D’O Silêncio dos Outros’: o esquecimento da democracia espanhola

por Diogo Senra Rodeiro,    18 Março, 2021
D’O Silêncio dos Outros’: o esquecimento da democracia espanhola
“O Silêncio dos Outros”, de Almudena Carracedo e Robert Bahar
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O documentário espanhol discorre sobre a “Lei do Esquecimento” de 1977 – a instância legal que veio aplicar amnistia a todos os presos políticos, embora, acima de tudo, aos envolvidos no regime de Franco enquanto agressores. Uma pequeñita concessão que cristaliza a violência intrínseca estatal (ou o poder “místico” que detém), onde nem mesmo vale de muito a libertação de alguns milhares de presos que foram durante anos diminuídos à clausura do seu corpo e da sua cela. Esta lei, que por si abre uma possibilidade de esquecimento, inscreveu-se na psique de todos os espanhóis que não a viveram – que, como por um “acidente”, foi inscrita, ou neste caso, não escrita pelo sistema de educação – numa demonstração, uma vez mais, do poder do Estado e poder legislador que, através da criação legal, consegue incidir sobre o social. Se não nos transmitirem ou omitirem dados históricos, só as vítimas ou filhos de vítimas conhecerão em primeira mão o mal que lhes foi feito; os outros nunca disso se aperceberão, e são muitos que não conhecem o mal que recaiu sobre todos.

Isto leva a que os espanhóis tenham esquecido, porque na maioria foram e são franquistas (como também podemos auto-reconhecer tanto o salazarismo na organização das instituições responsáveis pela ação e relações sociais ou até da dimensão psicopolítica do nosso país), ou não tiveram familiares ou conhecidos que foram mortos por serem opositores, o esquecimento; que tenham esquecido igualmente que apoiantes/participantes da ditadura tenham assumido cargos políticos proeminentes já em “Democracia”, numa transmutação invisível de passagem de testemunho de poder: este, que é o regime propenciador de olvidos, pelo menos fazendo contas com os exemplares disponíveis para análise, quando a única participação política por parte de quem deveria ter mais responsabilidade é feita de 4 em 4 anos e, por assim ser, elegem-se alternativas ao vigente, dentro do próprio sistema, como forma de fazer esquecer a má-decisão de há 4 anos. Esta é a tradição democrática. Pode a tradição tornar-se num conceito pernicioso:

“For tradition puts the past in order, not just chronologically but first of all systematically in that it separates the positive from the negative, the orthodox from the heretical, and which is obligatory and relevant from the mass of irrelevant of merely interesting opinions and data.”, Hannah Arendt, introdução de “Walter Benjamin: 1892-1940” in Illuminations, The Bodley Head, 2015, p. 48.

É igualmente patenteador de rememorações seletivas – só algumas recordações da história do passado serão reavivadas, mais não seja, por agora, sermos todos iguais, logo, o passado haverá de ter sido o mesmo e não há quem tenha sofrido mais do que outros, porque, afinal, somos todos iguais. Qualquer estado tem o direito (divino, natural, originário?) de “cunhar” os seus cidadãos, de lhes ratificar o nome que os pais escolhem ou se quiserem, “legitimar”. Alguns exercem a “cunhagem” burocraticamente, outros forçada ou brutalmente. Tudo está em vias de mudar, como aqui comprovam os autores. Ninguém pode defender que outros sistemas políticos que nos antecederam não tinham já sistemas de informação secretos e a hierarquização social (subscritas pelo poder, para melhor vigilância, continuando a lógica de legitimação) consoante as preferências das elites nacionais – sobretudo económico-financeiras. A inconveniência de ter nascido na Espanha pré-Franco não era um luxo; ora se não quiséssemos aceitar que “El Caudillo” seria o descendente de Deus na Terra, militarmente conquistada por aliados muçulmanos, como, aliás, é mostrado no documentário que a seguir introduzirei, então ter nascido seria uma certeza de (vir a) estar morto. Nas valas comuns espalhadas pelo território ibérico da Espanha, encetadas a partir dos anos 30, não se dão nomes aos mortos, sublinhando a tese derrideana de que “dar o nome é dar a morte”. O Estado faz nascer e morrer.

Numa breve incursão noutro exemplar audiovisual, Jonathan Meades oferece-nos a partir do seu interesse pela arquitetura, um retrato muito sardónico e, em alguns aspetos, inéditos (ou esquecidos) de Franco e como o seu gosto estético marcaram indelevelmente o país. Faz o mesmo para Mussolini e o “tio Joe” Estaline, mas é em Franco Building with Jonathan Meades (BBC Four) que atravessa o século XX à busca das conexões entre os princípios do regime e as estruturas que tentavam humanizar ou trazer à escala humana a generosa influência de “Paquito” enquanto esteve no mais alto cargo da nação. Mesmo que tal significasse uma austeridade que apenas se inspirou em exemplos do passado, não conseguindo inovar em nada, sendo talvez as principais novidades enormíssimos complexos de acolhimento a órfãos – criados pela Guerra Civil e subsequente perseguição policial – que, pela sua escala, pretendia demonstrar aos infelizes (mas, merecidamente, culpados, defendia a Igreja acenando ao Governo) que ainda há quem se preocupe com eles.  Foram estes edifícios e Benidorm. Sim. A ditadura mais pia da Europa criou o primeiro complexo estival de “férias de verão”, porque o turismo nacional não rendia, uma vez que a economia do país também não – ainda não se traficavam muitas armas a partir de solo espanhol, é o que é; inspirada nos “campos de férias” da Alemanha nazi perto das praias gélidas do mar do Norte e do Báltico, encetou-se assim o turismo em massa destinado aos povos mais “civilizados” que também eram democráticos – mas afinal, o que isso importa?

Felizmente, e graças a um grupo de cidadãos que resolveram não esquecer em tempos de “amnésia obrigatória” (Galeano), utilizando algum do espaço democrático e instâncias legais para julgar quem cometeu crimes – contra a humanidade, tal qual Eichmann, mas sem reportagens do The New Yorker sobre a tortura franquista – a eles no particular e a todos os espanhóis no geral. Estes que nunca (se a)perceberão, como atores sociais, que não conseguem estabelecer algum nexo com pessoas que partilham com elas a mesma “estrutura universal”, ou o corpo, se quiserem, vendo-as apenas como um outro descaracterizado, não percecionando o corpo do Outro como o corpo-próprio. Para haver uma relação social, Weber fala-nos de reciprocidade, da referência recíproca que tem de existir entre pelo menos dois indivíduos no sistema social, ao longo do tempo. A democracia, pelo silêncio que instaura sobre o que veio antes, pretere a reciprocidade que é necessária para que haja “efetiva” ou aparente liberdade. A Democracia é o regime que positiva a liberdade, esvaziando-a de qualquer peso ou luta, ou sofrimento coletivos.

Conseguem-se entrever, por muito entraves existirem e muito desconforto causar aos saudosistas, que possam aparecer morosidades “inesperadas” de um processo que, por não ser legalmente possível lembrar, teve de exercer justiça a partir da Argentina. A língua contra a lei, quem diria. Só no caso extremamente desafortunado do imperialismo na América-Latina é que parecem brotar exemplos da generosidade de elite, não obstante que esse mesmo país tenha tanto sofrido; na década de 20, era um dos países no topo do países mais ricos do mundo e que após uma reforma do Fundo Monetário Internacional já sofreu mais intervenções nos últimos dez anos do que no total da existência das operações interventivas do mesmo, a partir dos anos 70. lá está. A sua mera inclusão (da Argentina) no G20 dá-se pelo facto de, quer o Ministro da Economia, quer Larry Summers, à época senior do U.S. Treasury Department de Clinton, terem andado em Harvard. O convite por si surgiu naturalmente, como contou o professor da LSE Robert Wade, numa conferência na SOAS University em Londres. O sistema internacional está em constante mudança, mas, ainda assim, é raro o que acontece naquele continente multicolor. Mas divago, porque importa ressalvar que este é um processo a la Sófocles, uma espécie de Antígona em prol da comunidade denegrida e desapropriada – há filhos que só querem saber onde se encontra o cadáver dos seus pais, outros querem enterrá-los junto dos seus antepassados.

A dor de alguns, que é totalmente ignorada pelos outros, é, neste caso, deparada com o silêncio deles. Em democracia, fala-se, muitas vezes, da maioria silenciosa e poucas vezes na maioria silenciada. São vários os meios do poder e as suas imunidades que tornam tão impotente esta reivindicação preconizada por membros da comunidade, que sentiram, ainda em primeira mão, o horror da tortura; de nada vale para as ambições da sua chamada à atenção as injustiças acarretadas pelo Olvido. Quando esta geração se for, o esquecimento absoluto imperará e o sofrimento que sentiram só eles – como outros, inconsciente ou indiretamente – desaparecerá como o Sol um dia há-de desaparecer.

A memória, como o valor de uso a si associado, só será mantido, como sempre, por aqueles que tenham uma vontade de partilhar a (in)sensibilidade da dor, tenham sofrido ou não, sem que importem as fronteiras dos mapas nem do tempo – é esta a generosidade da Argentina e tantos outros exemplos. Será por isso que é a partir do continente sul-americano que foi dizimado, humana e terrenamente, que existe uma maior solidariedade? Não sabemos. É que, ao partilharmos contiguamente, talvez até sanguinamente (para que, enfaticamente, percebamos qual a substância real de que aqui falamos, para não ignorarmos), o território que, do “lado de lá”, é já não o nosso território, optemos por não nos esquecer.

Os espanhóis que não o querem fazer ignoram só que partilhamos todos uma ambição mais justa de democracia, que não expulse o Outro que, por não entendermos o corpo deste como o corpo-próprio, perdemos uma possibilidade de reconciliação. Não falo de cores ou etnias. (Que cor ou etnia é diversa em Espanha, ou noutros casos em que tal não se evidencie?). Nós não somos o Outro, mas também o somos. A Democracia por vir tem de ter sempre o Outro nos cálculos não-económicos e não-militares de qualquer organização social, dando primazia a outras formas de inclusão que não gerem alienação ou conflito inter-individual. Perante um Estado que é o guardião-mor da decisão de quem pode ou não ser incluído numa organização social, o seu poder exerce-se por uma ação que delineia linhas divisórias, reminiscentes de W. E. B. Du Bois – “The problem of the twentieth century is the problem of the color-line” (“The Souls of Black Folk”, 1903) – e a “consciência negra” que ele registou no debute do século passado bem como da história da segregação racial por bairros nos EUA que acarretou a construção de cidades fora das cidades, como conta o historiador Richard Rothstein em “The Color of Law”, que se sucedeu já no século XX, no pós 2ª Guerra Mundial, numa parceria estabelecida por governos federais e empresas de desenvolvimento imobiliário. Aqui, a discriminação ostracizante e necrófila tem um álibi – a cor de pele – mas, e na Espanha, ou noutros body politic, que fazem com que a Democracia seja o inferno da maioria e o o céu de poucos? Não digo, com isto, que qualquer diferença possa ser (re-)utilizada como sentenciador de distinções.

“The ideologies of rulers are by their nature more changeable than the ideas of the oppressed. For not only must they, like the ideas of the latter, adapt each time to the situation of social conflict, but they must glorify that situation as fundamentally harmonious.”, Walter Benjamin, The Arcades Project, p. 364.

“Nem um lance de dados jamais abolirá o azar.”, escreveu o autor francês Stéphane Mallarmé. O que implica denunciar o ritmo com o qual a história pode mudar de atores e relações (como hierarquias) sociais. Algo sim que se esquecem alguns apologistas de rememorações gloriosas de um passado que não existiu. Que existiu só para quem sofreu ou pereceu. Ou, como em certos casos, a aparência muda para tudo ser o mesmo. Se partilhássemos alguma percipiência relativa a este caso ou a outros casos isto é, “se lhes acontecesse a eles”, de injustiças perenes e não-legais, isto é, alegais, por não estarem propositadamente inscritas na lei como passíveis de combater ou eliminar, significaria que, indiretamente, estivemos todos presos na sede da DGS (Direção-Geral de Segurança) na Puerta del Sol ou nas cadeias da PIDE, no território continental, tal como africano. Ou não querem fazê-lo porque o esquecimento é paliativo e a única dor que não sentem, mas querem fugir de, é a dor que os faria pensar que todos esses tipos de regime – os democráticos – foram e são animalescamente iguais a todos os movimentos ditatoriais do século XX e seus modelos inspiradores, os impérios do século XIX e XX.    

“Cada vez se atribui menos espaço a conflitos e controvérsias suscetíveis de conduzir a confrontos dolorosos. A algofobia também abrange a política. A coação da conformidade e a pressão do consenso estão a aumentar. A política instala-se numa zona paliativa e perde toda a vitalidade. A ‘falta de alternativas’ é um analgésico político. O ‘centro’ difuso tem um efeito paliativo. Em vez de se discutir e lutar por melhores argumentos, cede-se à coação do sistema. (…)’ ‘A passividade do sofrimento não tem lugar na sociedade ativa dominada pela capacidade (Konnen em alemão/Can em inglês). Hoje, a dor é despojada de qualquer possibilidade de expressão, estando condenada ao silêncio. A sociedade paliativa não permite que se vivifique e verbalize a dor, transformando-a numa paixão.’”, Byung-Chul Han in A Sociedade Paliativa, Relógio d’Água, 2020, p. 11-13.

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