Dos dias felizes que vivi e não poderei recuperar

por Comunidade Cultura e Arte,    2 Outubro, 2018
Dos dias felizes que vivi e não poderei recuperar
Fotografia Luigi Ghirri
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Apertava, na mão fechada, como coisa última, derradeira, a chave da biblioteca. Vou-me embora, vou-me embora, vou-me embora. Pesando repetidamente as vantagens e as desvantagens de deixar para trás o trabalho, a rotina do quiosque, Flamignon tem o cartão de contacto de Vera – a sua patroa – aberto no telefone. Ligo-lhe e explico que me tenho de ir embora. Não poderá contar a história que conhecemos, por, para lá de inverosímil, denunciar a existência do lugar secreto que Agostinho lhe mostrou – lugar de fronteiras diluídas, regresso possível a si, inesperado atalho para casa. Que se decidia. Pode, mais tarde, este ou outro trabalho, disso não duvida. Por isso, Flamignon, apertando a chave na esperança de com ela abrir ferida, que a chave entrasse dentro da sua mão, despede-se.

Durante alguns dias adiou o regresso à biblioteca. Por um lado o quiosque, por outro o receio de se confrontar com uma miragem. Flamignon valorizava tanto a visita que tinham feito à biblioteca, que não queria arriscar um regresso. Como se o mundo tivesse encontrado solução nessa noite, tudo era agora mais ou menos sereno. A mãe estava como já não via há meses, a casa tornara-se habitável. Tudo parecia encontrar um sentido de alguma forma luminoso. Recuperaram o velho gira-discos, e não eram poucas as vezes que aos discos se arrancavam músicas.

Foi uma frase de Louise que resolveu o receio de Flamignon.

– Já li. Podes levar de volta.

Referindo-se ao diário de Georges. O caderno estava, na verdade, arrumado desde o dia 21. Nunca mais Louise tinha olhado para ele depois do dia em que Georges lhe apareceu na missa, caminhou com ela até casa e se despediu. Leve, mais leve que nunca, Louise saía todos os dias de casa para pelo menos um café na Estrela. Não tardaria, alguém havia de meter conversa com ela na esplanada, trocariam contactos, todo um conjunto de novas amizades se havia de construir, porque assim mesmo é a vida.

Terminada a chamada – Vera fora compreensiva, pedia apenas uns dias para arranjar substituição – Flamignon olhou para a chave. Tinha ficado com uma marca vermelha na palma da mão. Cheirou-a: a mão tinha o cheiro azedo do metal. Essa noite, nessa noite mesmo, voltaria ao número 3A da Travessa das Necessidades.

Começaram a cair umas gotas de chuva a meio do caminho até à biblioteca. Com o caderno dentro do casaco, Flamignon apressou o passo, pelo menos enquanto chovesse não haveria ninguém para o ver entrar na casa destruída onde se escondia a biblioteca. A porta estava protegida dos olhares secretos que prédios altos cheios de janelas habitam. Ali, felizmente, não os havia. Hoje não estavam rapazes na paragem de autocarros, nem carros estacionados no passeio. Até o cheiro da rua era diferente. Flamignon tirou do bolso do casaco a mão, com a chave. Abriu a porta. Entrou. O ar húmido, frio, o cheiro a pedra, o som da água a cair lá fora. Procura no chão a portinhola do alçapão. Puxa-a. A luz quente invade o pequeno hall feito ruína. Lá em baixo, apressadamente, José Navarro aparece para perceber quem chegava – se era da casa ou não. Quando reconheceu Flamignon respirou de alívio, sorriu, acenou com a cabeça e afastou-se. Mas era precisamente com ele que o rapaz queria falar. Desceu apressadamente as escadas – exercício escusado, uma vez que Navarro vive ali -, bateu à porta do escritório do bibliotecário. Ele abriu, e Flamignon apresentou-lhe o caderno.

– Venho devolver.

Navarro lança um olhar analítico sobre o que o rapaz segura nas mãos.

– Sabes dar com o lugar?

– Acho que sim…

– Então, é só deixar o livro onde o apanhaste. Precisas de mais alguma coisa?

– Não, acho que não.

– Então, volto ao trabalho, se não te importas.

– O que estás a fazer?

– Mantenho intensa correspondência com um jovem filósofo… Coisa que, enfim, prolongo há muito.

E dizendo isto, meteu-se no compartimento. Flamignon ainda conseguiu entrever, pela abertura da porta que fecha, uma espécie de quarto habitado por torres de papel usado, uma estante com livros em todos os lugares possíveis, um lugar de harmonia ausente. O rapaz voltou-se. Antes de abrir a porta número 3, que sabia dar para a biblioteca, Flamignon abriu por curiosidade a número 2. Uma corrente de ar fresco invade o pequeno compartimento em que o rapaz estava, do outro lado da porta, a luz branca do miradouro de São Pedro de Alcântara num dia de inverno. Nem carros, nem gente. Flamignon cruza a soleira da porta. Caminha neste lugar de vento e luz. Lugar de humidade penetrante. Os sapatos sujos de lama. Senta-se num banco olhando a cidade silenciosa. E aí fica, tentando segurar o momento.

– Você… Então Agostinho sempre o trouxe!

Flamignon reconheceu a voz, olhou com espanto.

– Hélio.

– Como está meu amigo Flamignon?

– Sabe que por causa de si me meti a escrever?

– Evidente… Foi para isso, afinal, que o procurei.

– Hélio, devo dizer-lhe que não compreendo nada disto.

– Vá guardando o que lhe parecer melhor. Um dia saberá o que fazer.

– Vive aqui?

– Ah, Flamignon, pergunta tonta… Mas eu vivo em algum lugar?

Hélio olhava para a paisagem, de pé, junto a Flamignon.

– É lindo, não?

– É, sim. Nunca a tinha visto assim.

– Trouxe bloco de notas, estou a ver.

– Não, é um antigo diário do meu pai. Vinha devolver à biblioteca.

– Mas não se esqueça de apontar, não desperdice a oportunidade. Tome um lápis, meu amigo, lhe ofereço esse. Seu pai não vai se importar se adicionar aos dele alguns dos seus rabiscos. Nos vemos, Flamignon.

– Antes de ir, Hélio, que lugar é este?

– Com certeza Agostinho falou da importância de viver, de experimentar. A este lugar vêm dar todos os corredores da biblioteca. Talvez quando adormeça venha aqui ter também. Não é sempre assim, amigo, para mim esta paisagem é nova, compreende? Este lugar vai sendo. E é uma espécie de sonho.

Dois corvos cruzam a paisagem mesmo em frente ao olhar distraído de Flamignon, contra todas as expectativas sinos tocam, ouve-se, vindo da beira-rio, o som de uma sirene, um sinal sonoro mesmo aqui ao lado na estação de comboios. É hora certa. Hélio sumiu-se. Flamignon abre o caderno do pai, segue o conselho de Hélio. Será interessante, até, que se comparem caligrafias – se caligrafia fosse visível no caderno que por um truque barato se esvaziou. Inscrito na lombada a palavra FLAMIGNON, anunciando que era ele o titular. No banco ao lado o som de um isqueiro que acende, o rapaz olha. Uma mulher sentada. Não se lhe vê a casa porque o fumo nela se concentra. Por mais que que se procure reconhecer as feições, o fumo não sai. Ela murmura. Parece alheia à presença do rapaz, que no fumo consegue imaginar caras que reconhece. Todas as mulheres da sua vida. Todas as mulheres que com mais ou menos importância conheceu. De sua mãe a Marta, a namorada-que-já-não-é e suas mãos macias a encontros sem importância, as flores dos anos de Flamignon escondem-se no fumo. E ele levanta-se, aproxima-se, procura ouvir o segredo da mulher. O braço apoiado no banco, a nuvem de fumo como que barreira estática. E a voz dela, monótona, vazia:

– Dos dias felizes que vivi e não poderei recuperar senão com a vontade de ver o que não tenho tempo para começo a ficar cansada minha querida não fui sempre assim tenho um olhar carinhoso bem sei mas não tenho nas mãos o tempo que não fui a tempo de terei de esperar espero sempre e enquanto espero digo-te que não tenho e estou cansada porque o dia ficou assim há muitos dias que reparei notei constatei que se tenho um homem ao meu lado reparo que estou assim a ficar cansada e minha querida não faças essa cara que eu tenho apesar de tudo e apesar de mim e apesar disto um olhar carinhoso e se olhares bem para o meu rosto reparas que tive uma vida feliz que há a esperança de regressar a uma vida feliz que está só nebulado o dia que se pôs assim reparei há uns tempos que Ele existe e eu troquei com ele uns dedos de conversa os mais desagradáveis dedos da minha vida reparei que Ele me desarma e é violento o confronto com o que não acredito que sou assim mesmo nos dias felizes que vivi e ainda espero viver apesar de tudo e apesar de mim mas se me sento num banco de jardim a fumar e olho para ti posso passar o dia todo a fumar e a olhar para ti porque o tempo parece que pára e nem gente nem carros ousariam algum dia interromper o gesto porque olham para a minha cara e podem ver que fui feliz e poderá regressar a felicidade do dia em que vi nas minhas próprias mãos o corpo o corpo que não era meu que não me pertenceu nunca apesar de naquele momento de felicidade nas minhas mãos ele parecer ser claro que enganada parecia ser meu mas nunca o foi nunca o poderia ter sido porque eu não sabia mas era um corpo diferente que se cruzou comigo num labirinto e tu sabias que os labirintos têm cruzamentos eu não e temo que a partir desse dia que nesse dia me enganei tomei o caminho errado querida queria fazer outra coisa estou cheguei assim sim cheguei a um lugar que não queria e estou só com o meu cigarro apesar de tu estares aqui repara o meu nome é Maria há vinte e nove anos que me chamo Maria e estou aqui a pensar num cruzamento de há tanto tempo num labirinto que não tinha importância afinal o que é uma curva num labirinto a regra claro é regra e eu no labirinto olhava para cima e o céu estrelado era a cúpula do labirinto caverna onde me escondo ocasionalmente com uma garrafa de vinho e um maço de cigarros para pensar.

Depois calou-se. Uma nuvem baixa, neblina matinal corria visível, empurrada pelo vento, à frente deles. A cidade ficou coberta, desaparecida. Junto aos seus pés as folhas de um outono tardio mexiam-se, sobre os ombros dela o cabelo era empurrado pela brisa, o casaco de Flamignon enchia-se de ar. Só o fumo era elemento impossível de mover. O cigarro queimava sem ser consumido, alimentando a nuvem, escondendo a cara da mulher. Flamignon tirou o casaco, colocou-o sobre os ombros dela, que parecia ainda alheia à presença do rapaz. Ele sentou-se e disse:

– Maria.

Ela desviou o olhar, a sua cara frente à dele. Meteu o cigarro na boca invisível, apertou o casaco, recuperou com os dedos o cigarro.

– De novo de novo de todo alheia à tua presença à impossível importante presença olho e vejo os teus olhos como uma nova descoberta querido agarra-me agarra-me querido e não me largues tão cedo que o dia está tão frio tão frio e vieste sem que eu esperasse olhas para mim como se não me reconhecesses mas eu sei que vinhas à minha procura diz-me se já esqueceste aquela que amavas diz-me se não esqueceste não faz mal isso leva tempo terás tempo voltaste a apaixonar-te meu querido diz-me eu apaixonei-me mas foi trágico já sabes é sempre porque apesar de… não se fala destas coisas e um cavalheiro não diz com quem dorme nem quanto ganha porque um cavalheiro deve dormir sozinho e ganhar pouco já se sabe não falamos calamos tudo é melhor calarmo-nos um bocado concordas não concordas tenho andado bem apesar de… só gostava que me abraçasses querido há tanto tempo que não me abraças não me beijes não não me agarres com outra intenção que não o dar calor sim estou bem só tenho frio por isso te peço um abraço e não quero mais apesar de… vieste a pé com certeza vieste a pé e sozinho não há forma de entrar aqui de outra forma adormeceste há quanto tempo chegaste sabes dizer ouviste o sino ainda agora eu ouvi e pensei já já é hora está na altura de dar um rumo à vida sentido a tudo nem gente nem carros ou ao contrário porque enfim não há forma de saber o que vem primeiro e eu pergunto-me onde andarão as pessoas como andarão as pessoas se não há forma de andarem eu própria queria tanto levantar-me caminhar por esta cidade apesar de… já é tarde não é já é tarde e eu tenho de voltar para casa aponta isto aponta e antes de me ir embora deixa-me dizer que tudo isto transcrito descrito repito que não tenho nada a dizer estou assim assim não me queres responder diz alguma coisa meu querido

Flamignon não sabia o que dizer. O cheiro do fumo do cigarro provocava-lhe náuseas, aproveitando o silêncio prolongado da mulher que parecia, apesar de não falar, mover os lábios, Flamignon aproximou a sua da cara dela, penetrou no fumo, queria olhá-la nos olhos, mas o fumo provocava um ardor insuportável. Ele comprimiu as pálpebras, com a ponta do nariz, cego, sentiu a ponta do nariz de Maria, com os seus lábios os lábios dela. Depois afastou-se, também ele agora envolto numa nuvem de fumo. E disse:

– Todos os dias todos os dias estou aqui todos os dias regresso e um dia eu sei que todos os dias encontrarão um sentido talvez nesse dia te consiga ver e tu me dirijas palavras claras e serenas e nesse dia eu sei vamos chamar-nos pelo nome.

Texto de Guilherme Gomes

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