Entender Georges Bataille através do livro “O Pequeno”

por Ana Monteiro Fernandes,    28 Dezembro, 2020
Entender Georges Bataille através do livro “O Pequeno”
Capa do livro
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O bem e o mal, a religião e o erotismo, o corpo e a animalidade, a transgressão, o sagrado e a mundanidade, a vida e a morte, a culpa e a angústia. Como todos os bons escritores, a obra do francês Georges Bataille [1897 Billom -1962 Paris] apoia-se nestas dicotomias e, especialmente, na sua complementaridade para poder navegar no mapa da geografia humana. Partindo da nova edição do livro ‘O Pequeno’, de Julho de 2020, que figura na colecção ‘Fulgor Quotidiano’ com a chancela Sr Teste, o presente artigo visa recordar Georges Bataille, os aspectos principais transversais à sua obra e os acontecimentos de vida indissociáveis dos seus escritos.

Foi em 1943, com a edição de apenas cinquenta exemplares — como a nova edição de Julho do Sr Teste relembra — que a obra ‘O Pequeno’, de George Bataille, viu a luz do dia sob o pseudónimo Louis Trente. Antes, já havia publicado ‘História do Olho’, de 1928, considerado o seu primeiro livro, desta feita utilizando o curioso pseudónimo Lord Auch que significa, literalmente, ‘Deus aliviando-se’. Previamente, no entanto, já havia escrito ‘W.C.’. cujo manuscrito queimou, e ‘O Ânus Solar’. Esta última obra foi escrita em 1927 mas publicada, somente, em 1931, com ilustrações de André Masson, pintor das novas vanguardas artísticas da primeira metade do século XX, com grande expressão no surrealismo. É necessário notar que Bataille suscitou o interesse de Breton e do movimento surrealista pelo carácter bizarro, violento e escatológico, até, da sua obra. Em 1919, ingressou na famigerada Escola de Chartres e conseguiu o seu diploma com a tese por si apresentada sobre poesia medieval. Foi, justamente, nesse período que conheceu André Breton e os meandros do seu movimento, aproximando-se de Antonin Artaud e Michel Leiris, o que coincidiu com a descoberta de Marquês de Sade.

Georges Bataille / DR

Para quem ambiciona conhecer a obra de Georges Bataille, a nova edição do livro ‘O Pequeno’, com tradução do próprio Ricardo Ribeiro, pode constituir um bom ponto de partida. Dos grandes livros que marcaram a sua identidade autoral, podemos destacar ‘História do Olho’, justamente, em conjunto com ‘Madame Edwarda’, ‘O Erotismo’ (tradução portuguesa de João Bénard da Costa) e o essencial ‘A literatura e o mal’. Nestes livros, lidamos com os pontos chave essenciais para entendermos o autor francês — o erotismo, o bem, o mal e sua relação com a literatura e a religião, a filosofia e, até, a antropologia. A razão pela qual ‘O Pequeno’ pode ser um bom primeiro livro a ler para o entendimento de Bataille é porque oferece uma pequena súmula de todas as suas bases nas quais se apoia, sem esquecer um complemento pessoal. Pode-se, também, aproveitar para se fazer uma viagem por todas as suas principais influências desde Marquês de Sade, Nietzsche e, inclusive, Freud.

Em primeiro lugar, a influência de Nietzsche em Bataille pode-se ver, logo, pela forma dos seus aforismos — o estilo que marca ‘O Pequeno’, além do tom autobiográfico de ‘WC: ‘Prefácio à História do Olho’. Há, igualmente, no livro, de forma eclética, o uso de uma linguagem mais poética e, inclusivamente, a publicação de poemas. O que se revela mais presente, no entanto, é a utilização de aforismos, tal como fazia o filósofo alemão. Mas voltando à deixa de ‘W.C.’, o livro que Bataille escreveu ainda antes de ‘História do Olho’ mas cujo manuscrito queimou. Em ‘O Pequeno’, o autor apresenta-nos, então, um prefácio essencial, no qual nos revela o que esteve na base desses dois livros — ‘W.C.’ e ‘História do Olho’ —, fazendo um contraponto com os episódios mais marcantes da sua vida pessoal.

Interior do livro / DR

O seu pai, a relação que manteve com ele e o contexto da Primeira Guerra Mundial foi extremamente marcante e decisivo para toda a obra do autor e as temáticas abordadas, principalmente na questão da dicotomia da morte/vida, o corpo, a ligação do erotismo à escatologia do corpo e da morte e a religião. O seu pai, invisual e de saúde debilitada, necessitava de cuidados permanentes. Cuidados esses, que recaíam sobre o seu filho, que tinha de o auxiliar nos cuidados primários, como, por exemplo, nas necessidades fisiológicas. Acresce que quando, já no clima da Grande Guerra, a vila em que se encontravam — a quatro ou cinco quilómetros da frente alemã — estava prestes a ser tomada pelos ‘boches’, a mãe de Bataille e o próprio chegam a abandonar o pai, que ficou sozinho e debilitado, apenas ao encargo da ‘criada’, tendo o progenitor morrido a 6 de Novembro de 1915. Tal como o próprio o afirma no capítulo ‘WC : ‘Prefácio à História do Olho’,

O que me abate sobretudo: ter visto, inúmeras vezes, o meu pai a cagar. Descia do seu leito de cego paralisado (o meu pai reunia no mesmo homem o cego e o paralítico). Descia penosamente (eu ajudava-o), sentava-se num penico, coberto uma camisa, a maior parte das vezes com um gorro de algodão (tinha uma barba descuidada, cinzenta na ponta, um grande nariz adunco e uns imensos olhos cavos, olhando fixamente para o vazio). (…) Tendo-me concebido cego, o meu pai (completamente cego), não pôde arrancar-me os olhos como Édipo.

Georges Bataille

A frase, “tendo-me concebido cego, o meu pai (completamente cego), não pôde arrancar-me os olhos como Édipo”, tem uma importância e significância magistral. Antes de mais, há, em Bataille, no que escreve, uma importância centrada no olhar, na claridade e na escuridão. Importa frisar que o seu primeiro livro publicado apresenta, justamente, como título, “História do Olho”. Em ‘O Pequeno’, as referências ao olhar e à dicotomia que opõe a cegueira à visão também são recorrentes e constantes em frases, como “Tenha piedade de mim, talvez eu esteja cego” (…) “Que ternura, agora… Ó como estou cego!” ou “ Não me preocupo mais: de repente vejo-me como cobaia de Deus, mas na sua infinitude Deus é cego, quando ver é a minha enfermidade.”

Na primeira frase, na qual se estabelece uma oposição a Édipo, o que se pretende dizer é que o autor não teve a oportunidade de furar os seus próprios olhos perante a sua tragédia demasiado humana, tal como Édipo fez quando finalmente viu, com mais claridade, a surrealidade e o absurdo do infortúnio que, na prática, o próprio criou para si mesmo — foi Édipo quem assassinou o seu pai sem o saber e se apaixonou, sem o suspeitar, pela sua própria mãe. Sem conseguir suportar a visão de tal ideia, cegou-se a si próprio. No caso do autor foi, de alguma forma, o seu próprio pai que, apesar de cego, o introduziu à visão da doença e do que é mais frágil na condição humana. O que o fez ver e tomar consciência do corpo, da fraqueza do corpo e da sua sujidade numa idade muito precoce, ao mesmo tempo que via a entidade que o devia proteger e ser o seu ‘Deus’ protector, a agonizar e a definhar até ser um ídolo ou um Deus morto. Ou, então, uma expressão muito forte do que há de mais mundano ou de animal no corpo. Daí mesmo nasce essa impossibilidade de ser cego como Édipo, “tendo-me concebido cego, o meu pai (completamente cego), não pôde arrancar-me os olhos como Édipo.”

Importa ressalvar que a escatologia também está muito presente em Bataille, fazendo um contraponto com a própria sujidade do corpo e a acção de ir à casa de banho. De alguma forma, é curioso o pseudónimo por si escolhido para a publicação da obra “A história do olho’, “Deus aliviando-se”. Não só não deixa de ser uma forma de escatologia, como está a associar uma figura sacralizada à própria acção escatológica, a uma acção demasiado humana e corpórea. Como o próprio diz no capítulo ‘WC : ‘Prefácio à História do Olho’,

“O nome de Lord Auch refere-se ao hábito de um dos meus amigos: irritado deixou de dizer aux chiottes!”; abreviava “aux ch.” Lord significa Deus em inglês (nos textos sagrados); Lord Auch é Deus aliviando-se”.

Georges Bataille

Além da visão deste Deus que se alivia, que acaba por ser uma alusão à figura do seu pai, Bataille liga constantemente a imagem de Deus a esse lado mais corpóreo, mais pagão até. Após o abandono do seu pai e da descoberta da sua morte, o autor aproximou-se muito da religião, da noção de Deus, embora tenha sido só uma fase espoletada, principalmente, pelo sentimento de culpa. Bataille chegou, até, a ter sessões de psicanálise, que o ajudaram a usufruir da escrita como ponto de catarse. Mas Deus está sempre associado, em primeiro lugar, à noção de cegueira e visão, à corporeidade, ao bem e ao mal, ao complemento do bem e do mal e ao erotismo, até.

O meu pai, irreligioso, morreu a recusar a visita do padre. Na puberdade, também eu me tornei irreligioso (a minha mãe era indiferente). Mas a 14 de Agosto fui visitar um padre, e até aos 20, foi rara a semana em que não fui confessar as minhas faltas! Aos 20, voltei a mudar, parei de crer noutras coisas além da minha sorte. A minha piedade não é mais do que uma tentativa de ilusão: a todo o custo, queria iludir o destino; tinha abandonado o meu pai. Hoje, encontro-me “cego”, desmedido, o homem “abandonado” pelo globo como o meu pai em N. Ninguém, assim na terra como nos céus, se preocupou com a angústia agonizante do meu pai. Creio contudo que, como sempre, a “enfrentou. Que “orgulho horrível”, por instantes, no sorriso cego do papá!

Georges Bataille

Embora não constitua uma influência óbvia, a verdade é que parece haver muito de Hermann Hesse nesta visão de transgressão das amarras do ser humano. Esta visão do bem e do mal, ou a visão de Deus mais pagão, o que, por sua vez, nos leva a uma perspetiva, além de freudiana, mais junguiana, até, no seu próprio sentido próprio de anti-cristianismo.

“Se uma glande prazerosa engendrasse o universo, se o criasse como ele é, teríamos a transparência do céu, do sangue, dos gritos, do seu fedor. Deus não é um pároco, mas uma glande: o papá é uma glande.”

Georges Bataille

Com desenhos de João Louro, ‘O Pequeno’, que acaba por ser um pequeno mas grande livro de 42 páginas, pode e deve ser um bom livro de início para Bataille. É o humano, a sua transgressão e a sua culpa, no sentido mais amplo do termo.

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