“Detroit: Become Human”: aquilo que sentimos define aquilo que somos?

por João Miguel Fernandes,    8 Maio, 2020
“Detroit: Become Human”: aquilo que sentimos define aquilo que somos?
Detroit: Become Human
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Quando Heavy Rain foi lançado em 2010 para a Playstation 3 a crítica rendeu-se a seus pés. A mistura de jogo de aventura com acção e mistério, com especial ênfase nas grandes consequências das nossas decisões, valeu-lhe um lugar no top dos melhores jogos dessa consola e uma versão para a Playstation 4. Depois da Quantic Dream revolucionar com o lançamento de Nomad Soul e Fahrenheit, principalmente através da possibilidade de escolhermos vários percursos para os nossos protagonistas, esta empresa francesa que revolucionou o género de jogo de aventuras volta a elevar a fasquia.

Em 2013 é lançado Beyond: Two Souls, uma nova aposta arriscada da Quantic Dream, agora com actores de renome (Ellen Page e Willem Dafoe). Verifica-se novamente uma inovação a nível de jogabilidade, algo que foi recebido com críticas mais mistas. Os pontos fortes dos jogos da Quantic Dream são a narrativa e as personagens. Em qualquer jogo somos sugados para as narrativas criativas e envolventes, e personagens cativantes e reais. Heavy Rain apostou num cruzamento de personagens e Beyond: Two Souls arriscou ao oferecer-nos apenas Ellen Page. Mas ambos resultaram à sua maneira. O maior problema continua a ser o mundo em torno dos protagonistas. É incrível experienciar as inovações a nível de jogabilidade que são introduzidas jogo após jogo, mas a limitação a nível de exploração é algo frustrante, principalmente quando os mundos são apelativos, como no caso de Detroit: Become Human, o jogo mais recente da empresa.

Detroit: Become Human

A nível de jogabilidade estamos perante algo idêntico a Heavy Rain. Podemos mover-nos, seleccionar objectos ou pequenas interacções, explorar muito pouco dos cenários e premir botões em momentos chave, um pouco ao estilo dos jogos de acção do momento como Uncharted ou Tomb Raider. A grande diferença reside no facto de que quando não estamos num momento de acção ou de decisão, pouco há a fazer que tenha grande interesse.

O mundo de Detroit: Become Human é bastante cativante, um belo trabalho a nível de conceito e design que deixa os nossos olhos arregalados e a querer ver mais e mais. O problema é que este mundo não dá para explorar. Raramente existem momentos em que podemos ir por três ruas diferentes e interagir com outros elementos ou personagens, e quando existem têm pouco impacto. Sem dúvida que este jogo seria algo inacreditavelmente belo se fosse possível a opção de explorar livremente uma cidade, mas com essa liberdade iríamos provavelmente perder a imersão narrativa que a Quantic Dream tanto pretende.

Detroit: Become Human

Neste videojogo vivemos três histórias ao mesmo tempo. Em todas elas somos confrontados com decisões e escolhas. Este foi provavelmente o jogo da Quantic Dream onde mais me senti a questionar as minhas escolhas. Em Beyond: Two Souls, o facto de só jogarmos com uma personagem faz-nos seguir um caminho mais ou menos lógico. Em Heavy Rain as decisões têm muito a ver com lógica ou confronto de bem/mal, mas em Detroit: Become Human as questões são sociais e de identidade, algo muito mais complexo. Como jogador tentei concentrar-me em cada um dos personagens e nas suas histórias e decidir em prol do que eu acho que cada um acredita. O problema é quando somos confrontados com situações como deixar um andróide morrer ou um ser humano. Sendo nós um andróide enquanto personagens, mas um humano na vida real, qual é a decisão mais acertada? Obviamente que tudo depende do contexto , mas sem reparar dei por mim a decidir por caminhos que nunca tinha pensado anteriormente e isso deixou-me a pensar noutras questões.

Embora a motivação da maioria dos personagens seja a felicidade (pessoal ou generalizada), o grande impulsionador da narrativa é o debate andróide versus humano. Os andróides querem deixar de ser escravos dos seres humanos e cabe-nos a nós decidir se queremos demonstrar isso de forma violenta ou pacífica. Dei por mim por vezes a decidir de forma contrária ao que acredito, apenas porque “é só um videojogo”, mas a sentir-me depois culpado por essas decisões, porque se tudo isto fosse real eu não decidiria provavelmente assim. Ao longo das mais de 20 horas de jogo dei por mim a achar que deveria decidir de uma determinada forma, mas a mudar completamente essa lógica diversas vezes.

A nível de personagens e história este é sem dúvida o jogo mais forte da Quantic Dream. É o que coloca mais questões e aquele onde sentimos mais o peso das nossas decisões. A empresa atingiu com este videojogo um novo nível ao fazer-nos sentir como os personagens e ao mesmo tempo termos o poder de um “Deus”, poder esse que é tanto uma maldição como um beneficio. Com um grande poder vem uma responsabilidade ainda maior, e em Detroit: Become Human sentimos todo o peso dessa responsabilidade.

Detroit: Become Human

Contudo, a nível de exploração o jogo fracassa. Em grande parte deve-se ao facto de quererem limitar o raio de acção e focarem-se apenas no momento, nas decisões e não tanto na exploração. Mas é impossível não sentir o desejo de explorar mais de Detroit, ainda mais com um nível de design tão elevado como o que nos é oferecido no jogo. Quando a Quantic Dream conseguir criar um jogo em mundo mais aberto e com esta mesma capacidade de imersão narrativa então estaremos possivelmente um dos melhores jogos de sempre.

A grande questão de Detroit: Become Human é se aquilo que sentimos define aquilo que somos? Este assunto já foi explorado inúmeras vezes em filmes e livros, mas pela primeira vez senti que foi explorado de uma forma mais humana e real do que filosófica. Existem diversos momentos ao longo do jogo onde vários andróides dizem (ou existe essa possibilidade) que estão vivos. O que significa estar vivo? Basta sentirmos que estamos vivos? O que define aquilo que somos? O sentimento ou as leis escritas por outras pessoas há não sei quantos anos atrás?

Este constante debate fez-me sentir estar em confronto comigo mesmo. Dei por mim a defender os andróides, mas a tentar minimizar o impacto das minhas decisões nos seres humanos. Num mundo em sociedade seguimos leis e regras que regem todas as nossas acções e liberdades. Há uma constante necessidade de atribuir um nome ou uma definição a tudo o que existe, mas por vezes os sentimentos são demasiado difíceis de colocar numa gaveta.

Cheguei ao fim do jogo com grande amargura. Por um lado consegui que cada um dos três personagens atingisse aquilo que queria, mas tive que sacrificar tanto durante esse caminho que foi impossível sentir-me feliz. Será que isto simboliza a vida? Detroit: Become Human coloca-nos cara a cara com a nossa própria vida e o poder das decisões, com o poder de definir tudo e com uma dura verdade: é impossível trazer felicidade a toda a gente, por mais que achemos que sim, ou a nós próprios em todas as decisões.

Aquilo que sentimos define aquilo que somos? Para nós talvez, mas para os outros não, porque ninguém sente e pensa como nós próprios, somos todos únicos e é isso que define “estar vivo”. E desta maneira, andróides e humanos são iguais e ambos estão vivos, cada um à sua maneira.

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