Da Vinci e “Salvator Mundi”, o quadro mais caro do mundo

por Pedro Fernandes,    10 Janeiro, 2020
Da Vinci e “Salvator Mundi”, o quadro mais caro do mundo
Kirsty Wigglesworth / AP
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A 15 de novembro de 2017, o mundo ficou surpreendido com a notícia de que um quadro tinha sido vendido num leilão por 450 milhões de dólares (cerca de 380 milhões de euros). Esta verba supôs (e ainda supõe) um valor recorde para a venda de um quadro. Falamos do quadro “Salvator Mundi” (“Salvador do Mundo”), atribuído a Leonardo Da Vinci. Aqui, referimos o quadro como “atribuído” porque não podemos voltar ao passado e ver se foi realmente ele quem o pintou. Da mesma forma que, para os seus demais quadros, existe um processo meticuloso feito por especialista para verificar (leia-se deduzir) que a obra deve ser atribuída a um determinado autor (Da Vinci não assinava as suas obras). O leilão ocorreu na já famosa “Christies”, em Nova Iorque, onde é habitual este tipo de transações de obras de arte. Anteriormente, o quadro pertencia ao bilionário russo Dmitry Rybolovlev, também ele proprietário do clube AS Monaco. Em 2013, o magnata russo tinha pago por ele cerca de 127,5 milhões de dólares (à volta de 90 milhões de euros) a um negociante de arte suíço, de seu nome Yves Bouvier. Antes de chegar a estes valores, o quadro esteve largos períodos como desaparecido. Chegou a ser vendido por 50 euros. Em 2005, o mesmo foi vendido por 10 mil dólares e posteriormente revendido por quase 80 milhões de dólares a Yves Bouvier. Um negócio incrível que mostra a importância que pode ter o nome do artista e o processo de autenticação do mesmo.

O leilão foi animado e começou com uma fasquia mínima de 100 milhões de dólares. A determinada altura, como seria expectável, ficaram poucos, sendo que, neste caso, apenas dois concorrentes. O público vibrou ao ver incrementos na oferta na ordem das dezenas de milhões de euros num espaço de poucos minutos. Um exercício que nos deve fazer refletir sobre a atual distribuição da riqueza no mundo. O comprador, na altura anónimo, foi revelado posteriormente. Falamos de Bader bin Abdullah bin Mohammed bin Farhan al-Saud, um príncipe saudita relativamente desconhecido e sem historial como comprador de arte. Mais tarde, ficou a saber-se que a compra foi feita em nome do Departamento de Cultura e Turismo de Abu Dhabi, tendo como objetivo expor o quadro no Louvre de Abu Dhabi.

Atualmente, o quadro não está exposto e ninguém veio a público explicar o que realmente se passa com ele. Uma vez mais, o quadro volta a “desaparecer”. A sua ausência foi notada na grande exposição que o Louvre de Paris fez recentemente em memória do 500º aniversário da morte de Leonardo. O site Artnet publicou uma notícia sugerindo que, segundo as suas “fontes”, o quadro está no iate privado do principe Mohammed bin Salman. Não seria de esperar um valor tão alto. A verdade é que a “marca” Leonardo Da Vinci (perante a escassez dos seus quadros, pintado pouco mais mais de 20 obras das quais temos conhecimento), e tendo em conta a motivação do Louvre de Abu Dhabi ter o seu próprio Da Vinci – tal como o Louvre de Paris tem a mundialmente conhecida Mona Lisa -,  fizeram subir a parada de uma forma nunca antes vista. Para dar ainda mais importância ao quadro, a última pintura de Leonardo a ser descoberta tinha sido “Benois Madonna”, que reapareceu no Museu Hermitage, São Petersburgo, no ano de 1909.

A obra “Salvator Mundi”

Estima-se que “Salvator Mundi” tenha sido pintado por volta do ano 1500, possivelmente destinado ao rei francês Luís XII. Esta pintura veio a revelar-se como uma das mais copiadas do mestre italiano. Ao largo dos anos, surgiram várias versões de outros artistas. O mistério é tanto que Ben Lewis publicou, em abril de 2019, um livro só sobre este quadro chamado “The Last Leonardo”. Em declarações para a Robb Report, Alan Wintermute, um especialista em maestros antigos, funcionário da leiloeira onde ocorreu a venda, descreve que, quando o quadro chegou às suas mãos, estava “sobre-pintado” e havia a crença de que seria uma cópia do original. Já Dianne Modestini, a última responsável por conservar e restaurar o quadro, conta como o quadro teve que ser “limpado”, uma vez que “a cabeça tinha sido repintada” por alguém, para além de existirem partes mal conservadas e que alguém tinha “acrescentado algo de barba”. Estes são também alguns dos motivos que deixaram sempre a dúvida no ar se realmente se trata de um quadro de Da Vinci. Há ainda a discussão paralela se terá sido ele a pintar tudo ou se terá deixado certas partes para adjuntos. Da Vinci era conhecido por finalizar poucas obras. O momento em que ela sentiu verdadeiramente que se tratava de um quadro de Leonardo foi quando teve que restaurar a boca de Jesus: “mais ninguém pinta desta maneira”.

Neste quadro, Da Vinci traça o retrato de um Jesus Cristo que aparece como salvador do mundo. Leonardo gostava sempre de pintar obras com significado, o que nos obriga a olhar as suas obras com muita atenção e com olho crítico para interpretar a sua expressão. Como elementos principais da obra, podemos identificar a sua mão direita levantada com um gesto de benção, o vestido azul da época do Renascimento da qual Da Vinci é um dos protagonistas e o fundo a preto obriga nos a focar a nossa atenção em Jesus; por outro lado, deixa o mistério da sua localização ou de uma possível interpretação do negro como o infinito ou indefinido.

O elemento que gera maior mistério e discussão é a esfera que Jesus segura com a sua mão esquerda conhecida como “globus cruciger”. Mais recentemente no seu livro biográfico “Leonardo Da Vinci” (publicado em Portugal pela Porto Editora), Walter Isaacson levanta novamente questões sobre esta esfera. No seu livro, descreve que Leonardo, naquela altura, e entre outras coisas, estudava a perspetiva ótica e a maneira como os nossos olhos focavam objetos. Isaacson questiona e ilustra no seu livro que o olho humano, ao olhar para este globo, veria uma discussão em relação ao que estiver por detrás da esfera. No entanto, Leonardo não a representa. Para o autor, Leonardo sabia perfeitamente que assim era e decidiu, de forma consciente, de o pintar assim. Para ele, o objetivo era atribuir um ar de milagre a Jesus, que seria capaz de evitar essa distorção. Mais um pormenor de génio por parte do mestre italiano. Provavelmente poucas pessoas num museu, sem conhecimento prévio, iriam questionar a falta da distorção na esfera.

Os quadros de Da Vinci estão sempre envoltos de mistério e de possíveis interpretações. Neste “Salvator Mundi” podemos observar que Jesus, embora homem, aparece um ar um pouco feminino. Repare-se na sua face, no seu cabelo longo encaracolado e nas formas do seu vestido na zona do peito. Estaria ele a questionar se Jesus pudesse ter sido uma mulher? Seria uma maneira mais universal para ambos os sexos de representar Cristo? Muitas questões podem ser levantadas sem evidências de quais eram as reais intenções do artista. O espectador pode, assim, preencher esta espaço vazio no significado com a sua própria interpretação. Outra questão comum nos seus quadros é o sorriso. Jesus sorri? Uma pergunta que ficou famosa pela sua obra mais conhecida, Mona Lisa. Neste quadro, Jesus não parece sorrir.

Pelo contrário, apresenta um ar bastante neutro e inexpressivo. Cientista e estudioso obsessivo do corpo humano e da perspectiva de foco do olho humano, Leonardo aplica esses seus conhecimentos nesta pintura. Podemos ver que os elementos mais próximos de nós, as mãos e a esfera estão pintados com maior definição do que a cabeça e o corpo de Jesus que se encontram mais distantes, algo que dá ao quadro uma dimensão de quase três dimensões. Ele gostava de ser realista e pintar de acordo com as características da visão humana. Nos elementos mais distantes, sobretudo na face de Jesus, podemos ver com grande claridade a sua técnica de sfumato brilhantemente aplicada. Esta técnica partia do princípio que o olho humano não vê linhas bem definidas quando se olha para algo, ou seja, não se trata de traçar o nariz de uma pessoa com linhas definidas, mas sim com linhas gradientes com variações de tonalidade para transmitir uma sensação de volume, um pouco como o vapor ou fumo que não somos capazes de desenhar com linhas definidas.

Como conclusão, podemos constatar que esta obra é uma mistura genial entre religião, ciência e arte, como só Leonardo Da Vinci sabia fazer. Junta os seus estudos humanos e científicos com a sua qualidade suprema de pintar para transformar aquilo que poderia ser um simples quadro de Jesus numa obra que continua a fascinar e a questionar o mundo. Do ponto de vista do dinheiro, ficamos a pensar como é possível que um quadro do qual nunca vamos poder provar a sua autoria pode ser vendido por uma quantia astronómica como esta. Se fosse provado que o autor era outro, a pintura continuaria a ser exatamente a mesma, mas o seu preço não. E se fosse provado que Leonardo só pintou parte, o preço baixaria quanto? Parece que a crença generalizada de que é um Da Vinci chega para nós, humanos, ficarmos maravilhados de antemão com um quadro. A história de vida deste quadro é, de certa maneira, uma questão sobre quais são os limites das nossas crenças. Da Vinci deixa pormenores que sabia que poucos iam reparar, mas, mesmo assim, decidia levar a cabo as suas ideias porque ele fazia as coisas pelo amor e curiosidade que sentia por elas.

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