“Cloudpunk”: entregas na chuva

por João Diogo Nunes,    1 Novembro, 2020
“Cloudpunk”: entregas na chuva
“Cloudpunk”
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Num futuro distante, a cidade de Nivalis é o grande centro urbano do mundo. Entre humanos, robôs e inteligências artificiais corre um fluxo de movimento citadino cujo ritmo é marcado pela chuva incessante. Os CEO, uma etiqueta vaga de significado esquecido pelo tempo, têm lugar de luxo nos edifícios acima das nuvens, onde não chove. Cá em baixo estão os mais desfavorecidos, entre os quais a recém-chegada Rania, a protagonista da aventura que assegura um emprego na Cloudpunk, a empresa de entregas que a coloca no turno noturno mais longo de sempre.

Os cartazes em japonês são uma das características que fazem lembrar Blade Runner

Cloudpunk é um jogo de cariz narrativo bem assente na exploração e, com os seus elementos banhados num estilo cyberpunk hiperdenso permanentemente imersivo, pode-se concluir que alcança o que propõe. Acompanhar a personalidade vincada de Rania, uma tocadora de flauta emigrante oriunda de um Oriente Médio ficcional, é um dos destaques da aventura. Trata-se de uma protagonista forte, com posições sempre sóbrias acerca de temas proeminentes como desigualdade de género, racismo ou corporativismo.

Enquanto que o argumento aborda temas instigantes, ele perde valor quanto mais se aproxima dos clichês do enredo principal, assim sendo, é nas missões laterais que vamos passar os melhores momentos, que nascem de arcos secundários com decisões mais localizadas e a curto-prazo, até porque o objetivo do jogo é fazer que o jogador junte pedaços narrativos soltos e os una para obter a paisagem geral que se justapõe à metrópole. Há decisões que podem impactar a cidade inteira, mas isso nunca acontece ativamente. É usual depararmo-nos com circunstâncias nas quais podemos decidir arriscar a nossa subsistência em prol dos outros, só que não há grande sacrifício, já que somos pouco penalizados na prática. No entanto, o pecado principal da escrita é a incoerência, é comum as personagens falarem de pormenores que ainda não aconteceram ou que simplesmente não são verdade, pois o jogador agiu contrariamente. Quanto ao final, não está bem suportado e culmina numa decisão um tanto indiferente.

Depois de nos habituarmos à condução, os céus de Nivalis oferecem uma sensação de tranquilidade

O estilo visual é bastante interessante, com a sua estética voxelizada e sobredose de néon. A arquitetura da cidade é belíssima e as janelas reluzentes pontilhadas pelos prédios majestosos são uma visão agradável na cidade degradada. Apesar destes encantos, o jogo descuida-se em alguns aspetos quando analisado mais de perto. É de notar que as versões de consola estão especialmente aquém da versão de PC, sobretudo no que diz respeito à chuva, reflexos e distância de renderização. Devido à ausência de sincronização vertical, o screen tearing é muito visível nas consolas. A cadência de fotogramas também constitui um problema adicional, especialmente na versão Switch. No PC grande parte destes problemas desaparecem ou melhoram.

A base da jogabilidade, que é só isso mesmo para possibilitar tudo o resto, é fazer entregas: vamos ao lugar A buscar uma encomenda e ao lugar B entregá-la. O confronto entre diálogos e viagem de carro até aos destinos está mal gerido, pelo que é habitual chegarmos a um objetivo muito antes de a conversa terminar ou, pelo contrário, ter de esperar pelo diálogo terminar para termos o destino no mapa. Há algumas falhas de design, especialmente uma bastante grave numa missão com tempo, mas fora isso, a simplicidade do jogo está em sintonia com o ambiente e vai-nos proporcionar uma boa aventura no controlo do HOVA, o carro voador que usamos para nos deslocar entre as áreas de jogo, que depois são exploradas a pé.

O design de níveis pode ser um pouco confuso por ter corredores estreitos, mas é variado e apanhar os itens por lá espalhados enquanto encontramos personagens com histórias para contar é delicioso, embora os elevadores incrivelmente lentos manchem um pouco esse registo. Retirando uma ou duas missões principais, é na exploração livre que Cloudpunk brilha. As mecânicas do jogo são muito limitadas, mas mesmo assim nunca sentimos falta de mais complexidade na estrutura central, pois embora isso fosse enriquecer a jogabilidade, iria certamente interferir na experiência relaxante e acolhedora que é mergulhar no ambiente de Nivalis. Há ainda melhorias para fazer no carro e opções de personalização para a personagem ou para o seu carro ou apartamento. Alguns itens dão vantagens temporárias, como beber água, que aumenta a velocidade a pé, mas nada é explicado, apenas têm um pequeno ícone que indica que são diferentes, sendo muito fácil jogar o jogo sem reparar nesta opção.

O código do jogo é sensível a incongruências, deixando situações esquecidas, ou seja, falha em prever como é que o jogador vai agir ao pressupor apenas o caminho óbvio sem cobrir as alternativas e, portanto, fracassando nessas alturas. Entre várias ocorrências, a mais notória é quando um funcionário nos dá um código para entrar por uma passagem, criando um objetivo e marcando o local no mapa; se falarem com a personagem depois de desbloquearem a passagem, ela fornece novamente o código e marca de novo a passagem, mas como já está desbloqueada vão ficar com o ponto no mapa e o objetivo no topo do ecrã a incomodar para o resto do jogo. Já quanto aos menus, são funcionais, porém, é de lamentar que não haja opção de gravar o jogo, só existe um slot de gravação, é tudo automático e o jogo nem avisa quando guarda. Os loadings são outra agravante, já que ocorrem muito frequentemente e não são propriamente rápidos.

A perspetiva na primeira pessoa (adicionada posteriormente ao jogo) é uma opção valiosa

A música eletrónica, bem ao estilo cyberpunk, tem qualidade, mas a sua integração é deficiente, com vários momentos de silêncio repentino quando a faixa acaba e outras entradas da música bastante aleatórias. Os efeitos sonoros são algo repetitivos e genéricos, mas não incompetentes, e os valiosos sons da multidão deviam ser mais usados. Já as prestações vocais oscilam muito em qualidade, em alguns momentos parece que as falas estão meramente a ser lidas de um papel, mas noutros há personagens capazes de nos colocar dentro da conversa com uma entoação mais variada.

No final de contas, explorar Nivalis é encantador, mas Cloudpunk falha em aproveitar o seu potencial devido ao baixo grau de polimento e a um fraco dinamismo entre os vários elementos criativos. Sendo um jogo independente, muitas das falhas são perdoáveis, mas há outras que são berrantes e poderiam ter sido evitadas. Ainda assim, o conceito interessante, o ambiente imersivo e as personagens suculentas são razões suficientes para os fãs do estilo cyberpunk que favoreçam as experiências narrativas lhe darem uma oportunidade.

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