Ela não tivesse desobedecido

por Comunidade Cultura e Arte,    26 Janeiro, 2020
Ela não tivesse desobedecido
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Gosto de ir às caixas de comentários dos jornais. É preciso estômago para a falta de humanidade. Mas ‘falta de humanidade’ é um traço típico da humanidade. Não alinho no escape fácil de desumanizar aqueles que desumanizam. E leio, com a devida atenção, com curiosidade, com ocasional espanto. Para ver melhor.

Para ver melhor, gosto de estar ao nível do chão, e nisso distingo-me dos príncipes do pensamento português, que olham para a populaça com a patrícia repugnância de quem só lê Schopenhauer pela manhã porque sabe a rainha Vitória.

Obviamente, as caixas de comentários não reflectem o pensamento das pessoas que lá escrevem, tal e qual. É mais um momento de euforia obscena, encorajados pelo anonimato e deslumbradembriagados pelo poder de verem escritas, refutadas e apoiadas as suas opiniões.

As caixas de comentários não creio mesmo que tragam para a luz ‘o que as pessoas pensam’. São outra coisa: reflectem o que as pessoas pensam quando estão mascaradas, sem medo de retaliação, atiçando o fogo. E não, não são ‘um esgoto’. Essa é linguagem-espelho, e cada vez que um peralvilho intelectual diz isso há uma foca-bebé sensata que fenece.

No fundo, são um escape. Para a cobardia, para a frustração, para incapacidades próprias de lidar com a vida.

De resto, aquelas pessoas não são só aquilo. Também são, como até os carcereiros dos campos de concentração, os torturadores de ofício, os verdugos triviais, bons chefes de família, filhos amantíssimos, por vezes até se comovem com um bom filme romântico.

Não são monstros. Por detrás de alcunhas (ou ‘nicks’) como ‘Tu tam camone’ ou ‘Toureador de boifiquistas’ [SIC – estes novos não se inventam] está gente normal.

E isso é que assusta.

[NOTA: Sobre o caso mais recente, deixo só esta pérola escrita por um indivíduo que usa como imagem de rosto a bandeira de Portugal: «Para a próxima de certeza que vai pensar 2 X antes de se armar em CADELA…!!»]

Este texto foi escrito por Rui Zink.
Rui Zink nasceu em Lisboa em 1961. Escritor e professor no Departamento de Estudos Portugueses na Faculdade da Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, é autor duma obra diversificada e multifacetada.

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