Entrevista a Hugo Maia, tradutor de ‘As Mil e Uma Noites’

por Mário Rufino,    29 Outubro, 2017
Entrevista a Hugo Maia, tradutor de ‘As Mil e Uma Noites’
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A Livraria de Santiago, outrora uma igreja, recebeu o tradutor de uma das mais importantes obras em árabe.  Hugo Maia esteve no Fólio – Festival Literário Internacional de Óbidos para dar uma conferência sobre “as mil e uma noites – o conto oral como forma de resistência popular”.
A Comunidade Cultura e Arte conversou com o tradutor sobre as dificuldades na tradução de “As Mil e Uma Noites” (E-Primatur).

Qual o motivo para uma nova tradução de “ As Mil e Uma Noites”?

Em Portugal, não é só uma nova tradução. No caso especificamente português, é a primeira tradução directamente do árabe. Todas as traduções têm sido feitas do francês, baseadas na versão do Antoine Galland [1646-1715] e da do Mardrus [1868 –1949]. Há edições que foram feitas cá há várias décadas que combinam as duas, resultando numa outra versão. É preciso ter em conta que a versão do Antoine Galland tem certas particularidades. Por um lado, ele traduziu o mesmo manuscrito que eu traduzi, que é o mais antigo que se conhece das “Mil e Uma Noites”, só que traduziu de uma forma completamente diferente do que está lá no manuscrito. Por exemplo, todas as partes eróticas foram alteradas. No conto das três moças de Bagdade e do carregador, há uma orgia com vinho e comida. Para Galland, é uma espécie de jantar romântico à luz das velas. Antoine Galland inventou uma série de coisas que não enriquecem nada a história e alterou significativamente outras partes.
A versão do Mardrus é muito engraçada porque apareceu, salvo erro, no início do século XX e supostamente é a tradução de um manuscrito da Tunísia, que foi anunciado na altura como o verdadeiro manuscrito de “As Mil e Uma Noites”; verdadeiro e completo, pois tinha de facto mil e uma noites. Mais tarde provou-se ser um manuscrito forjado em Paris por um intelectual sírio e um orientalista e que muitos dos contos que lá figuram, nomeadamente as tais histórias órfãs, são traduções do francês para árabe.

Como é que fixou o texto definitivo nesta edição da E-Primatur, uma vez que há esses contos órfãos?

A ideia sobre esta edição foi pegar no manuscrito mais antigo porque este continua a ser muito ignorado. O do Mardrus baseia-se neste manuscrito, mas já com muitas alterações, partes que foram resumidas, noites exageradamente longas. As histórias com aquele comprimento seriam pouco práticas. No manuscrito mais antigo os contos são mais curtos curtos, correspondem a uma tradição oral de contar histórias em cafés, mercados e outros espaços públicos. A língua não é a língua das “belles-lettres”. Tem muito mais a ver com o espírito com o que “As Mil e Uma Noites” terão aparecido. Não sabemos exactamente quando apareceram, mas talvez tenha sido no século XII, XIII ou XIV.
No século XV é certo que havia um conjunto de histórias contadas pelos contadores de histórias numa língua que os intelectuais da altura desprezavam, pois eram contadas num árabe coloquial.

Nesse episódio do carregador,os vernáculos são constantes. Nos vários textos, há diferentes níveis de língua?

Há, porque os textos mais tardios começam a ter um árabe mais apurado. A primeira edição impressa em árabe, em 1835, já inclui contos que sabemos terem sido traduzidos do francês para árabe. Já não está feito na língua coloquial, está feito na língua das “Belles-Lettre”, que pretende imitar as expressões coloquiais mas que está longe da coloquialidade. Por todas estas razões, decidiu-se que esta era a edição mais curiosa por causa da riqueza da língua. Nós pensamos em “As Mil e Uma Noites” como um livro, mas não era um livro; era uma sebenta usada pelos contadores de histórias. Eles alugavam estas sebentas para se contar histórias. Por sua vez, muitas destas sebentas eram redigidas por outros contadores, ou por alguém ao invés deles quando eram analfabetos.

É um autor colectivo?

Sim, nós podemos ver que há histórias que são muito árabes e outras que têm indícios de terem vindo de outros países, como Índia ou China. Todas as pessoas que estudam a literatura oral sabem que as histórias passam muito facilmente de um lado para o outro.

Afinal, quantos contos e quantas noites é que são?

É uma questão muito interessante. Nós não sabemos quantas noites seriam, realmente. Há estudiosos e especialistas que defendem que o número é meramente simbólico, mas também há quem diga que teriam mil e uma noites.
Os manuscritos mais antigos não tinham mil e uma noites. No entanto, sabemos que estavam incompletos.
A última história aparece cortada a meio. Nesta edição da E-Primatur, para completar a segunda história fui buscar um outro manuscrito posterior da tradição egípcia, só para satisfazer o leitor e ter a conclusão da história.

Isso é mencionado na tradução?

Sim, é mencionado e a escolha é justificada. Só começa a haver versões com mil e uma noites a partir do século XIX. Todas estas versões já têm muito de influência orientalista e europeia. “As Mil e Uma Noites” terão passado de moda talvez no século XVI/XVII. Antoine Galland e todo o fascínio dos orientalistas ressuscitaram o interesse nestas histórias. Houve a necessidade de encontrar a versão original e integral. Não passou pela cabeça de ninguém que, provavelmente, aquilo seria um número meramente simbólico. Por outro lado é preciso ver que quando aparecem as primeiras versões mais longas com quinhentas, seiscentas e mesmo com mil e uma noites- incluindo a primeira edição impressão do mundo árabe em 1835- há nessas versões histórias muito antigas que talvez tenham feito parte de “As Mil e Uma Noites” e se tenham mantido nalgumas tradições orais como histórias de “As Mil e Uma Noites”. Talvez não fosse um conjunto de histórias tão bem estabelecido quanto isso e cada um dos contadores acrescentasse as suas próprias histórias.

Quanto tempo é que demorou a traduzir?

O primeiro volume demorou cerca de dois anos. Não foi tempo só investido na tradução. Foi também um trabalho que obrigou a uma investigação muito profunda. Houve uma série de circunstâncias históricas para apurar como é que o texto evoluiu historicamente, exigiu-me a leitura paralela de muitos livros e obrigou-me também a encontrar um registo da língua portuguesa que, de certa forma, simulasse o registo que aparece no texto em árabe.

Perdeu-se muito na tradução do árabe para o português?

Há sempre coisas que se perdem, infelizmente. Posso dar alguns exemplos: nessa história das três moças, aparece a palavra “grelo”. Em primeiro lugar, a palavra “grelo” é calão para clítoris. Muitas vezes, as pessoas não têm essa noção. Se formos aos dicionários, como o do Houaiss e o do Academia das Ciências, a palavra “grelo” aparece como vernáculo para clítoris. Hoje em dia, as pessoas dão outro sentido. Algumas pensam que são os pêlos púbicos, outras julgam que é a vagina.  Qual é a palavra em árabe, afinal? É uma palavra que significa abelha. Se traduzisse por “abelha”, o sentido perdia-se. Eu só tinha duas grandes opções: a palavra “grelo”, com o risco de pessoas mais novas darem outro significado à palavra, ou “berbigão”, que é mais usada no sul como vernáculo para clítoris.

Quantos volumes terá esta edição?

Vão ser dois volumes.

O segundo terá um posfácio?

Só um pequeno posfácio sobre algumas coisas que não ficaram evidentes no preâmbulo.

Sai este ano?

Sai no próximo ano.

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