CUF, o novo pólo cultural da Margem Sul?

por Comunidade Cultura e Arte,    31 Março, 2020
CUF, o novo pólo cultural da Margem Sul?
Fotografia de David Romão
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Em dia de inauguração do armazém 2 da Associação Ephemera, biblioteca e arquivo geridos por José Pacheco Pereira, a FOmE circulou pelo complexo industrial da antiga CUF e deparou-se com mais duas inaugurações. O novo atelier do colectivo SPA abria portas nesse dia e os PADA studios inauguravam a exposição que marcava o final de mais um mês de residência de seis artistas oriundos de vários pontos da Europa. Desta nossa deambulação surgiu o ensaio fotográfico de David Romão, fotógrafo fiel da FOmE que acompanha e regista a maioria dos nossos eventos.

Para chegarmos a estes espaços culturais passamos pelo mausoléu do empresário Alfredo da Silva, um nome marcante na história empresarial portuguesa. Fundador da CUF – Companhia União Fabril que chegou a ter mais de 10.000 trabalhadores, fundador e proprietário da Tabaqueira Nacional, da Lisnave, do Banco Totta e da companhia de seguros Império; não é por isso de estranhar a grandiosidade e estética deste mausoléu  que nos remete para os grandes monumentos das ditaduras europeias – os baixos relevos do monumento são da autoria de Leopoldo de Almeida, escultor predileto do Estado Novo. Uma expressão de poder post mortem que não deixa de criar estranheza no contexto deste espaço industrial cujos anos de abandono ainda se sentem na paisagem.

A CUF foi fundada em 1875, nacionalizada na sequência da revolução de abril e nos anos 80 entrou em declínio e os espaços foram sendo sucessivamente abandonados. Desde há uns anos, sob a administração da Baía do Tejo, os espaços têm vindo a ser reabilitados e redefinidos.

Ainda que este seja um contexto maioritariamente empresarial abrem espaços culturais e de criação artística; podemos arriscar dizer que o pontapé de saída para a definição deste território, também como espaço artístico foi dado por Alexandre Farto. Alexandre conhecido como Vhils, um dos mais relevantes artistas nacionais, instalou o seu atelier num destes armazéns há uns anos, a sua marca faz-se sentir no espaço. No muro que protege o atelier podemos ver a sua maior obra de arte – um mural com mais de 150 metros.

Fotografia de David Romão

Longe de deter os 1792 metros quadrados ocupados pelo atelier de Vhils a Associação Ephemera ocupava até ao final de Fevereiro um armazém neste complexo industrial. O espaço era pequeno para alojar todo o espólio que a associação tem vindo a recolher nos últimos anos, levando à sua expansão para mais um espaço na mesma rua.

Gerido pelo historiador e político José Pacheco Pereira, Ephemera é um dos mais extensos e vivos arquivos nacionais. Com múltiplos pontos de recolha em todo o país o espólio da Ephemera está em constante crescimento, uma vitalidade vertiginosa que se afasta da ideia pré-concebida de um arquivo ou biblioteca. Às terças-feiras o espaço enche-se de voluntários que organizam, catalogam e arrumam os espólios acabados de chegar. Algumas caras são conhecidas para quem frequenta espaços como a ADAO (Associação de Desenvolvimento das Artes e Ofícios), estes voluntários são habitantes locais que reconhecem a importância deste projecto para a cidade.

O espaço tem corredores exíguos criados por estantes enormes carregadas de documentos. As paredes são adornadas com grandes lonas de campanhas eleitorais de todos os partidos políticos, saídas de outdoors das cidades. Um enorme PVC com a imagem de António Costa marca a imagem do primeiro armazém, mas apenas agora, porque o espaço está em constante mutação.

Assim como não há inclinação ou curadoria política na Ephemera (estes objectos tratam-se de puros documentos históricos), também não há temas nem suportes prediletos ou proibidos – encontramos cartazes de manifestações contra as alterações climáticas, cartazes sobre a revolução de abril, colecções completas das mais importantes edições periódicas nacionais e livros de economia e história. Podemos encontrar também alguns objectos curiosos como uma boneca vudu com a cara de Vladimir Putin ou o taco de basebol do líder de extrema direita Mário Machado. Tudo é considerado um registo de um momento, tudo é considerado um registo histórico.

Devemos também destacar que a própria actividade da Ephemera constitui história, e por isso é fixada e documentada pelo fotógrafo Rui Serrano, voluntário da Associação que tem em digressão uma exposição que espelha o funcionamento diário do arquivo.

 

Fotografia de David Romão

A Poucos metros da Ephemera há dois espaços dedicados à arte contemporânea, com dinâmicas e motes diferentes, PADA studios e o estúdio dos SPA.

Os PADA studios são um espaço de residência artística com regime mensal que acolhe artistas de todo o Mundo. Após vários anos a viver em Inglaterra, a portuguesa Diana Cerezino em parceria com o inglês Tim Ralston funda este projecto sem fins lucrativos. A cada mês chega um grupo de artistas que tem a possibilidade de criar obras de arte num regime imersivo, fora do seu contexto quotidiano, o que amplia as possibilidades e traz novos estímulos aos artistas. O espaço pode ser usado 24h/dia e conta com oficinas equipadas para trabalhar os mais diversos materiais. Os artistas têm, ainda, a possibilidade de contactar outros artesãos e técnicos da rede de contactos estabelecida pelo PADA que lhes podem dar apoio na construção das suas peças.

Durante o mês de residência os artistas ficam alojados numa casa perto do atelier e têm um programa cultural e workshops externos que concorrem para o estímulo à criação artística. Os artistas são também encorajados a criar com base no espaço circundante, tendo acesso aos museus e arquivo locais que documentam a história deste espaço industrial.

Em jeito de finalização do processo de residência é promovida uma exposição colectiva que fica exposta no espaço da galeria do próprio armazém PADA. Um cubo branco ocupa parte do espaço formalizando a ideia de exposição e contrariando a natureza industrial do edifício.

 

Fotografia de David Romão

Vizinhos do PADA são os SPA, colectivo artístico barreirense, constituído por Cláudio Ferreira, Miguel Amaral, Ricardo Guerreiro e José Muchacho, que já conhecemos da FOmE III.

Percorremos estes espaços era no dia de inauguração do novo atelier SPA. A mesma decorreu dentro daquilo que é a linha de trabalho do Colectivo, com ironia e apropriação dos códigos instituídos numa inauguração, com a participação de José Pacheco Pereira, anunciado como artista convidado.

O “artista convidado” cumpriu todas fases do protocolo de uma inauguração formal. Começou com o descerramento da placa coberta por um pano em forma de púbis feminina, continuou com o baptismo das instalações em que uma garrafa de champanhe foi atirada contra a parede, em seguida foi cortada a fita vermelha que impedia a entrada do público pelo acesso principal do armazém. Por fim, a cerimónia terminou com Pacheco Pereira a colocar a primeira pedra – ou melhor tijolo – no espaço do colectivo. Assistimos, assim, a uma inauguração -performance protagonizada não pelos artistas mas por um convidado institucional.

O novo espaço do SPA será, na sequência do que já acontecia no atelier que ocupavam na ADAO, um espaço de criação para estes quatro artistas, ao que acresce, pela dimensão e abertura do espaço, a possibilidade de promover exposições, residências e criação partilhada com outros artistas que, cíclica e temporariamente, possam vir a dividir o espaço com os quatro elementos SPA.

Estes três espaços são uma amostra da regeneração que ocorre neste antigo complexo industrial que mistura entidades empresariais com entidades culturais e é mais um exemplo de como as artes podem contribuir de forma bastante activa para a dinâmica e crescimento de espaços abandonados.

Ainda não sabemos se este é o novo hot spot da periferia de Lisboa mas é potencialmente um polo cultural em crescimento que devemos ter em conta.

Texto de Margarida Mata

Revista FOmE, Março 2020

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