Democracia Europeia: uma ideia cujo tempo nunca virá?

por Diogo Senra Rodeiro,    2 Abril, 2018
Democracia Europeia: uma ideia cujo tempo nunca virá?
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Nas vésperas da Conferência Ulisses, a decorrer no Centro Cultural de Belém nos dias 7 e 8 de abril, que irá versar e discutir sobre o status quo da Democracia no continente europeu, conjeturar alguns pontos pareceu ser uma boa ideia, pontos que serão fulcrais no impedimento duma ideia que devia ter lugar, mas à qual não parece ser dada espaço – muito menos atenção. Ora espaço, ora tempo. Um tempo este onde o populismo se galvaniza e, contudo, preocupa poucos.

Quiçá algo melhor do que uma ideia que chegou, só mesmo uma que não chegou, que está por vir. Somente se teimarmos em olhar o Mundo como um binómio – nem sempre como Hegel, e nos últimos tempos tão pouco Hegeliano. Nenhuma síntese ainda chegou a nós, que vivemos neste Projeto Europeu.

O conhecimento produzido no Velho Continente, do qual Lisboa, Coimbra, e também o Porto não se imiscuem, com toda a naturalidade de ter tido algo a dizer, seria até ao ponto cronológico em que nos encontramos, sobejamente suficiente para “salvar a Humanidade” – e neste caso a Europa -, como o nosso querido Almada, tão igual a ele próprio, vaticinou sobre as frases (e os pensamentos) antes dele produzidas.

Vivemos num período a que Wolfgang Streeck tão habilmente apelida de lasting interregnum, onde a geração de um novo paradigma não consegue ser elaborado, nem pelos mais hábeis seres pensantes que eventualmente deveriam ocupar um lugar em Bruxelas, Estrasburgo ou Frankfurt. Nem mesmo a “Ideia da Europa” de Steiner pode ser vislumbrada, afogada numa neblina difícil de descortinar, ou de encontrar. Nem mesmo Marx, que numa das suas frases mais rabínicas disse “O Homem só faz perguntas, quando sabe que está preparado para dar as respostas”, acertou; mas que nobre erro!

É então que compartilhamos um continente tresmalhado atualmente a 28, em breve a 27, em que nos encontramos. Uma ideia que na sua génese teve por detrás de si mesma um objetivo nobilíssimo, como o da paz, o de encontrar a estabilidade que na guerra por muito que se teime, mas que não consegue ser atingido. Por muitas vezes também esquecemos que foi graças a todas essas guerras que se passaram neste próprio território que permitiram o “desenvolvimento” europeu se desse.

A acalmia que era pedida pelos povos, governos e pela comunidade internacional ficou então consubstanciada primeiro em Paris e só depois em Roma, dois lugares simbólicos do Velho Continente. O simbolismo dos Tratados não iguala a herança histórica dos locais que em tempos distintos marcaram de forma indelével o desenrolar do património comum de um pedaço de terra tão distinto, embora ainda assim, contivessem em si a semente de algo que prometia um bom augúrio.  

Antes de chegarmos à Lure of Technocracy de que nos fala Jurgen Habermas, o último sobrevivente da escola de Frankfurt, que nos alerta tão habilmente para a teia convoluta que podemos considerar que começou a tomar os contornos em 1986 (ou 1983), aquando da assinatura do Ato Único Europeu, que veio lançar as bases e metas para alcançar o Mercado Interno, encetado em Maastricht em 1992.

Nem mesmo os ímpetos genuínos, e até admiráveis, de personalidades como Guy Verhofstadt parecem conseguir alertar a quem não de direito, mas a quem detém o poder (divinamente concedido?), da importância de alterar a natureza inerte do Parlamento Europeu, a “necessidade” de unanimidade de voto entre os países, a política exterior, entre outras parece suficiente. (O projeto de Defesa Europeia é outra ideia sem cabimento para a atualidade tensa que é vivida; muito menos deveria ser ouvido Kenneth Waltz tão depois de ter defendido o que defendeu).

Podemos assim pensar que, dados os contornos do Desconhecido iniciais, os fundadores da que hoje se chama União Europeia não tinham a extensão de pensamento que os tecnocratas que vêm desde a década de oitenta detêm. Ou será que as ideias de hoje não poderiam ter uma maior resolução dada a passagem do fantasma da segunda Grande Guerra? A resposta, porém, pode estar na inocuidade das ideias, ou melhor, nos objetivos das mesmas. Mas é preciso uma terceira para que novamente se tracem objetivos simples com um âmbito geral e efetivo?

Ao invés, parece que o espaço que hoje tão orgulhosamente é chamado de “maior mercado mundial” se ficou por isso mesmo, um mercado. E um mercado que não só está aberto, mas que se deixa levar pelas ideias dominantes na política económica ao nível mundial. Previamente escudada do que vinha de fora e sempre com um brio próprio, a Europa sempre foi um lugar singular no mundo que está lenta e dolorosamente (para os que vivem nela como também para os que assistem a essa decadência) a definhar. Podia até ser só ideologicamente ou academicamente, em face da pujança oriental que a Índia e a China evocam, ou em relação aos Estados Unidos da América –que nunca estará mais à deriva que nós porque são o Hegemon e nem um Presidente-palhaço os derrubam -, o pior é mesmo quando o bem-estar dos seus cidadãos é afetado. “Afinal o que importa não é haver fome, porque assim como assim ainda há muita gente que come”, Mário Cesariny já nos dizia desde a sua Pastelaria.

Mesmo após as transferências sociais que são feitas do Norte para o Sul, ou se quisermos até dada a extensão da agora mui nobre e extensa União Europeia, do Ocidente para o Oriente, a União como um todo não se consegue exceder. Exceder no sentido de providenciar as mesmas condições económicas para todos, algo que numa área monetária ótima deveria acontecer, como vários estudos desde Mundell até Eichengreen nos contam.

Algo sendo assim levou os tecnocratas a optarem por um caminho que, ao contrário do resto do globo, foi única e simplesmente concordante com este e caminhou para a demolição consentida (o pior até é isto) do Estado-Nação, em face dos Mercados Financeiros. O Estado deixou de ser o ideal-capitalista – ideelle Gesamtkapitalisten – sendo que não existe um paradigma económico que nos permita sair deste, quando no período pré-Maastricht havia uma alternativa económica, legítima e nacional aos problemas que um país enfrentasse macroeconomicamente.

Por isso é possível perguntar se, ao invés de ter sido seguida a ideia neoclássica em termos económicos de que o mercado pode atingir um equilíbrio perfeito, e em termos filosóficos (filosóficos?) de que a prosperidade traz paz, porque não a ocorrência de uma outra Ideia? A ideia informada de que, sem União Política ou Fiscal para elaborar um orçamento conjunto ou ajustamentos fiscais pudesse ser possível ter uma União verdadeira e que não favorecesse apenas alguns. Digo informada pois a dominância excessiva do curriculum económico na academia foi movida por essa mesma misologia fabricada pela escola neoclássica, que depois veio a ganhar outra dimensão com a corrente neoliberal da qual não nos conseguimos afastar; talvez pudéssemos se a anti-bolha, ou deverei dizer Quantitative Easing, não fosse a única ideia que surgiu para a economia europeia no momento pós-crise de 2007-2009. As inter-relações políticas e a “crise de legitimação” do Estado (outra vez Habermas) parecem ser mais importantes e ideias mais centrais no pensamento Bruxeleano do que a promoção de crescimento real – friso, real – ao nível da totalidade dos membros.

Tudo isto se ignorarmos claro está, a amálgama identitária que é este nosso Continente, que por razões tão simples de ser tão diferente de uma fronteira para a outra, torna a Ideia deste projeto uma ideia inoportuna, e que ou é repensada de uma forma profunda (algo que só em caso de afetar os principais decisores ou fabricadores de “ideias” com i pequeno desta União acontece ou no caso já mencionado de um terceiro conflito mundial) ou então é melhor voltar para Paris – seria bonito pensar que a Ideia pudesse voltar ao encontro de Vitor Hugo apesar de originalmente não ser sua.

Pode ser triste para alguns que a ideia de Sir Winston nunca venha a tornar-se numa realidade, mas os Estados Unidos da Europa teriam de ser uma realidade em que a aceitação racial e cultural fosse uma realidade, algo que para o mesmo seria difícil quiçá de aceitar com agrado. O sentimento é partilhado por aqueles que se deparam com uma Esquerda “coxa”, colocada num espartilho, após o facto de ter conquistado um plano central nas sociedades europeias dada a sua advocação de ideias promotoras do bem-estar social (neste caso Ideias com I grande, comme il faut) mas que necessita de viver num mundo cujo paradigma económico tem de ser o vigente, logo perde força. Uma vez mais, e no local da Terra mais cicatrizado pela Direita do parco espectro político que temos desde a Revolução Francesa, ela parece ganhar uma nova vida.

O problema não está em não comparecer nas urnas de voto, porque se votar mudasse alguma coisa até mesmo o voto já teria sido abolido, disse Eduardo Galeano, nem está na falta de participação cívica dos NEET (jovens “not in education, employment, or training”) da Europa, está sim em conseguir superar a Anomia Social para a qual Durkheim nos alertou. Anomia que é muito provavelmente proveniente de Bruxelas, Berlim, Frankfurt ou de qualquer outro centro que dita o que fazer a seguir na Europa. Tudo isto inclui um não-Futuro com Desigualdades, Desemprego e fraco crescimento Económico. Como se a resposta não estivesse nos custos unitários de trabalho, nos fluxos (ingovernáveis) de capital ou no ilegal benefício fiscal que alguns países possuem, em detrimento de outros. O “consentimento manufaturado” (ideia de Edward Bernays, sobrinho de Freud) deve ter apenas lugar no outro lado do Atlântico, não deste. E não deverá ser o TTIP (Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento), nem muito menos esse consentimento que unirá de novo os continentes – nem os povos europeus. As causas para o atual estado da União Europeia são possivelmente facilmente atribuídas, só necessitam de ser dadas a conhecer.

Essa talvez pudesse ser uma Ideia com menos alcance certamente, mas sem qualquer dúvida de maior justiça. Para que saibam os jovens, os seres-humanos de meia idade, o porquê de não terem emprego ou no caso de terem, não conseguirem arrendar uma casa onde querem ou de conseguirem fazer uma escolha que consoante a sua liberdade fosse permitida; para que saibam que o movimento livre de mercadorias, capital e pessoas afinal não é tão livre assim quanto Schengen apregoa; que acima de tudo a invasão emigrante que sofremos não é porque a Europa, até hoje (ou ontem), era um lugar seguro onde a prosperidade como a estabilidade eram valores que figuravam na tábua dos mandamentos europeus; que afinal o “Subdesenvolvimento” não é um estágio do Desenvolvimento, mas o seu oposto – para haver Desenvolvimento algures é preciso que haja Subdesenvolvimento noutro lugar. E que assim é a União Europeia, que Democracia e Capitalismo não são irmãos como vimos a ouvir desde que ganhamos uma “noção mínima” que a escolaridade nos proporciona.

É verdade que na crítica não pode (ou nem deve) haver espaço para a ingratidão e não é esse o exercício ao qual me propus no discorrer do ensaio. Nasci na União Europeia mas não me sinto filho dela. O que é aflitivo dá-se quando se conhece e se olha para um projeto que, no seu âmago e génese é bom como é prometedor, mas na sua aplicação prática não consegue consubstanciar nada mais do que a já conhecida vileza intrínseca, diz-nos Hobbes, do Humano. Inversamente, tendo a crer com ingenuidade que provenho de uma raíz hereditária Voltaireana mas não-genealógica que acredita no poder infindável da Razão Humana, e por isso mesmo, caso a ideia que está no porvir for uma ideia verdadeira e justa, é uma Ideia cujo tempo merece chegar.  

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