Crónicas de uma Vida Parisiense: #8

por Miguel Fernandes Duarte,    18 Janeiro, 2017
Crónicas de uma Vida Parisiense: #8
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“Crónicas de uma Vida Parisiense – uma rubrica sobre a vida na capital francesa, pelos olhos de quem por lá está.”

As nossas vidas diferentes fazem-nos ter experiências bem distintas diante da mesma coisa. É frequente existir, nos comboios RER parisienses, um código que, penso eu, deverá estar relacionado com o número da carruagem; às vezes começa com as letras ZBD, procedidas de um número. Sempre que as vejo, não consigo não me lembrar da ZdB, a Galeria Zé dos Bois. Uma amiga, também portuguesa, ri-se porque a ela sempre lhe fez lembrar as iniciais BZD, de benzidina. Estamos na mesma incubadora, mas aquilo que nos marca individualmente nunca é o mesmo. Viver fora do nosso país, da nossa cidade, tem sempre algo em comum para todos os que por isso passam. Daí a achar que aquilo pelo qual todos passaram foi o mesmo, vai muito.

Somos diferentes pessoas e sê-lo-emos sempre, por muito que passar por coisas parecidas nos dê algo mais em comum através do qual nos aproximamos. Estabelecemos pontos de contacto porque existem, de facto, coisas semelhantes através das quais criamos empatia uns com os outros. Mas viver fora não é o mesmo para todos, por muito que estejamos todos no mesmo barco. Mesmo nem tendo em conta os aspectos da personalidade de cada um, conseguem-se encontrar diferenças patentes.

Tal está também intensamente ligado à forma como percepcionamos a cidade na qual estamos. Paris é cidade para flanar sozinho, deambular pelas diferentes zonas a ver o que torna cada uma dessas zonas diferentes umas das outras, o que as torna individuais e especiais. Essa identidade que procuramos encontrar numa nova cidade será sempre comparável àquela que encontramos na cidade de onde vimos, quer por parecença com ela ou por oposição à mesma.

Para alguns Paris é a cidade do luxo, da moda, um local de estatutos alcançados ao passear nos Champs-Elysées ou em Saint-Germain ou no Marais. Já eu olho mais para Paris como local de junção da arte com uma espécie de desordem civilizada. Ou uma ordem não-civilizada. Essa mesma desordem é essencial à criação e à arte. Como é que se poderia criar se tudo fosse perfeito? Quando nem tudo é o que parece, é a aparência, e a forma como se relaciona com o que está tapar, que se torna interessante.

Aquilo que eu sinto ser para mim Paris será sempre diferente daquilo que essa minha amiga sente que Paris é para ela. É para ambos uma cidade da Cultura, mas eu não tenho como fugir às questões inegavelmente ligadas ou à arte alternativa contemporânea, ou à sua patente ligação com a literatura dos séculos XIX e XX, francesa ou internacional. Foi já um porto de abrigo para tantas e tantas pessoas antes de nós…. Quão parecida será a minha experiência quando comparada com aquela pela qual passou Ernest Hemingway ou James Baldwin, ambos expatriados em Paris?

Bem, logo em primeiro lugar temos as questões relativas às mudanças pela qual passou a cidade e a sociedade, no geral. Coisas que tornam automaticamente a minha experiência de vida diferente daquela de alguém da geração dos meus avós, quer em Paris ou em Lisboa. Mas existem os tais pontos de contacto. Como eles saí, de certa forma, à procura de um local mais fértil. Mas talvez eles não tivessem outra alternativa se não vir; eu tinha, eu tenho uma casa. Eles tiveram de chegar a Paris e criar a sua própria, no risco de não terem nenhuma. Juntaram-se, cada um na sua época, à vida criativa e literária que florescia pela cidade. Um desses pontos continua a ser a livraria Shakespeare & Company.

Na sua segunda incarnação desde 1951, após a original criada por Sylvia Beach ter fechado devido à 2ª Guerra Mundial, cá se mantém na margem esquerda do Sena, junto à Catedral de Notre Dame, primeiro pelas mãos de George Whitman e agora pelas da sua filha, a histórica livraria de língua inglesa. Acolhedora, com todo o seu interior forrado a estantes de madeiras imperfeitas forradas com livros, é um daqueles locais que preserva em si aquela sensação de comunhão literária. Isto porque continua a sobreviver como uma livraria, o seu trabalho continua a ser o de vender livros aos seus clientes, quer através dos clássicos e dos livros dos escritores associados à livraria, como os da Beat Generation, que possuem um grande destaque logo à entrada, quer através das mais recentes novidades e edições do mercado de língua inglesa.

Constantemente cheia de olhares curiosos que entram e saem da livraria sem levarem nada consigo, está, ainda assim, também quase sempre com filas para pagamentos. Não se demitindo do seu trabalho, continua a alimentar o cenário literário parisiense (onde não faltam livrarias), vendendo livros e organizando sessões; não passando, felizmente, para aquele papel quase museológico que várias livrarias do mesmo estatuto adoptaram, entretanto. A quantidade de visitantes, turistas ou não, não é vista como um transtorno por tantos deles saírem da loja com livros comprados. E tal é mérito da livraria – do espaço e do catálogo que possui. Só livrarias que se demitiram do seu trabalho de livraria podem argumentar que não conseguem sobreviver se não cobrarem bilhetes à entrada, por muito que estes acabem por poder ser descontados em compras no interior. Livrarias como a Lello, no Porto, lindíssima e famosa como é, só veem as suas receitas aumentadas com medidas como esta porque há muito se deixaram de interessar por manter o seu papel dentro da comunidade como uma livraria de referência. A Lello deixou de ser visitada como livraria porque assim o quis. E a Shakespeare & Co. continua a ser visitada como livraria, a vender livros que não somente guias da cidade de Paris porque também assim o quis, porque sempre esteve na sua génese fazer parte de uma comunidade literária que tinha como ambição ajudar a criar e divulgar a melhor literatura. Ora, todos sabemos que é muito mais fácil não ter esse trabalho.

Para consultares as crónicas anteriores: #1 / #2 / #3 / #4 /#5 / #6 / #7

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