Em caso de dúvida, não ignores os sinais

por Manuel Clemente,    24 Outubro, 2020
Em caso de dúvida, não ignores os sinais
Manel Clemente / DR
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Existem expressões que muito dificilmente aceitamos como algo construtivo, até porque na maioria das vezes não é esse o objectivo de quem as diz. Nunca cai bem um “é bem feito”, naquele instante em que ainda estamos a sentir as consequências do erro. O famoso “és sempre a mesma coisa”, que até podia servir de reconhecimento à nossa coerência, mas que normalmente é utilizado para dar ênfase a algum defeito. E, por fim, uma daquelas que mais se ouve em tom de falsa profecia: “estava-se mesmo a ver”.

Ainda não descobri onde me posso inscrever no curso de oráculo, mas gostava de saber. Existe uma legião de espectadores sempre com o futuro na ponta da língua. Sem bola de cristal, cartas ou búzios, são capazes de antever aquilo que vai acontecer com uma exatidão de fazer inveja a muitos adivinhos. Só existe um pequeno, quase insignificante, problema. Por norma, só confirmam o desfecho de uma situação no seu final. Isto é caso para dizer “assim também eu”.

Quem nos rodeia e emite opiniões não solicitadas acaba por ser irrelevante para a nossa vida. Vai sempre existir um painel de comentadores mortinho para opinar sobre o que fazemos e o que deixamos de fazer. É lidar, aceitar e não dar grande importância. O que realmente nos deve preocupar é tudo aquilo que estamos mesmo a ver que vai acontecer, mas que optamos por ignorar. Os sinais, por menos evidentes que sejam, estão em todo o lado. Ignorá-los ou dar-lhes atenção é uma escolha inteiramente nossa.

Foram inúmeras as vezes que me fiz cego para tentar encobrir as evidências. Não queria acreditar que as coisas não iam correr como eu tinha idealizado, portanto, preferia levantar o tapete e empurrar para debaixo o óbvio. Vivi experiências profissionais que, quase desde o primeiro dia, eu sabia que não era por ali. No entanto, decidi continuar até ter 200% de certeza. Tive relações que arrastei no tempo sem necessidade. Tomei decisões que o meu corpo gritava para eu não tomar porque achava que tinha de ser. A quantas coisas nos sujeitamos e que eram perfeitamente evitáveis? Tantas. Estava-se mesmo a ver e nós escolhemos tapar os olhos.

No final, quando o desfecho que antevíamos se manifesta e as peças se encaixam, tudo se torna mais claro. É neste momento que percebemos que a nossa intuição é merecedora do benefício da dúvida. “Eu já sabia” — exclamamos nós, meio arrependidos por não termos confiado. A verdade é que há coisas que não se explicam. Não por não terem justificação, mas porque os sentidos podem ser curtos para enxergar o porquê. Com o tempo, vamos recorrendo às experiências passadas e à maturidade para tomar decisões mais acertadas. A neblina dos receios e o turvo das emoções clareiam, dando lugar a uma confiança mais do que justificada. Ainda assim, corremos sempre o risco de nos agarrar demasiado a padrões fixos, como se fossem fórmulas para decidir de forma correcta. É preciso ter atenção a isso. Se há coisa que 2020 nos veio ensinar é que tudo pode acontecer e que nada é garantido.

A curto prazo, é sempre mais tentador fazer vista grossa. Para quê levantar problemas se, aparentemente, está tudo bem? Tanto pode ser no nosso dia a dia como nas questões ambientais. Deixamos andar, na ilusão de que os problemas se resolvem sozinhos e que se não olharmos pode ser que eles desapareçam. Mas a verdade é que, quase sempre, continuam lá e a fazerem-se valer do efeito bola de neve. Até que chega o dia em que o nosso tapete mais parece uma pirâmide, tanta é a poeirada que acumulámos. Nesse momento, sobra pouco tempo para decidir e a solução acaba por ser, tantas vezes, abrupta e intempestiva. Há muito que a janela de oportunidade para os resolver com calma se tinha fechado. Não deixa de ser irónico o facto de estes desfechos repentinos acabarem por trazer ainda mais problemas. Corremos o risco de mergulhar num círculo vicioso e darmos por nós a vestir a camisola do “isto só me acontece a mim”. Ponderação é o que se pede. Nem ser impulsivo e sair da experiência antes do tempo, nem testar os seus limites até à exaustão.

“Isso é tudo muito bonito, mas…”, estarão alguns leitores a pensar neste momento. Eu ajudo. Isto é tudo muito bonito, mas requer tempo, vontade e muita paciência. Já é hora de não sermos tão duros connosco. É saudável querer aprender e evoluir. Aquilo que pode ter o efeito exatamente contrário é exigirmos que esse desenvolvimento seja instantâneo. Calma. Errar é humano. Com maior ou menor destreza, qualquer um de nós é capaz de cometer um erro. Não tem nada que saber. O que realmente faz toda a diferença é a forma como acolhemos esse percalço. Vou-me martirizar e culpabilizar ou vou-me perdoar e aprender? Dois caminhos, uma decisão. Faz a tua.

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