Ensaio. A política como reality show ou o jornalismo como anestesia

por Cronista convidado,    11 Maio, 2021
Ensaio. A política como reality show ou o jornalismo como anestesia
Fotografia de Mika Baumeister / Unsplash
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Há no universo jornalístico um sinuoso binómio marcado por uma relação adversativa:“hard news versus soft news” (“notícias duras versus notícias brandas”). No entanto, a televisão veio acinzentar a partícula “versus” e fazer coagular os termos “hard” e “soft”, transformando o que era uma relação adversativa numa relação de simbiose.     

Ainda que os polos do binómio sejam relativos, uma vez que os temas que carregam são oscilatórios e subjetivos no tempo, no espaço e no contexto social em que se insere um determinado público (bem como dos interesses e opções pessoais de cada um dos indivíduos que constituem esse público), há algo de intemporal ao que cada um alude: notícias duras dizem respeito, à partida, a temas e questões consideradas decisivas ou influenciadoras da vida de uma sociedade, como as de teor político, económico, e (por mais lato que seja) social; notícias leves dizem respeito a temas considerados periféricos, secundários (por outras palavras, correspondem ao lugar das celebridades, do entretenimento, do estilo de vida, entre outros). 

Quando, em 1966, Pierre Bourdieu escreveu “Sobre a Televisão”, parecia antever que, volvidos 50 anos, as hard news sucumbiriam nesse aparelho ou, se resistissem, apenas permaneceriam “duras” no seu conteúdo, na sua génese e essência, pois a forma — o enquadramento através do qual são representadas, transformá-las-ia ao ponto de as aproximar de soft news — notícias brandas ou leves, fait divers, manchetes. 

A reflexão que desejo incitar não se prende com juízos em relação ao público que prefere as soft news em detrimento das hard, ou vice-versa, nem tem que ver com escolhas maniqueístas, através das quais se conclua se um 24Kitchen é mais merecedor de um lugar na programação do que um Sexta às 9. Não é um ou outro, ambos são possíveis, e é precisamente a coexistência da diversidade como possibilidade que torna a televisão numa máquina inclusiva. A embrulhada nasce no momento em que se passa a recorrer aos formatos de uns para tratar os outros. Neste caso, quando se passa a recorrer aos formatos e enquadramentos (framing) típicos das soft news, para tratar temas duros. Esta coagulação baça entre conteúdos sérios e formatos leves e endógenos do entretenimento foi já traduzida num termo — o Infotainment. Dessa múltipla embrulhada, atentemos nas implicações cognitivas que ela alavanca. Quando Rolland Barthes escrevia que “a linguagem nunca é inocente”, referia-se às palavras como signos — palavras que são detentoras de uma carga simbólica que as transforma em determinadas imagens no recetor, imagens que carregam e provocam um significado e conduzem a uma determinada interpretação. Transladando este princípio para os meios de comunicação, nada é inócuo nem inocente — cada pormenor é subliminar para servir um propósito; cada detalhe parte de escolhas que são tomadas consoante determinadas representações que se pretende provocar, inculcar, moldar e fazer ressoar cognitiva e psicologicamente no espectador. Não é por acaso que um título está escrito a vermelho e a tamanho 42 e os restantes a branco e a tamanho 24; que nos caem em cima e de forma abrupta e inadvertida planos sensíveis que nos fazem querer arranjar palas que cubram os olhos sempre que se liga a televisão (à exceção dos espectadores que além de voyeuristas carregam em si uma espécie de predisposição ao masoquismo, apropriando-se da violência dessas imagens para as utilizar como testes à sua (in)sensibilidade e resistência). 

Está em causa a televisão enquanto suporte tecnológico que, consoante os formatos que produz, inculca determinadas significações. Que, consoante o envolvimento sensorial e o nível de sedução que cola o público, produz diferentes impressões. Estamos perante o binómio cunhado por Marshall McLuan (1964), que divide os media em “quentes” — aqueles que prolongam um único sentido em “alta definição” — que estimulam esse sentido no recetor e não deixam, por isso, muito espaço por ser preenchido; e em “frios” — aqueles que, por estimularem vários sentidos, o fazem de forma mais superficial, menos completa e que, por isso, requerem um maior esforço de envolvimento por parte do recetor para preencher o vazio. Recordemos, como exemplo de momento em que o formato foi decisivo para a extração de significados, os debates em 1960, entre Kennedy e Nixon: aqueles que ouviram o primeiro debate na rádio consideraram Nixon o vencedor, mas a imagem — o poder da imagem — que não impediu esconder o corpo ainda doente de Nixon, levou os 70 milhões que assistiram ao debate televisivo (empecilhados pelos elementos que, apesar de para-textuais, estéticos e irrelevantes, se sobrepuseram à apreciação serena da oratória de cada um dos candidatos)  a considerar Keneddy o vencedor. E daí a premissa de MacLuhan: “the medium is the message” (“o meio é a mensagem”, em detrimento do seu conteúdo). 

Também o reverso, o avesso daquilo que nos é dado como imagem — os silêncios, as ocultações, as fontes e as vozes não ouvidas e tudo o que de invisível mais houver, são também signos em permanente segregação, e escutá-los requer um esforço maior — de atenção, de sensibilidade e de cautela. Da mesma forma, também a questão dos formatos e dos framings carrega em si determinados elementos de semiótica que foram — consciente ou inconscientemente — escolhidos para provocar determinados significados que vão influenciar a interpretação do público. Se é feita uma piada num talk-show da meia-noite (formato de soft new) sobre o extermínio lento dos palestinianos pelo Estado de Israel (situação, em essência, hard new), o hipotético estremecimento súbito que atinge os espectadores dura menos tempo que a naturalização da situação em torno da qual foi feita a piada. Se são dados aos telespectadores, durante 10 manhãs e noites consecutivas, planos e imagens de palestinianos mortos em Gaza, possivelmente ao fim do quinto dia de planos necrófagos um telespectador não vai sentir a necessidade de ver mais. Pensará: “É guerra. Morre-se. É normal.” E é aqui, quando a imagem funciona  como vacina ou cateter que transfere imunidade a ela própria — à imagem, que chegamos ao eterno retorno: é aqui que o espectador é anestesiado perante a dor do outro, essa que é naturalizada, objetificada e homogeneizada às outras todas; reduzida a “apenas mais uma de tantas”; é aqui que a alteridade e a defesa do outro se esfumam.

E, por falar em esfumação da alteridade e defesa do outro, um mote verídico para uma análise sociológica daquelas que Portugal tem míngua:

Entre Lagos e Lisboa há um autocarro que atravessa a Costa Alentejana. Durante três anos, esse foi o meu autocarro, e nele entrava, em Aljezur, cerca de uma vez por mês. Numa dessas viagens, e à semelhança de todas as outras, esperava na paragem de Odeceixe um grupo de imigrantes indianos, com o peso da mochila e de uma vida inteira de insegurança às costas. Eu vinha na parte traseira do autocarro, e atrás de mim vinha uma mulher e o filho, que era pequeno, mas só em corpo. Os rapazes entraram, caminharam em direção à mesma parte que nós, e foi ali, no momento em que chegaram ao corrimão das escadas que dividia o autocarro em metades, que se ouviu da voz da mulher: 

– “Ei ei ei ei, onde é que pensam que vão? Daí não passam.”

-“Mãe, vá lá…para com isso…” – Suplicou o filho, que era pequeno, mas só em corpo.

Os rapazes recuaram. Sentaram-se, juntos, na parte dianteira do autocarro. 

“Daí não passam.” 

Não é de agora a imigração como questão e as múltiplas questões que dessa advêm — tal como acontece com a xenofobia, inflamada por via de inadvertidas e hostis palavras-gatilho, que reafirmam a fronteira do “nós e eles”, como aquele corrimão que dividia o autocarro entre os da mulher e os “outros”. E não deixa de ser irónico ter sido preciso vir uma pandemia para levar para o espaço mediático e para o debate o leque de nuances que comporta a questão dos imigrantes, nomeadamente os que chegam às estufas do concelho de Odemira, para aí trabalharem em regimes sazonais. Todavia, a objeção maior não é o facto de se ter demorado, até porque acredito que “O jornalismo é a arte de chegar atrasado, logo que possível”, como escreveu o jornalista sueco Stig Dagerman, durante Outono Alemão, em 1947. A objeção tem que ver com a forma como o tempo foi utilizado, quando finalmente chegou: tem que ver com os véus usados para tapar as nuances políticas que fazem da situação dos imigrantes um tema “duro”, e a preferência por transmiti-la em formatos brandos. Vamos a exemplos: 

1. a 2 de maio,  a SIC lança uma peça intitulada “É preciso apurar se os direitos dos trabalhadores agrícolas de Odemira estão a ser respeitados”, frase que ocupa cinco segundos dos 122 segundos que dura a peça — todos os restantes não se focam nos direitos dos trabalhadores, mas sim nas visitas de Marcelo Rebelo de Sousa pelos dois arquipélagos, e na preciosidade dos fundos europeus para a reforma económica. 

2. Ainda a 2 de maio, a SIC lança outra peça na qual inclui um excerto da resposta demagoga de João Cravinho: “Isto é um problema que é complexo e que se foi desenvolvendo ao longo de décadas. Uma das características da pandemia é que voltou os holofotes para um conjunto de vulnerabilidades e dificuldades da nossa sociedade em várias áreas. Ora manifestamente, esta problemática do desenvolvimento de novas formas de agricultura no Litoral Alentejano precisa de ter resposta também em termos de habitação e apoio aos trabalhadores que trabalham nestas áreas.” Não há na peça momento algum em que se pergunte que respostas serão essas e o que faz da agricultura no Litoral Alentejano uma “problemática”.

 3. A 3 de maio, o canal público português passa uma peça iniciada pela seguinte observação da repórter: “é impossível explicar-vos o cheiro que sentimos aqui”, uma mistura de “caril” e de “falta de condições de higiene”. Depois, como se a casa onde vivem se tratasse de um curral envidraçado, como se os imigrantes se tratassem de espécies raras e exóticas e o ecrã da televisão o vidro que nos permite espreita-los, segue-se uma visita guiada pelas várias divisões, diz-se que habitam oito pessoas nessa casa, das quais uma criança que não vai à escola, e a visita termina na cozinha, onde o tal cheiro a caril se adensa, à semelhança da desconsolação da repórter que fecha a peça a desabafar que “a gordura do chão se agarra à sola dos sapatos”, arrumando a peça e o assunto. Do lado de cá do curral, ficaram as mesmas questões que existiam a priori da peça: que idiossincrasias se verificam entre aqueles homens; entre aqueles homens e os chefes; que relações de poder; o impulso de hostilidade e as palavras de distância atiradas pela mulher que vinha no meu autocarro foram pontuais ou foram sintomáticas de algo maior e mais fundo, de algo que se alastra e insinua a forma como os imigrantes são olhados? O que é que não está à vista? A missão do jornalismo não deveria ser a de virar as lanternas para os túneis escuros, ao invés de as acender em planos que servem de enfeite às ofuscadas questões nevrálgicas? O problema não é a mistura do cheiro a caril com o da escassez de higiene ou o facto de a gordura do chão se agarrar às solas dos sapatos, mas sim a chacinada nos Direitos Humanos que esses reparos representam — esta sim deveria ser a notícia e nela se debruçarem sérias investigações, e não na sinestésica mistura de caril e gordura. A vida precária não é um mote para um romance. Receber três euros à hora, pagar para poder futuramente usufruir de apoios da Segurança Social, ser transitado de casas para uma herdade privada e dessas para pousadas como fardos de palha, não são motes para um romance — pelo menos enquanto forem fenómeno real e violação de liberdades e garantias de vida, como aquelas que foram escritas em diretrizes pela União Europeia, a 20 de julho de 2020, criadas para “fornecer orientações às autoridades nacionais, às inspeções do trabalho e aos parceiros sociais, para garantir os direitos, a saúde e a segurança dos trabalhadores sazonais e assegurar que os trabalhadores sazonais têm conhecimento dos seus direitos.” 

A precariedade do jornalismo atual leva-me a crer que deslocações até Odemira mexem com orçamentos que não esticam. E não é paradoxal não canalizar os gastos e tirar proveito desses fundos dispensados em deslocações para levar a cabo investigações sérias, profundas, que expliquem os comos e os porquês da gordura do chão, ao invés de apenas a identificar? Ao invés de circunscrever as vidas dos imigrantes em peças televisivas assépticas e isentas de dados puros e duros, que se repetem em vários episódios do mesmo telejornal ao longo da semana? Este rol de escolhas jornalísticas inadvertidas leva-me a concluir: o sensacionalismo já não está apenas na preferência pelos temas sanguinários, pela imagem das feridas expostas, das queimaduras ou das lágrimas para as quais se apontam as câmaras-revólver. Sofisticou-se, e agora está nestas pequenas subtilezas que manipulam, sub-repticiamente. Está na opção de sacrificar o princípio de responsabilidade social (o chamado “accoutability”) em prol dos planos rápidos. Porque o público espera respostas rápidas. Respostas que saciem a fome de imagem e inflamem o masoquismo. Porque, como escreveu Pierre Bourdieu, o core da televisão são os fast-thinkers.  Afinal, o que interessa se por detrás daqueles nomes falsos usados para não ferir a integridade estão histórias, estão violações, estão privações, está o desespero, está a sobrevivência, está o arrasto de sair de casa para receber três euros à hora até que já não haja mais fruta por apanhar e os bolsos deixem de albergar os tostões com que pagam um beliche? O que interessa tudo isto, se tudo isto é precisamente o que vai parar à goela dos cucos que tomam conta dos relógios do jornalismo?  

Há dias, contou-me um amigo jornalista que as pessoas que entrevista ficam tristes quando perguntam se vai sair na televisão e o meu amigo diz que não, que é para o jornal. E essa tristeza, sentida perante a não exposição televisiva — como se a televisão fosse o bastião do jornalismo, leva-me a crer que chegámos ao ponto do não retorno, onde a revolução do paradigma não é jornalística, mas sim um processo cultural, no qual a representação do “real” pelo jornalismo desempenha “apenas” uma parte.   

Deste processo de “televisação” da vida política — desta metamorfose das hard news em formatos de soft news, não estão fora outros exemplos: debates presidenciais de meia hora nos quais cada candidato é sistematicamente recordado do tempo que lhe resta e em prol do qual só lhe resta ter de engolir pensamentos como se de um shot se tratassem. Não é controverso recorrer-se ao debate como pináculo da Democracia para depois ser esse pináculo a lâmina que chacina essa mesma Democracia? Visaram esses debates o estímulo a uma reflexão e dissecação ideológicas e, para tal, a identificar pontos de divergência, ou servir de artificies para atestar o não comprometimento da salubridade democrática? E daí o argumento de Pierre Bourdieu:

“Creio até que, contrariamente ao que pensam e ao que dizem, sem dúvida com toda a boa-fé, os jornalistas mais conscientes das suas responsabilidades, a televisão faz correr um não menor risco à vida política e à democracia.” (Bourdieu, 2005). 

Para confirmar a inocuidade das motivações que subjazem a estes debates televisivos, basta compará-los ao que aconteceu às sete horas de debate entre Lyncoln e Douglas, candidatos ao Senado estado-unidense pelo Estado de Illinois, em 1858 – um tempo não-televisivo, no tempo em que havia tempo: essas sete horas de debate foram transcritas nos jornais do país, transcrições que estão hoje digitalizadas em cerca de 200 páginas.  

Atrás da ‘televisação’ da política não ficam os polígrafos, que aparentam partir de um desiderato salutar — o de amortecer a desinformação, mas que acabam a pecar por se apropriarem de formatos que, por serem digitais, escorregam bem nos olhos dos telespectadores, os quais se contentam com visões maniqueístas, onde a vida humana parece tão pequena e irrelevante que é medida com escalas, reduzida a uma faca de dois gumes, ao preto ou branco, ao bom ou mau, ao herói  ou vilão, à mentira ou verdade, quando a missão do jornalismo seria a de desvelar as entrelinhas que subjazem a essas extremidades. 

Se reconhecermos que, como defendeu o filósofo irlandês George Berkeley (1685 – 1753), “Ser é ser entendido”, se entender o Outro implica pensar sobre ele, e se pensar é, como argumentou Bourdieu, algo impossível se diante do imperativo da urgência e do tempo — traves mestras e pressões que, apesar de mais evidentes na televisão, são pressões transversais aos demais media tradicionais, então,  a conclusão a que se chega por indução é a de que o  jornalismo tradicional -independentemente do seu formato — não é um espaço propenso ao pensar, ao entender e, daí, ao Ser-se. É somente o íman da complacência dos espectadores a esse lugar de exibição narcísica, onde a realidade humana é reduzida ao dar a ver e não ao procurar saber; condenada à liquidez, ao efémero e ao célebre.  

Esta é a realidade dos cliques, das traduções e reciclagens de notícias, de copy-paste, de informações regurgitadas que são camufladas em novas notícias, que não passam a ser novas apenas porque o título é já outro (por vezes nem esse chega a ser alterado). Em suma, é a realidade da concentração empresarial de cujas receitas depende a sobrevivência dos órgãos de comunicação, e que, por isso,  é também a realidade dos números: onde os furos, as “caxas” e as “primeiras-mãos” e consequentes esperadas visualizações e audiências despoletadas nunca se aproximaram tanto de rebuçadinhos indispensáveis. Onde os temas que passam no crivo são os mais promissores de vendas. Onde esses temas são decididos consoante decisões puramente orçamentais, como se as vidas humanas se tratassem de batatas. 

É a realidade das hierarquias na redação onde o estagiário é marioneta comandada pelo editor (que ordena mais do que ensina), que propõe ideias que lhe são recusadas e que, quando liga para entrevistar alguém (sair da redação e ir para o terreno é já algo ancestral, herético, transcendente), não se pode esquecer de se apresentar como estagiário — não vá mandar alguma gralha ou cometer algum erro — como se a hipótese de errar só ao estagiário fosse deterministicamente concedida. Tal como argumentou sociólogo norte-americano Warren Breed, no estudo Controle social da redação: Uma análise funcional (1955), as notícias só podem ser compreendidas se houver uma compreensão das “forças sociais” que influenciam a sua produção: se forem estudadas enquanto resultado de uma combinação de fatores, pressões e constrangimentos exercidos pelo ecossistema em que são fabricadas. Nesse estudo, Breed concluiu que os pontos de vista da empresa e dos submissos editores do jornal vão influenciando o trabalho do jornalista ao longo do tempo, através de um processo de osmose — processo por via do qual os jornalistas vão interiorizando as políticas editoriais e normas que norteiam o órgão, ao ponto de se conformarem de tal forma com elas, que acabam por as evocar em cada um dos momentos de produção jornalística, ainda que não se apercebam, pois só ao se ser fiel a essas políticas é que se evitam sanções e não se ferem as hipóteses de vir a subir na hierarquia.

É a realidade em que a digitalização do Jornalismo fez imperar a abundância e cultivar o excesso, o apascento das quantidades que deslizam em cascata pelos feeds em prol da pressa, feeds esses que se têm de alimentar, como porcos de engorda; como aquário cujos peixes são os cibernautas — e o mais irónico é que o excesso de comida é precisamente a principal razão da pequena longevidade dos peixes “domesticados” em aquários.  

Nesta realidade do sobejo, é urgente um Jornalismo que não se mova pela urgência, que se esforce não por quantidade, mas por valor acrescentado. Que vá além das traduções e das informações asséticas e levianas. Que largue o microfone e a câmara e vá ao encontro daqueles que estuda. Que não apenas os mostre, que os ouça. Que mostre estar para ficar o tempo que for necessário, e não apenas de passagem. Que faça do público um público exigente e não saciado com pouco. Que não deixe arrefecer palavras subliminares e gatilho como as proferidas pela mulher que vinha no meu autocarro, que desmanche os muros como o que essas palavras construíram e arranque os seus significados. Que não anestesie o público a esses muros. Que vá para lá do caril e da gordura no chão e se foque em perceber que atentados aos Direitos Humanos essa descrição prescreve. Acima de tudo, que se demore, porque, se há algo que o tempo do sobejo vem confirmar é que, realmente, “O jornalismo é a arte de chegar atrasado, logo que possível”, como escreveu Dagerman, ou como fazia o jornalista polaco Ryszard Kapuściński-  “lento a escrever, podia passar um dia inteiro em volta de uma página, escrevia várias versões de uma frase” (Domosławski, 2018: p. 197). 

A ideia de missão no jornalismo comporta em si uma outra, essa que torna a primeira mais pesada: a ideia da filantropia, do amor ao outro, da alteridade, do diálogo de aproximação, aproximação essa que se afasta de utópica ou inconcebível a partir do momento em que há uma profissão-missão que permite desvendar os podres do mundo, os desvios aos direitos e liberdades humanas, aquilo que o mancha e o afasta de lugar justo. Não imagino uma outra sedução para além desta que possa chamar alguém a enveredar pelo Jornalismo. Foi daqui que nasceu a ideia do papel de jornalista como “watch-dog” (cão de guarda que espia e escrutina os poderes), tão bem protagonizada em investigações como as de Watergate, por Bob Woodward e Carl Bernstein, e dos Panama Papers, e cujo legado, neste país e não só, talvez só chegue ao alcance dos jornalistas freelancer e ao jornalismo independente.

Foi também daqui que nasceu a minha febre ardente pelo Jornalismo, que vai adensando à medida que redescubro Kapuściński, que acreditava: “a única maneira de conhecer a vida das pessoas sobre quem escrevo” é “viver como elas, ser picado pelos mesmos insetos, sofrer as mesmas doenças, comer os mesmos alimentos. Não o repugna servirem-lhe gafanhotos grelhados, de abdómenes esbranquiçados e gordurentos mal-passados.” (Domosławski, 2018: p. 193); à medida que me dão a conhecer Rodolfo Walsh (1927-1977), jornalista argentino, pioneiro do jornalismo literário, tão bem representado por Operação Massacre (1957); ou ainda a jornalista italiana Oriana Fallaci (1929-2006), de quem são as seguintes linhas: “eu provoco-os [entrevistados] porque me envolvo, porque as minhas entrevistas nunca são frias, porque me apaixono pela pessoa que está à minha frente, mesmo que a deteste. Para mim uma entrevista é uma história de amor, é um ato sexual”. 

Mas, quão densa é a amargura de segregar o ardor e a febre pelo jornalismo ao mesmo tempo que se contaminam com a noção de que aquilo que as escolas de jornalismo ensinam a fazer corresponde ao que os mass media não deixam fazer. Quão ‘desalentoso’ é saber que o papel de watch-dog é substituído pelos fast-thinkers e amordaçado pelos formatos fast-food; quão insuperável é desacreditar no exercício mais belo — o de ser bisturi dos Direitos Humanos, que, ingénua, imaginei vir a desempenhar. Enquanto o jornalismo for uma fábrica de procriar notícias como a de Tempos Modernos, de Charlie Chaplin (1937), onde a estandardização de um produto que me vai permitir receber um salário ao fim do mês se sobrepõe à missão, sepulto o ardor e a febre. Sepulto-os. Sepulto-os até que se sepultem a pressa e a leviandade no Jornalismo. Resta-me ir espantando os fantasmas do ardor e da febre, através de textos como este.

Referências:

Transcrição dos debates entre Lyncoln e Douglas.
Barthes, Roland – O Grau Zero da Escrita, 2006 (1953); Edições 70.
Breed, Warren – Social control in the newsroom: A functional analysis, 1955; Social Forces, 33(4). https://doi.org/10.2307/2573001;
Bourdieu, Pierre – Sobre a Televisão, 2005 (1996); Celta, 1ª edição;
Dagerman, Stig – Outono Alemão, 2020 (1947); Antígona, 3ª edição;
Domosławski, Artur – Kapuściński: Uma Vida, 2018; Assírio & Alvim, 1ª edição;
McLuhan, Marshall – Compreender os Meios de Comunicação -Extensões do Homem, 2008 (1964); Relógio d’Água. 

Ensaio de Ana Rita Rodrigues.
A Ana é de Aljezur, licenciada em Jornalismo e tem um Menor em Sociologia. Encontra-se a terminar o mestrado, com uma tese focada em Jornalismo Independente.

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