Em “Até os Cães”, Jon McGregor retrata os desfavorecidos e invisíveis

por Miguel Fernandes Duarte,    9 Agosto, 2019
Em “Até os Cães”, Jon McGregor retrata os desfavorecidos e invisíveis
PUB

Muitas vezes se discute a voz de um escritor, e não são raros aqueles que escrevem sempre versões do mesmo livro ou narram sempre com versões do mesmo narrador (em geral, com características autobiográficas). Se é verdade que são perfeitamente identificáveis, parecem correr inevitavelmente em direcção a um abismo de repetição que esgotará qualquer criatividade.

O inglês Jon McGregor parece ser daqueles que sentem repulsa pela mera sugestão de semelhança entre obras. Claro que aquilo que o marca enquanto escritor está lá sempre, mesmo que sub-repticiamente, mas as temáticas entre os seus únicos dois livros publicados em português não podiam ser mais díspares. Até os Cães, originalmente de 2010 e recém-publicado pela Elsinore, não podia ter um cenário mais diferente do seu sucessor, Reservatório 13, o primeiro do autor editado em português, no ano passado.

Se Reservatório 13 é quotidiano e ciclos da natureza e da vida, Até os Cães é brutalidade à solta. Mesmo focando-se cada um numa comunidade, não podiam ter tons mais diferentes. É que o primeiro foca-se numa pequena vila pacata, apenas destabilizada pelo desaparecimento de uma jovem, e o segundo num conjunto de toxicodependentes e alcoólicos, desempregados, sem-abrigo, vagueando de um lado para o outro à procura de onde dormir, de onde comer, de onde arranjar uma próxima dose – já que, a cada minuto, a abstinência momentânea vai provocando reacções de cada vez maior intensidade.

Mas, se muda o tema, mantém-se a mesma vontade do autor em brincar com a forma: Até os Cães é narrado numa primeira pessoa do plural que vai andando por todos os lados, mudando de local, de foco, até de tempo; um “nós” que não é mais que a voz de um coro de amigos, presumivelmente mortos, que vão acompanhando a vida dos que por cá ainda estão.

Jon McGregor @ Nick Cunard / REX /Shutterstock

A peça-chave na narrativa é a morte de Robert, um alcoólico de meia-idade que é encontrado morto no seu apartamento, e cujo coro de narradores vai acompanhando, desde o momento em que é descoberto pela polícia, até ser autopsiado e cremado. Ao mesmo tempo, e de forma intercalada, o coro vai acompanhando aqueles que rodearam Robert em vida, como Danny, o amigo que, encontrando-o morto, foge imediatamente com medo de ser interrogado pela polícia. Nestes momentos, quando o coro narrativo irrompe pelas vidas dos companheiros de Robert, a narração assume praticamente a consciência de cada um deles, e é assim que vamos acompanhando, por exemplo, o percurso deste Danny pela cidade, por um lado à procura de Laura, a filha de Robert, e, por outro, de panfletos de droga que lhe permitam continuar essa mesma busca, já que a abstinência vai tomando tais proporções que até as frases e ideias de Danny vão sendo consecutivamente interrompidas na página.

Vidas brutalmente cruas, sem saída à vista, ciclos viciosos de adição que ficam, na maior parte do tempo, invisíveis. Nesse sentido, talvez a mensagem do coro narrativo seja mesmo essa: são os invisíveis da sociedade que não queremos ver e escolhemos ignorar. Todo o cenário que rodeia a investigação da morte de Robert mostra a atenção que nunca lhe foi dada pelo “sistema” enquanto ele era vivo. Na morgue, enquanto é autopsiado, é-lhe lavado o corpo com todo o cuidado, um banho que já não tinha há anos. São questionadas as causas de tudo o que marca o seu corpo, desde os hematomas das quedas provocadas pelo álcool às cicatrizes que lhe povoam o corpo. É necessária a morte para que se façam perguntas.

“E se alguma vez nos tivessem prestado tanta atenção a todos. E se aquele terapeuta ou quem quer que fosse tivesse deitado Mike assim na mesa e lhe tivesse pedido Fale-me deste hematoma aqui, e desta cicatriz, e desta bolha, e isto, o que é isto, uma queimadura de cigarro? Alguma destas coisas é resultado de automutilação, Mike?”

Qual de nós, ao passar por alguém nestas condições, procura saber algo? Qual de nós faz mais do que simplesmente virar a cara e seguir em frente? É o desprezo, aquilo a que estão habituados. Não admira, portanto, que quando uma das personagens, Steve, se desloca a uma quiropodista, a experiência o marque:

“A maior parte das pessoas esforça-se por não nos tocar, por não nos rasar ao passar por nós ou sequer cruzar o olhar com o nosso ou algo do género. E depois aquilo. Lavar e enxugar e segurar-lhe os pés, um em cada mão. Coisas assim ficam connosco, no fundo. Podia sentar-se e esperar o dia inteiro por uma coisa daquelas.”

Será a culpa apenas da droga e do ciclo em que se entra quando passa a ser ela a consumir quem a consome? São vidas totalmente desfeitas: encontros com a filha que não se vê há anos que são postos completamente em segundo-plano porque o álcool que se consumiu não permite que se esteja minimamente consciente, violações das quais a memória se apaga por se estar tão chapado que nada dá para reter, oportunidades de reabilitação perdidas porque há sempre qualquer coisa que se mete no meio.

Aquilo de que muitos se vão lembrando é de um serviço militar violento, em teatros como o das Maldivas ou do Afeganistão. Um deles regressa mutilado deste último, a morfina com que é injectado permite-lhe fazer a viagem de volta para o Reino Unido, num helicóptero, sem dores, ao mesmo tempo que circula, em terra e por barco, a heroína que, cultivada nesse mesmo Afeganistão, acaba na corrente sanguínea de alguém no Reino Unido, provavelmente na do próprio. Aquilo que começa por nos permitir continuar em frente, rapidamente nos acorrenta, principalmente se, assim que cumprido o serviço, se é abandonado ao deus-dará. Arrastados para guerras sem propósito, deixam fugir o propósito da vida. Ficam as memórias de um tempo em que se foi feliz.

Infelizmente, o que também fica na memória são as gralhas que povoam o livro (erros de concordância ou até opções de tradução que são colocadas lado a lado na página), algo que não é admissível e já vem sendo uma constante na editora, que terá de se questionar acerca do que está a falhar no seu processo de tradução e revisão. Até os Cães é um livro poderosíssimo, e não vale a pena manchar obras deste calibre com descuidos destes.

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.

Artigos Relacionados