Djaimilia Pereira de Almeida: “Sou atraída pela maneira como a doença condiciona o destino e a acção humana”

por Miguel Fernandes Duarte,    24 Novembro, 2018
Djaimilia Pereira de Almeida: “Sou atraída pela maneira como a doença condiciona o destino e a acção humana”
Djaimilia Pereira de Almeida
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Em 2015, Djaimilia Pereira de Almeida entrou no panorama literário português com uma das mais arrebatadoras estreias de que há memória recente. Esse Cabelo era reflexão de base autobiográfica ao mais alto nível, juntando romance e ensaio numa busca por um espaço e uma identidade que não renegasse nenhuma das componentes da sua vida. Alguma expectativa marcava, portanto, o regresso da escritora. Mas, se havia algum receio, Luanda, Lisboa, Paraíso é a clara confirmação da qualidade da autora. O novo livro de Djaimilia em nada fica atrás do primeiro, e a CCA entrevistou-a para uma conversa sobre esse e outros assuntos.

Depois do furor crítico de Esse Cabelo, o que a levou a abandonar a primeira pessoa desse livro pela terceira pessoa deste Luanda, Lisboa, Paraíso?
Cada história tem a sua própria forma de ser contada e é preciso procurá-la. Neste caso, procurei pela forma de contar a vida de Cartola e Aquiles como se a contasse a eles. A primeira pessoa não me foi natural para o fazer.

Quais as principais diferenças (se as houve), a nível de processos, entre a escrita dos dois livros?
Esse cabelo foi escrito mais depressa, apareceu de forma mais febril. Luanda, Lisboa, Paraíso foi escrito ao longo de mais anos, com mais persistência e um maior exercício da paciência.

Este livro incide muito sobre a doença e a forma como esta condiciona relações. O que lhe motivou este interesse? Foi a experiência descrita em Ajudar a Cair um incentivo importante para uma maior exploração destas questões?
Interesso-me pela doença de uma forma geral, daí o meu interesse em escrever Ajudar a Cair. Sou atraída pela maneira como ela condiciona o destino e a acção humana e pela forma como modifica a natureza das relações entre as pessoas; pela forma como constrange e transforma tanto a nossa autoimagem como as relações de intimidade.

Poderia esta história existir sem um continente a separar Cartola e Glória?
Julgo que não. A distância é aqui uma bolsa de ar entre as personagens, que leva a que as suas acções e desejos sofram um efeito de paralaxe que é fundamental para a história.

Ao falar de Cartola, diz que ele “tinha condenado o filho a não ter história por medo de que ele não se conseguisse erguer se a conhecesse.” Que história imobilizadora é esta que Aquiles desconhece?
A história a que me refiro é a da queda em desgraça do pai, cuja primeira vida, uma vida feliz e auspiciosa, prévia ao nascimento de Aquiles, o filho não chegou a testemunhar.

Cartola é um angolano assimilado que julga vir a ser recebido enquanto português ao chegar a Portugal. O que lhe faltou para que isso acontecesse? Apenas mudar a sua origem?
Não lhe faltou nada que fosse possível a Cartola completar ou controlar. Ao longo de muitos anos, alimentou o sonho de um desembarque em Portugal, sem ponderar que ninguém o saudaria como um filho pródigo à chegada.

Como é que Cartola (que, como parteiro, era alguém respeitado em Angola) se deixa decair tanto em Portugal, resignando-se ao papel de inferioridade que lhe é imposto?
Não me parece que tenha estado alguma vez nas mãos de Cartola a possibilidade de viver de outro modo. As suas condições de vida não são uma questão de escolha.

O calcanhar une este Aquiles e o da Ilíada. Mas se este último é um herói apregoado pelos sete mares, o Aquiles deste livro é apenas “aquele preto coxo”. É melhor ser um preconceito que ser ninguém?
Para Aquiles, no passo do livro em que surge essa expressão, ser reconhecido pelos seus companheiros na obra dessa forma é um consolo para a grande desolação de ter perdido tudo. Ele não o encara como um preconceito, mas como um reconhecimento da sua identidade, que é indistinguível do seu problema de saúde.

O livro trata de uma história que decorre sobretudo durante a década de 80 do século passado. Que mudanças se deram para pessoas da condição de Cartola e Aquiles desde essa altura?
Mudaram muitas coisas e outras nem tanto. Cruzo-me com Cartolas todos os dias pela rua e, noutros momentos, encontro pela cidade muitas pessoas que escaparam a um destino como o dele.

Como observa o crescente debate sobre o papel colonial de Portugal e as suas implicações, por exemplo, no racismo?
Parece-me muito positivo que se discutam abertamente hoje esses temas e que haja uma pluralidade de opiniões e de pontos de vista em debate.

Como é a sua obra recebida em Angola?
Não tenho grande noção, salvo junto de pessoas próximas.

É doutorada em Teoria da Literatura. É possível estudar literatura sem ter vontade de escrever?
Acredito que sim. Mais premente do que ter vontade de escrever é, nesse contexto, ter vontade de ler.

Em que medida todos esses anos de estudo influenciaram a sua escrita? Quais as principais coisas que tirou desse percurso?
Influenciaram muitíssimo. A principal coisa que aprendi foram os benefícios da paciência. E também a necessidade de refrear o entusiasmo.

Por último, tem já algum plano para um próximo?
Tenho, sim, mas ainda é muito cedo para falar sobre isso.

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