Entrevista. Carloto Cotta: “Todos temos contradições e por isso todos somos um pouco como o Diamantino”

por Paulo Portugal,    4 Abril, 2019
Entrevista. Carloto Cotta: “Todos temos contradições e por isso todos somos um pouco como o Diamantino”
Carloto Cotta (Diamantino Matamouros) e Cleo Tavares (Aisha Brito)
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O astro desceu à terra. Deixou crescer o cabelo, a isso obrigam os novos projectos. Incrível a mudança e no ecrã é impossível deixar de ver o cromo da bola, Cristiano Ronaldo, na paródia assumida por Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt, mas naquele pequeno aparthotel na avenida Croisette, em Cannes, o actor preparava-se para desmontar o “boneco”, que tinha muito da sua criação e que lhe deu um corpo novo. Algo que soube moldar servindo-se dos referenciais dos mímicos Tati e Keaton. E do trabalho danado com o seu PT que lhe deu esse corpo, mas também o macarrónico sotaque açoriano. Carloto Cotta tornou-se assim num “boneco” incrível do cinema português.

Como é que este projecto foi apresentado e como é que tu percebeste que podias trazer algo para este personagem do Diamantino?
É uma boa pergunta. O Gabriel e o Daniel apresentaram uma proposta de 50%. Ou seja 50% da personagem já estava definida. A base, a estrutura, o arquétipo, as cores primárias da personagem já estavam definidas. Agora de que forma íamos dar a vida, a expressão, o corpo e a voz, esses traços estavam por descobrir.

Isto teve a tua contribuição, dentro do trabalho de actor?
Com certeza. Sempre trabalhei com o Gabriel e tenho com ele uma confiança absoluta e uma liberdade enorme. Colaboramos muito bem, trabalhamos sem complexos, sem receios, sem medo de falhar, sem medo do ridículo, sem medo de seguir qualquer caminho. Por outro lado, há também uma grande confiança no que nasce durante o processo. Eu sinto que se estiver disponível e atento, há pequenos pormenores em que vamos buscar detalhes que iremos aproveitar. Sempre soube que a personagem é uma manta de retalhos e características de uma pessoa que eu conheço. Sabia que iria combinar os elementos com uma comédia física. À medida que ia compondo a personagem transformava-me fisicamente para o papel. Foi aí que comecei a descobrir os maneirismos e um corpo.

“Diamantino” (2018), realizado por Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt

Percebeste que poderia ser uma personagem bigger than life? Houve aí algum cuidado nessa construção?
Claro, essa sensação de mito, de arquétipo bigger than life. Mas a minha proposta foi exactamente contrapor esse sentido de algo épico, quase como o Forrest Gump. Mas ao mesmo tempo contrapor estes elementos épicos com os elementos absurdos, grotescos, de gag, da comédia física, do sketch.

Sentiste ainda que havia suficiente material disponível para traduzir para uma linguagem que seria a tua? Por exemplo, como foi a preparação física?
Sem dúvida. Por exemplo, fui eu que propus que o Diamantino fosse açoriano, isto porque tinha um PT, o Pedro Medeiros, que é açoriano, e os treinos dele são muito intensos. Foi um mês muito intenso.

Um mês só?
Não, foi menos, três semanas. Em três semanas transformei-me radicalmente. Essa transformação trouxe-me um corpo novo, que quase me era estranho.

E gostaste desse corpo novo?
Gostei. Serviu-me perfeitamente para a personagem, porque o próprio Diamantino habita um corpo que não está bem de acordo com a personalidade dele, um corpo que é melhor do que ele. Nesse contraste foi bastante útil essa transformação porque me ajudou encontrar mecanismos de criar essas pequenas características que estão em conflito. Foi muito fundo emocionalmente, mas ao mesmo tempo quis fazer uma coisa quase na linha e Jaques Tati ou Buster Keaton. Senti que tinha de experimentar e depois perceber se resultava ou não. Sem ter medo de falhar ou roçar o ridículo.

Como foi a direcção do Gabriel e do Daniel? Já sabias o tinhas que fazer?
Sim. Trabalhámos numa confiança absoluta e numa descoberta diária nos ensaios. A ideia era experimentar, experimentar, experimentar. Felizmente o Gabriel é hiper receptivo às minhas propostas e com confiança dá-me mais e mais e mais.

Isto tem a ver mais com o teu trabalho pessoal de criação?
Sim, também. Mas quando sinto que me dão espaço para ser o autor da minha personagem, ou seja, ter espaço autoral dentro da composição, isso dá-me uma pica extra para trazer tudo para a mesa. Aí sinto que estou a fazer parte do processo criativo. Não estou a ser simplesmente intérprete, estou a contribuir para a obra literalmente.

“Diamantino” (2018), realizado por Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt

Sentes que, de certa forma, o Diamantino és tu também?
Sim, de certa forma. Todos nós somos um pouco Diamantinos. Todos nós somos constituídos por contradições. Todos nós temos uma criança dentro de nós. E todos nós temos uma ligação muito simples com a vida. Acho que o Diamantino é um arquétipo, o génio que habita dentro de nós. Parece-me um pouco usado dizer que o Diamantino é isto ou aquilo, mas remete para essas características universais no ser humano.

Como é que seria o encontro desta personagem com o seu arquétipo, com a sua representação mais real? No fundo, o encontro da personagem com a pessoa real que estará por detrás?
É uma pergunta complexa. Acho que de certa maneira isso está introduzido no filme. O voz off é uma espécie de Diamantino mais consciente. Acho que a voz off propõe o Diamantino depois de uma viagem de iniciação, mais clarividente, mais consciente das coisas.

Não vamos dizer o nome de Cristiano Ronaldo, mas como achas que seria um encontro com essa verdadeira personagem?
Ah, estou a ver. A ideia foi trabalhar lugares comuns, não fugir desses lugares comuns.

Sim, mas há uma personagem real que toda a gente vai pensar.
Sim, é inevitável as pessoas pensarem nisso. Mas, atenção, que a proposta é trabalhar um ideal.

Não o reduzir a uma pessoa só?
Claro. Quis assumir todos os clichés do mundo futebolístico, os clichés do mundo desportivo, e usar estes clichés para contar uma história que não tem a ver com ninguém em particular mas sim com outras coisas.

É um ponto de partida.
É um ponto de partida, exactamente. É quase uma generalização de uma figura mítica. Durante todo o processo sabíamos que estávamos a caminhar num terreno delicado que poderia de certa maneira fugir para uma coisa pessoal ou específica. A ideia não era fazer o retrato de alguém. É o retrato de um modelo de celebridade, de sucesso, de génio, de jogador de futebol, de génio desportivo. É nesse terreno que caminhamos. Claro que se encontram semelhanças com alguma figura é só porque essas semelhanças existem dentro de futebol e não nessa figura específica. O corte de cabelo, o corpo. É trabalhar essa figura. Todas as opções que fiz foram no sentido de usar sem medo, sem receio de identificar alguma coisa em particular, mas também não ter medo de fugir de alguns clichés.

“Diamantino” (2018), realizado por Gabriel Abrantes e Daniel Schmidt

Gostava que falasses um bocadinho do teu trabalho com as gémeas Moreira, um trabalho incrível de ambas.
Foi muito engraçado. As minhas maninhas… Elas realmente são uma antítese do Diamantino. São calculistas, manipuladoras, frias. Ajudaram-me imenso e fizeram-me realmente sentir o irmão mais novo. Eu não consegui deixar de gostar delas. Elas são tão hilariantes e conseguem fazer o trabalho tão sagaz que é impossível não ter esse carinho.

O Chico Chapas que começa a tornar-se num caso inevitável para o cinema português.
Claro, o Chico Chapas! Não podia haver melhor pessoa para fazer o pai do Diamantino. Para já o Chico Chapas joga muito bem à bola. E depois porque consegue imprimir e representar a espontaneidade, a sua doçura, a candura natural, uma genuinidade que passou para o filho. Essas características do Diamantino são do pai. Acho que não podia ser mais certeira a opção.

Só para terminar. Tiveste agora no Brasil. O que é que podemos esperar a seguir do Carloto Cotta?
Estive a filmar com a Paula Gaitán, num filme chamado Luz nos Trópicos. Uma parte foi filmada em Nova Iorque e outra parte no Brasil em vários sítios, no Pantanal, Chapada dos Guimarães, Mato Grosso, na comunidade indígena do Xingú. É um filme que se baseia numa expedição que foi levada a cabo em mil oitocentos e vinte e tal pelo Barão Langsdorff. Foram vários desenhadores, entre eles o Hércules Florence a personagem que eu interpreto. Não é um filme de todo biográfico, como dizem os brasileiros “ao pé da letra”. É um ensaio poético sobre o entrosamento dos europeus com a natureza exótica dos trópicos, com fauna, com flora e com esse choque antropológico. O Hércules Florence foi um dos percursores da fotografia, antes do Daguerre, e foi o inventor da zoofonia, que é a técnica de transporta para a pauta musical os sons das árvores, dos animais, ele criou isso.

Um filme biográfico?
Não, não é um filme biográfico. É a visão poética dessa exposição, talvez uma reflexão dessa mistura, desses conflitos inerentes, essa a estranheza, ser estrangeiro, de estar longe. Ele foi um inventor notável, embora não reconhecido em vida. Inventou o topógrafo, a máquina para imprimir. Mas não foi reconhecido porque estava no Brasil. As invenções dele não foram patenteadas. Até que acabou por ficar no Brasil. O filme relata essa experiência com as tribos indígenas.

Por acaso, um tema que tem sido recriado no cinema…
Sim, talvez. O Hércules conviveu com várias tribos pelo Brasil fora, nomeadamente no Mato Grosso e Amazonas. O filme é isso. Um ensaio visual, poético, contemplativo sobre esses temas. Ainda me é difícil falar sobre isso porque ainda não vi o filme montado.

Uma produção brasileira?
Sim, é produção brasileira. Se não estou em erro, acho que é mesmo uma produção exclusivamente brasileira. Tenho outros projectos, mas estão ainda todos embrionários.

Entrevista de Paulo Portugal, em parceria com Insider.pt

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