Devemos ver, partilhar imagens corrosivas e normalizar a anti-humanidade?

por Isabel Sá,    6 Dezembro, 2016
Devemos ver, partilhar imagens corrosivas e normalizar a anti-humanidade?
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Este artigo é uma reflexão ao texto ‘Should We Look at Corrosive Images?‘, publicado em 2011 pelo Design Observer.

Numa era definitivamente marcada pela ameaça terrorista e por uma política de medo, é de importância acentuada compreender o papel das imagens corrosivas, incutir responsabilidade a quem as propaga e proteger o nosso papel enquanto intérpretes desses hiperfluxo despolitizado de imagens. Faz um ano que me deparei com o trabalho anti-guerra de Ernst Friedrich, War against war (1924), uma colectânea de momentos atrozes e bárbarose  corpos masculinos e femininos mutilados numa massa de carne muitas vezes não identificável. O álbum de mais 180 fotografias provocou-me logo vómitos e um sentimento profano. De uma consciencialização descontextualizada, do equivalente a um estalo momentâneo, um momento de agitação sem grande direccionamento. O que é certo é que isto existe. Devemos proteger-nos de tais reproduções para não nos corrompermos? Não trarão estas visualizações imagens demasiado dolorosas? Estará a tomar-se consciência ou a normalizar a anti-humanidade da guerra habituando-se ao sanguinário?

Notou-se um ênfase no argumento da consciencialização. Aqueles que experienciam a guerra não têm necessidade de propaganda referente à mesma. Estes observam os seus efeitos directamente. Mais do que verem-nos, sentem-nos, numa sinestesia que imagino existir nesse mundo paralelo da guerra fascinante mas repugnante dos últimos dias da humanidade. O argumento é que as fotografias seriam uma forma de trazer a realidade, embora de forma insípida, a um grupo privilegiado como o nosso, sem consciência da miséria exterior.

A compaixão tem limite. A representação de pessoas anónimas e genéricas, sem possuir qualquer contextualização, é perigosa. Aqui revoltamo-nos só face à arbitrariedade do mal e não quanto às complexidades intrínsecas da guerra, que não podem obviamente ser compreendidas recorrendo ao maniqueísmo. A não compreensão dos factores, por trás da morte de alguém, podem reiterar o contrário que um repúdio pela violência, chegando a uma call to action de vingança pura. O horror vivido não cancela a violência. Quando se utiliza uma máquina fotográfica, apropria-se um momento, manipula-se. Fotografar é excluir. Não existe uma imagem pura de constrangimentos, de opiniões, de pulsões do fotógrafo. O realismo promete-nos uma descrição pura e simples, iludindo-se da sua rapidez. Não será surpreendente descobrir que dezenas, senão centenas, destas imagens icónicas de guerra foram manipuladas (1). Mesmo que não o fossem, o discricionário, por muito imparcial que pudesse ser, também é facilmente apropriável, na sua inocuidade. Sobrepõem-se imagens, informação, excesso de estímulos, legendas falsas. Não será detrimental?

De tamanho fluxo gerou-se apatia e o valor de choque perdeu-se, criando-se uma mera agitação. Confrontados com a implosão de um homem ao pequeno-almoço, desfrutamos plenamente da nossa refeição. A sobreexposição a estas imagens de violência não nos tem tornado mais conscientes, muito menos tem parado as diferentes guerras. Imagens sem contexto não produzem mudança. Há um estímulo que se dissipa, sem saber para onde ser redireccionado. O político é despolitizado. No reverso da moeda, o sensacionalismo cresce. Atacando novamente o realismo, quando este se torna banal, o real não é o suficiente para nos mobilizar. Precisa de ser melhorado e, como tal, actuado. Mais convincentemente que o verdadeiro. Note-se que não deveria sequer de ser necessário inventar nada. Existe em cada pessoa fragmento bastante para um livro. O problema é realmente a observação da lente ser tão defraudada quanto a nossa. O problema é o horror ser mercantil.

Diante de tudo isto, o objectivo deste texto não era retirar respostas nem construir um compasso moral para estas situações. Continuarão a prevalecer alguns pontos de vista antagónicos. Confirmando as proposições de Rick Poynor, retiram-se pessoalmente dois pontos chave para a propagação destas imagens, moderação e contextualização. Nos retratos de violência, há uma pessoa. Não importará o seu NIB mas importará para quem ela é mãe, de quem ela é filho/a. Quanto à qualidade esteticamente arrebatadora do nosso e do sangue dos outros, essa devemos utilizar serenamente, respeitosamente.

O que é certo é que as engrenagens do estranho mundo paralelo da guerra continuarão a rodar, mesmo com o trabalho de Käthe Kollwitz ou Ernst Friedrich.

(1) Não se desenvolve mais a questão da fotografia da morte e do horror enquanto mercado porque se começa a distanciar do foco principal do texto.

Imagem de artigo: The Disasters of War by Francisco Goya, nº36, Francisco Goya

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