De que vale o tempo

por Nuno Miguel Guedes,    8 Dezembro, 2019
De que vale o tempo
“Bookends”, disco de Paul Simon e Art Garfunkel
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De que vale o tempo, de que nos valerá essa entidade criadora e criatura inventada por nós, mesmo que a tentativa de a domesticar tenha falhado? “Time must have a stop”, diz um personagem de Shakespeare no seu desespero lúcido. Mas não há paragens, só passos irreversíveis. E por vezes, quando temos sorte, há tempos que se cruzam e que fazem com que compreendamos o que antes não seria possível porque pura e simplesmente ainda não tínhamos tempo suficiente dentro de nós.

Para bem do leitor tentarei explicar o parágrafo anterior, entre o místico e o críptico, com o que sempre norteia estas crónicas: o quotidiano, princípio e fim de tudo. Melhor ainda, recorrendo à música popular, arte próxima, palpável e que medra dentro dos dias. Pela audição de dois discos três tempos encontraram-se: o meu e o dos dois autores e compositores. O primeiro disco chama-se Thank You For The Dance, legado póstumo mas desejado de Leonard Cohen. Prossegue o caminho de You Wanted It Darker, o derradeiro disco que o canadiano editou em vida (viria a morrer dezanove dias depois do disco ver a luz). É mais um acerto de contas com a vida e sobretudo com a morte mas ainda mais frágil. As canções de Thank You For The Dance foram compostas por vários músicos a partir das gravações da voz de Cohen, já muito debilitado e em reclusão domiciliária. São pequenas pérolas negras, algumas de alegria, outras de raiva, outras ainda de resignação irónica de alguém que vê o seu tempo terminar e está preparado para isso. No extraordinário um minuto e doze segundos que demora a canção The Goal, ele resume o seu estado e o que fica: “No one to follow /And nothing to teach/ Except that the goal /Falls short of the reach”. A visão do finito – que de resto sempre passeou pela obra de Cohen – ganha aqui o último acabamento de uma catedral de beleza.

Mas para o tempo de Cohen já estava preparado. O espanto veio com a descoberta de Bookends, disco de Paul Simon e Art Garfunkel, editado em 1968. Sendo o que vos escreve admirador de Paul Simon, nunca tinha ouvido este disco como deve ser. Por misteriosas razões ( provavelmente porque agora era o tempo certo, quando o posso compreender na plenitude, “no meio do caminho da nossa vida”, para citar o padroeiro desta coluna) peguei nele. E perdoai a recensão tardia mas tenho que a fazer: é um disco extraordinário, conceptual. Os temas são a velhice, a mortalidade, o tempo. Mais extraordinário ainda quando se sabe que foi escrito por um jovem de vinte e tal anos – num tempo de inícios. O tempo está por toda a parte: Overs, por exemplo, é uma canção de separação que me fez lembrar do célebre sermão de António Vieira sobre o tempo e o amor: “O mesmo amar é causa de não amar, e o ter amado muito, de amar menos.” A colagem de vozes de velhos (Voices Of Old People, feita por Art Garfunkel) é ainda mais explícita sobre o que se pode ver no final desta nossa corrida. Old Friends e Bookends são elegias melancólicas ao que passou e ao que está inexoravelmente por passar.

A parte conceptual do disco dura apenas um lado. Depois seguem-se canções de temas mais ou menos sortidos. Ou não: Hazy Shade Of Winter, que conta com um dos melhores riffs que conheço, abre com as palavras “Time time time, see what’s become of me/ While I looked around for my possibilities” – e não é reconfortante que pelo meio o narrador afirme “Hang on to your hopes, my friend/ That’s an easy thing to say/But if your hopes should pass away/Simply pretend/ that you can build them again”.

Não é por acaso que o nosso olhar não está preparado para assimilar o muito que nos é dado quando nos é dado pela primeira vez. É preciso que a vida nos atravesse e atravesse as coisas. Que haja tempo, e que esse tempo que não irá parar possa por momentos demorar-se em nós. Do tempo vem o espanto, o entendimento e a desilusão. Todos são preciosos. Até porque como escreveu um ainda mais jovem Paul Simon (a lembrar Beckett) “Hello, hello, hello, hello/ Goodbye, goodbye, goodbye, goodbye/That’s all there is /And the leaves that are green turn to brown.”

Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.

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