, dizer “Vocês agora receberam isto, mas têm de publicar oito peças por dia, se não não faz sentido”. Isso aí é um condicionamento, talvez tão grande como dizerem “Vocês não podem fazer isto”. Esse condicionamento existe em todos os meios de comunicação tradicional. Se tu vais ter de fazer uma peça por hora, ou perto disso, a qualidade do que vais fazer vai ser muito menor e, portanto, vais ser completamente condicionado a não fazer coisas profundas, e não é isso que nós queremos fazer. Portanto, justifica-se de uma maneira, que é: nós nunca receberíamos uma bolsa de alguém que condicionasse a maneira como nós vamos fazer as nossas escolhas, seja editoriais seja de estrutura da equipa, seja de outro tipo.

Dizem que não há condicionantes, mas também consideram os jornalistas actores políticos. De que forma é que isso se conjuga com o contratualizado com a Open Society Foundation, em que ficou estabelecido que não poderiam, de forma alguma, condicionar eleições políticas? De que forma é que isso vos mantém, ainda assim, independentes?

RR: Isso é uma boa pergunta. A maneira como leio isso é que não podemos condicionar directamente eleições políticas. Toda a gente condiciona eleições políticas. Por existires e por estares aqui sentado neste café a conversar comigo estás a condicionar, toda a gente condiciona. A maneira como legalmente eu leio isso, e aliás isto foi uma das coisas que mandámos a um advogado amigo nosso, é que a única maneira de isto ser invocado é se estivermos directamente a condicionar uma eleição, e isso quer dizer estar a pagar a um partido político, a organizar um evento de um partido político qualquer. Se levares à letra o que está lá escrito, sim, nós estamos a condicionar.

FR: Eu acho que isso vai muito de encontro ao que já foi respondido antes. Há um viés, há um posicionamento que nós temos e que assumimos com toda a naturalidade e, portanto, nós fazemos um papel de mediação e apresentamos a realidade de uma determinada forma. Obviamente que a forma como apresentamos as coisas a quem nos vê, a quem nos lê ou quem nos ouve tem, com toda a certeza, um determinado impacto, seja operacionalizando-se na mudança do pensamento de uma determinada pessoa, porque a pessoa achou que aquilo que nós dissemos fazia ou não fazia sentido, e deixou-a a pensar de uma maneira diferente daquela que ela já pensava, e portanto, nesse sentido, acho que o papel do jornalismo, sendo sempre de mediação e não sendo isento, acaba sempre por contribuir para moldar o pensamento. Mas nós não estamos aqui num trabalho de querer que as pessoas pensem de uma determinada forma. Nós somos actores políticos como já disseste, e a forma como fazemos mediação e jornalismo tem sempre uma influência na apreensão que as pessoas fazem daquilo que nós produzimos. Portanto não há dúvida que o jornalismo pode, e molda, a opinião pública, e nesse sentido tu influencias a maneira como as pessoas pensam. É preciso é que isso seja feito de uma forma transparente, honesta. Se tu estivesses a receber dinheiro de um determinado partido, ou a receber dinheiro para dizer uma coisa, ou se estivesses a fazer um favor a alguém para falar de uma determinada maneira, eu acho que isso sim seria uma tentativa de influenciar.

Mas receber dinheiro de uma fundação detida por alguém que tem objectivamente ideias políticas declaradas não vos torna menos independentes?

FR: Não torna, porque isso está perfeitamente contratualizado. Voltamos à questão de não haver qualquer tipo de controlo, seja ele formal ou informal, sobre aquilo que colocamos cá fora. Portanto, o dinheiro que nós recebemos não está dependente de qualquer tipo de narrativa que nós venhamos a impor no nosso discurso. Eu, muito pessoalmente, sinto que continuo a escrever aquilo que escreveria antes de receber qualquer tipo de valor. Agora tenho um contrato com o É Apenas Fumaça, e trabalho profissionalmente no É Apenas Fumaça, e não sinto que absolutamente nada tenha mudado na minha liberdade de escrever ou de pensar, ou de decidir que temas é que eu gostava de trazer.

E em que medida é que isso, e pegaram nisso há pouco até, é diferente, por exemplo, do grupo Impresa (da SIC e do Expresso) que é detido por Francisco Pinto Balsemão, um milionário como George Soros?

RR: Porque o grupo Impresa, e essa é a palavra chave, é detido pelo Balsemão. E nós não somos detidos por ninguém, nós somos detidos pelas pessoas que fazem o jornalismo, e essa é a diferença. Enquanto que se a Impresa viesse ter connosco e dissesse “Olha, nas mesmas condições que a Open Society fez, tomem 100 mil euros”, quase de certeza absoluta que nos iríamos dizer “Sim, claro”. Sem dúvida nenhuma. Se a Impresa viesse ter connosco e dissesse “Toma 100 mil euros, mas 1% do capital da Verdes Memórias (a associação que detém o É Apenas Fumaça) é nosso”, diríamos que não, de certeza absoluta. E essa é a diferença, porque é uma parte do grupo Impresa, e o É Apenas Fumaça vai continuar a ser detido por nós para sempre. Ou pelo menos até eu sair, eu vetava isso, e o Fred também [risos].

E porque teve o financiamento de vir de fora de Portugal?

RR: Não tem, provavelmente haveria outras fundações que nos dariam isso. Nós, há um ano e pouco, tomámos a decisão de que queríamos fazer isto: acordar todos os dias com contratos, sair dos sítios onde estávamos alguns de nós. Quando tomámos essa decisão fomos ver como podíamos fazer isso, a que bolsas nos podíamos candidatar, visto que, achávamos nós, não havia outra maneira, se calhar até há, pelo menos agora. E fomos perceber que fundos eram os mais indicados. Fomos ler coisas, e só nos candidatámos a um, que foi o da Open Society. Muito simplesmente porque olhámos para a descrição, para a quem eles já tinham dado dinheiro e pensámos “É isto, se houver alguém que nos vai dar dinheiro, são eles”. Apesar de nunca, acho, terem doado dinheiro em Portugal.

Se calhar não é a coisa ideal, porque também há associações e fundações que dão dinheiro em Portugal, mas aquilo que percebemos foi que este sim, faz sentido. Outro dos fundos ao qual pensámos candidatar-nos foi o da DNI (Digital News Initiative), da Google, e começámos a fazer uma candidatura e chegámos ao fim e pensámos “Isto não é para nós”. Estava quase feito, 80%. Eles não estão à procura daquilo que nós temos, estaríamos a perder tempo com isto para não ser escolhidos. Mas este ano vamos quase de certeza candidatarmo-nos a mais fundos em Portugal.

Isso leva-nos a perguntar: Quando terminar o dinheiro que vocês receberam da Open Society, qual é o plano de rentabilidade? Como vão ter dinheiro?

FR: Eu acho que desde o primeiro momento, ou melhor, desde o momento em que nos foi anunciado que de facto ganhámos este fundo, começámos a planear e acho que percebemos a maneira como queremos fazer as coisas, com as quatro pessoas que estão com contrato no É Apenas Fumaça, na redacção, e que estão a fazer isto profissionalmente, com o material que adquirimos, com as despesas extra que temos previsto, e que são públicas, nós percebemos que este dinheiro nos ia durar um determinado tempo. E a partir daí, nas nossas cabeças foi muito claro, começámos logo à procura de outros financiamentos. O caminho vai passar por encontrar uma forma de financiamento idêntica à que conseguimos agora, mas que pode, e que nós queremos, que num futuro que nós desejamos que seja próximo, passe sobretudo por fazermos isto de forma profissional com o apoio das pessoas que nos ouvem, que nos vêm e que nos lêem. Nós queremos acreditar que é possível fazer isto com o apoio das pessoas que querem ter acesso ao nosso trabalho, e nesse sentido trabalhamos não só com o dinheiro do fundo da Open Society Foundation, mas também com o dinheiro que toda uma comunidade de pessoas que já contribuem para nós com regularidade e alguns que fazem contribuições pontuais. Já temos uma plataforma no Patreon que permite às pessoas dar-nos dinheiro de uma forma regular, e já temos cerca de duas dezenas, ou mais, de pessoas que fazem isso, cerca de 150€ por mês. Portanto estamos a olhar muito para aí. Queremos que no futuro este seja um projecto sustentável a partir das pessoas que consomem aquilo que fazemos, que querem ter acesso aos conteúdos que produzimos. Hoje em dia é muito complicado, ninguém tem resposta para qual é o modelo que permite o funcionamento dum órgão de comunicação numa lógica de mercado, eu ainda não vi nenhum resposta para isto, já ouvi muitos debates e toda a gente diz que ainda não há uma resposta para isto. No entanto, já há órgãos de comunicação que funcionam puramente na base do contributo das pessoas que lêem ou ouvem o conteúdo que é produzido, como é o caso do The Correspondent, meio de comunicação holandês, numa base recíproca, em que as pessoas contribuem financeiramente ou de qualquer outra forma para que o órgão continue a existir e a funcionar de forma profissional e digna, e ao mesmo tempo essas pessoas também participam. Hoje em dia nós já fazemos isso, com as pessoas que estão em contacto directo connosco, nós pedimos-lhe ajuda e oferecem-se para ajudar, ajudam a dizer com quem temos de falar, sobre o que é que vamos fazer, oferecem-nos um feedback de forma muito directa, mas isso qualquer pessoa pode fazer. Sinto que no futuro queremos ser sustentáveis a partir das pessoas a quem conseguimos chegar. Hoje chegamos a muita gente, mas achamos que podemos chegar a muitas mais.

RR: Obviamente isto não vai acontecer daqui a doze meses, e o dinheiro vai acabar e nós não vamos ser sustentáveis pelas pessoas e, portanto, aquilo que vamos fazer é candidatar-nos a outros fundos, e aí podem ser portugueses ou não.

Mas pensando sobre isso dos modelos de negócio da comunicação, em que medida é que isso não nos leva, sem fazer qualquer juízo de valor, a um em que o Estado deva financiar o jornalismo porque não há outra maneira? E com que critérios?

RR: O Estado tem de financiar. Não há democracia sem haver jornalismo, não existe. E, portanto, o Estado tem de fazê-lo e não faz um bom papel em Portugal. Com que critérios? Nós já temos uma entidade, faça um bom trabalho ou mau, que regula a comunicação social, a ERC. Portanto aquilo que o Estado tem de fazer é, a todos os órgãos de comunicação social presentes na ERC, devia ser dado contributo do Estado, todos. Quanto é que é, como seria feito? Isso não sei, nunca pensei muito sobre isso. Mas o Estado tem de fazê-lo.

Porque vivemos numa altura em que provavelmente, pelo menos em Portugal, nenhum grupo de comunicação social faz dinheiro. Talvez a Cofina.

RR: Dinheiro talvez façam, mas nenhum deles é financiado pelas pessoas. Mas vamos imaginar isso, que, como não fazem dinheiro, se não fossem as empresas nem o Estado a colocar esse dinheiro, como estão a falir, iam acabar. Não existia democracia.

Isso não ia fazer com que vocês deixassem de ser independentes?

RR: Ia ser tanto como com a Open Society Foundation. O Estado não ia deter nada do que estamos a fazer.

Mas se vocês estiverem a fazer uma peça jornalística e a vossa forma de sustento for unicamente o Estado, de que forma é que isso não vos estaria a dar uma dependência?

RR: Mas eu não estou a dizer que devia ser só o Estado a dar-nos dinheiro, eu acho que o Estado tem de contribuir. Todos os órgãos de comunicação social que estão na ERC deviam ter um contributo. Podia ser pela quantidade de empregados que têm, mas todos deviam ter. E não interessa o que escrevem, se escrevem disto e não escrevem daquilo, quantas peças fazem, que temas abordam, todos eles deviam ter, na medida em que foram aceites pela ERC. Portanto isso garante a dependência das pessoas que estão a fazer o jornalismo, se estão a fazer jornalismo têm de ter um contributo, mas sem existir qualquer dependência daquilo que escrevem, continuam a deter o seu meio de comunicação, e são independentes. Da mesma maneira que, se a Fundação Francisco Manuel dos Santos, viesse ter connosco e nos desse 100 mil euros, e começasse a dizer “a todos os órgãos de comunicação social nós damos x”, eu acho que a independência não é por quem é que dá dinheiro, a independência é se és tu que detens. Podes dizer, o facto de esta pessoa te dar dinheiro influencia o jornalismo que tu fazes. Acredito que a algumas pessoas sim, nós acreditamos que, sendo nós a deter o É Apenas Fumaça, somos independentes.

Isso não torna a comunicação social inevitavelmente dependente da filantropia? E, portanto, da vontade dos filantropos?

RR: Mas eu acho que hoje já é. Eu acho que o Estado tem de garantir que ela exista, e se o Estado garantisse não dependia da filantropia, mas hoje acho que sim, nem que seja da pessoa que nos dá um euro por mês.

FR: E um meio de comunicação a operar numa lógica de mercado está também muito longe de garantir, acho eu, a liberdade das pessoas que lá trabalham.

Sim, também é possível argumentar o contrário, que funcionar para o sustento através do lucro também torna uma pessoa não independente.

FR: Sobretudo porque é difícil encontrar um caso de um órgão de comunicação que opere numa lógica de mercado e que apresente lucros. E aí tu questionas-te.

RR: Sinceramente acho que não tem tanto a ver com ser pelo lucro ou não. Nós por acaso somos uma associação sem fins lucrativos, porque não queríamos ter fins lucrativos. O que não quer dizer que não mude, não tenho nada contra um jornal ser pelo lucro. Se nos dissessem assim, para continuarem a ter os vossos trabalhos, têm de ter mais page views, e para isso têm de fazer um título diferente, ou fazer outro tipo de conteúdos, estávamos tão dependentes como a empresa que quer fazer dinheiro, ou quer fazer lucro e tem de fazer a mesma coisa para ter lucro. É a mesma coisa.

Para ver o vosso nível de independência temos de fazer uma última questão [risos]. Se o George Soros fosse apanhado num escândalo a nível mundial, vocês seriam capazes de fazer uma peça sobre ele, neste momento?

RR: Claro que sim.

Então são independentes [risos].

RR: Somos independentes quando isso acontecer e nós o fizermos. Outra questão é se o faríamos, porque não sei se o escândalo entrava no nosso campo editorial. Mas agora imagina, se a Fundação Francisco Manuel dos Santos, estávamos a falar sobre isso, nos desse dinheiro, e o Pingo Doce [detido pela mesma] fosse apanhado num escândalo por rejeitar pessoas ciganas para trabalhar, ou qualquer coisa do género, sem dúvida nenhuma. Aliás, essa é uma das linhas. Quando nós não sentirmos à vontade para escrever sobre aquilo porque tivemos esse dinheiro, não vamos aceitá-lo.

Mas, por exemplo, uma outra forma de condicionamento: nós falámos com uma associação de uma pessoa que entrevistámos, e estávamos a dizer-lhe que tínhamos tido este financiamento, poucos dias antes de anunciarmos, e ele disse que por acaso a Open Society conhecia, porque já havia pessoas que tinham trabalhado com eles, e que eles são muito porreiros porque não te pressionam a enviar relatórios constantes, temos apenas de mandar dois relatórios durante os doze meses, um a meio e outro no final, para mostrar que estamos a trabalhar. Mas há outras associações e outras fundações, e foi isso que essa pessoa me disse, que lhes dizem que têm de ser auditados todos os meses, ou de duas em duas semanas há alguém a mandar um email a perguntar pelas facturas de não sei de quê. Isso é um brutal condicionamento, e eu não sei se nós aceitaríamos algo em que alguém nos dissesse que podíamos ser auditados todos os meses ou que de duas em duas semanas tínhamos de escrever um relatório das despesas que fizemos com o dinheiro. Porque isso condiciona brutalmente o tempo que temos para fazer jornalismo, e faria com que fizéssemos coisas menos aprofundadas, mais apressadas. Com que nós não cobríssemos temas por serem mais difíceis de cobrir ou porque agora não podemos ir para Pombal porque tenho de ficar em casa a fazer o relatório do mês. E isso aí seria um problema, e é um condicionamento brutal. Por exemplo, o programa Escolhas faz isso, pelos vistos. Podes ser auditado quando lhes apetecer. E tu podes dizer “OK, há aí empresas que realmente fazem falcatruas, e que têm de andar na linha”. Sim, mas há uma associação de quatro pessoas que quer trabalhar e não quer ter de, a todos os dias do mês, ter as contas todas em ordem. Quer chegar ao final do mês e aí sim tratar das facturas todas.

Entrevista conduzida por Miguel Fernandes Duarte e João Estróia Vieira.

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