Das perguntas que se vão

por Nuno Miguel Guedes,    27 Fevereiro, 2019
Das perguntas que se vão
Sylvia Plath e o seu marido Ted Hughes, em 1958 / Fotografia de James Coyne – Black Star
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À medida que o tempo avança existem perguntas que ficam para trás, soterradas sob o escombro de modos e olhares em permanente mudança. E agora que já consegui ganhar o prémio de Melhor Truísmo do Dia, deixem-me que vos ofereça esta história.

Há perguntas que se vão, que se despedem ou se desvanecem sem sequer darmos por isso. Lembro-me desta: quantos de nós, jovens ou com mais vida, ainda perguntam: “Vamos hoje dançar?”. E aqui dançar não se refere a uma ida a uma discoteca para efectuar movimentos espasmódicos, individuais e aleatórios que mais ou menos seguem um padrão rítmico; para isso inventou-se um eufemismo fracote que é “Vamos hoje sair?” e que contempla um número mais abrangente de actividades. Não: dançar, juntos e agarrados, o simples acto raro e festivo que significava “ir dançar” modificou-se com a sua banalização e a chegada de novos gostos musicais que não requerem grande aprendizagem de movimentos para exibição na pista e ao parceiro. E isso está certo porque simplesmente não há um valor oposto, moral ou ético, que se possa colocar (estético talvez, mas isso sou eu que tenho mau feitio).

Era nesta e noutras perguntas extintas em que pensava sob um calor primaveril (vamos, por uma vez, fazer um brinde ao aquecimento global), na esplanada do costume. E mais uma vez surgiu a menina Marina – a sábia do bairro, já vos disse –, que, reparando no livro que estava pousado na minha mesa, disse: “O senhor Nuno lê muito. O que anda a ler agora?”.

Magnífica, proverbial, divina menina Marina! Ofereceu-me, ali e então, mais outra pergunta que há muito não ouvia ser feita – nem a mim nem a outrem. Admito que a questão exista e seja praticada em rituais reservados a iniciados ou em clubes de leitura; agora de um modo quotidiano a pergunta já não se aplica como dantes. Mas a dificuldade da resposta permanece, sobretudo perante um interlocutor que mal conhecemos: ao referir o que andamos a ler as reacções podem variar do interesse por cortesia ao julgamento em silêncio (quase sempre aplicável se estivermos a ler poesia). Neste caso obtive o primeiro; mas a minha felicidade não diminuiu por isso. Sobretudo porque o livro que ando a ler – já que não perguntaram – é dos mais belos hinos à leitura, aos livros e aos leitores com que deparei há muito tempo. Chama-se The Uncommon Reader (A Leitora Real, na versão portuguesa) e foi escrito por Alan Bennett, um dramaturgo e argumentista inglês de que gosto muito. É uma pequena fábula cómica de pouco mais de cem páginas – mas com tanto para dar! Publicado em 2007, só agora o descobri, num timing perfeito e da melhor maneira – quando passeava o olhar pelas estantes de uma livraria. Bennett imagina a rainha Isabel II de Inglaterra a descobrir por acaso a biblioteca ambulante de Westminster, estacionada perto de uma das portas do palácio de Buckingham. E com a colaboração de um leitor apaixonado que é ajudante de cozinha, a rainha entra na odisseia extraordinária da descoberta dos livros e dos mundos dos autores, a ponto de descurar as suas funções oficiais.

Os comentários da rainha ao que lê são maravilhosos, um prodígio de economia humorística e inteligente. Mas o que nos fascina é a sua viagem: sem mapa, estrada ou teorias, lê pelo prazer de ler, sem qualquer espécie de preconceito. Da biografia de Sylvia Plath (de que não gostou) passa sem medo para as memórias de Lauren Bacall (de que gostou e por quem sente uma ponta de inveja); a análise psicológica de Henry James maça-a, bem como os autores que convida para uma recepção no palácio; não consegue compreender bem o humor subtil de classe social dos livros de Jane Austen porque simplesmente viveu sempre acima deles… E mais, muito mais que não irei estar aqui a desvendar.

O que queria dizer é isto: dificilmente os livros – ou a leitura – nos fazem melhores pessoas, moralmente falando. Mas são uma aventura necessária, a que nos devemos entregar sem reservas nem bússola para podermos traçar a nossa rota. O espanto da rainha de Inglaterra é belo e acessível a todos. E ajuda a salvar perguntas extintas e de porte imponente. Vamos a ele, vamos a ele.

Esta crónica foi publicada originalmente no jornal Hoje Macau, tendo sido aqui reproduzida com a devida autorização.

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