Dan Deacon e a odisseia sonora de “Mystic Familiar”

por João Rosa,    5 Fevereiro, 2020
Dan Deacon e a odisseia sonora de “Mystic Familiar”
Capa do álbum
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Apesar do seu nome continuar desconhecido para demasiados, o universo de Dan Deacon desdobra-se em multitudes. Quer estejamos a falar do seu passado estudantil por entre o underground nova-iorquino de géneros tão díspares quanto grindcore, ska e música clássica; do súbito mergulho na comunidade artística de Baltimore, de onde emergiu o caótico pop futurista de Spiderman of the Rings – ainda hoje um marco após o instantâneo best new music em plena era de efeito Pitchfork ou, mais recentemente, de mangas arregaçadas por entre o mundo da música clássica contemporânea (entre outras obras, a produção da banda sonora do documentário “Rat Film” em que utilizou literalmente ratos a tocarem theremin merece honras de destaque), têm sido os dançáveis e efusivos sucessores de Spiderman a marcar a sua presença no circuito indie mais mainstream.

Se em Bromst, de 2009, transformou o vitaminado som tutti-frutti do seu primeiro álbum num exercício cerebral de monumentais sequências de percussão; America, de 2012, traz-nos a sua predilecção pelo vasto cross-country norte-americano condensado num batido orgânico de instrumentação acústica em manipulação digital. Gliss Riffer, lançamento de 2015, vê, por um lado, o compositor regressar ao banho de electrólitos sonoros que definiu as suas origens; e por outro, a introdução de elementos vocais cada vez mais marcantes e introspectivos.

Dan Deacon. Fotografia de Frank Hamilton

Porquê a detalhada retrospectiva? Mystic Familiar é Dan Deacon em formato concentrado – tal como o próprio artista, a viagem sonora que encerra na sua tracklist atravessa paisagens aparentemente antagónicas: Deacon é simultaneamente demasiado digital e obsessivamente orgânico, irrequietamente mistura instrumentação clássica com a (mais) habitual espiral de loucura freaktronica. O efeito é engrandecedor e pastoralmente psicadélico: se a montanha-russa maximalista e imparável de Gliss Riffer parecia estar sempre em movimento na mesma direcção, podemos encontrar uma quantidade muito mais cuidada de nuance em Mystic Familiar.

O quinto longa-duração electrónico do artista começa lento – particularmente pelos seus estandartes – com um conjunto de faixas que sugere um regresso a uma America pintada a cores mais vibrantes. “Become a Mountain” abre gentilmente o álbum, sob chuviscos de teclas oscilantes que acabam por se dissolver no curto interlúdio de “Hypnagogic”. “Arp I-IV” formam uma única faixa, cinturão central do álbum, que se contorce entre espirais de glissando em constantes mudanças de direcção tão imprevisíveis quanto coesas: atravessamos desde um curto mergulho jazz à completa imersão instrumental, que acaba por ser lavada pela onda de noise que abre o último andamento. Não muito distante estilisticamente está “Bumble Bee Crown King”, última faixa, que fecha o álbum em grandeza instrumental ao lançar-se de cabeça numa torrente de percussão.

“Weeping Birch” é talvez a faixa mais sugestiva dos novos horizontes desbravados por Deacon, ao explorar, em intenso crescendo de velocidade e instrumentos, linhas clássicas distendidas, qual orquestra atomizada e sobreposta sobre si mesma. “Sat By a Tree” e “Fell Into The Ocean” acabam por representar os momentos estruturalmente mais indie do álbum – semelhantes às faixas mais centrais de Gliss Riffer e decerto não caindo longe das graças de fãs da suave melancolia pintada pela era mais electrónica de Animal Collective – enquanto “My Friend” prova que uma música sobre amizade distante se pode tornar numa dançável celebração synthpop. É, aliás, a atitude e visão de Deacon ao responder às particularidades da existência com algo entre a paz e a constante catarse que mais sobressai neste trabalho, tanto em termos líricos quanto musicais.

A temática naturalista é constante ao longo de Mystic Familiar: Dan quer tornar-se um só com um meio envolvente cujo retrato sonoro pinta como colossal, cuja interpretação só pode ser medida de braços abertos à sua beleza caótica inerente. À urgência existencial por parte de Deacon – receios de finitude temporal, rostos que ficaram para trás e saudosismos de tempos melhores – há sempre uma resposta proporcionalmente catártica: um tão celebratório quanto reconciliador “such is life” comunicado na sua imagem de marca, que é uma avalanche sonora de tons e sabores saturados, em movimento e batida tão velozes que arpeggios se transformam em drone.

Na sua inegável consistência é difícil, no entanto, encontrar em Mystic Familiar as mesmas qualidades pop aperfeiçoadas no seu antecessor; não encontramos aqui os mesmos bangers frenéticos do anterior lançamento. Apesar de longe de soturna, a cascata sonora vive de uma intensidade mais contemplativa. Encontramos em Mystic Familiar um Dan Deacon cada vez mais maduro e detalhado na forma como compõe e utiliza as suas influências multidisciplinares; o que, apesar do equilíbrio conseguido na doseada energia do álbum, encobre de certa forma a sua herança festiva.

É de louvar a experimentação de formatos que Deacon emprega, apesar de tal acabar por ser não novidade em relação ao seu restante catálogo – momentos como a sinfonia oscilante de “Weeping Willow” ou a inesperada introdução jazz de “Arp III” acabam por ser raras excepções do que poderia ser a partida para territórios sonoplastas mais aventureiros. A soma total, não obstante, não deixa de ser um dos melhores e mais equilibrados lançamentos da carreira do músico, com acessibilidade suficiente para que iniciantes às suas complexas teias maximalistas encontrem aqui a melhor porta de entrada.

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