Capitão Fausto: para quê contar os dias quando os podes inventar?

por Comunidade Cultura e Arte,    18 Abril, 2019
Capitão Fausto: para quê contar os dias quando os podes inventar?
Domingos Coimbra e Tomás Wallenstein / Fotografia de Diogo Ventura – 8ªColina
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É nos estúdios da Cuca Monga, no bairro de Alvalade, em Lisboa, que os Capitão Fausto (formados por Tomás Wallenstein, Domingos Coimbra, Francisco Ferreira, Salvador Seabra e Manuel Palha) recebem os jornalistas, num dia em que houve uma avalanche de entrevistas. A banda lisboeta não se importou de ser comparada ao “Panda e os Caricas”, admitiu que a música “Amor, a Nossa Vida” podia estar bem melhor e quase que confirmou as nossas teorias sobre o novo álbum, “A Invenção do Dia Claro”. Tomás Wallenstein e Domingos Coimbra responderam às nossas perguntas, enquanto disputavam o “lugar à janela” numa poltrona individual, para ver de quem era a vez de fumar.

Uns dias antes da claridade

“Os Dias Contados” já ficaram para trás, juntamente com a extensa tour que cruzou o país. Atuando em sítios muito diversos, desde salas mais pequenas a grandes festivais, bares e auditórios, os Capitão Fausto cantaram o fim da sua mocidade e admitem que já estão numa “fase seguinte”, seja ela qual for. Assim, este ano lançaram um novo disco – “A Invenção do Dia Claro”.

Não há dúvida de que estamos perante um grupo de homens que já passaram aquela fase do “ser crescido é que é cool”, como referiu Tomás Wallenstein. Evoluíram e ficaram diferentes. Mas há uma tradição que mantêm desde a adolescência, quando tinham “vinte e tais e o Salvador (o baterista) ainda tinha 18”: sair de Lisboa para ir gravar.

Para a banda, este é um processo que “só traz vantagens”: serve para sair da rotina da cidade e para se focarem na música, de manhã à noite. Mas Domingos Coimbra relembra que o guitarrista Manuel Palha quis gravar o álbum em Alvalade, por terem aí todos os meios disponíveis para o fazer. A verdade é que grande parte do trabalho é sempre feita no bairro que os viu nascer, só que não prescindem de ir para fora. Com este álbum a receita foi a mesma, mas em dose dupla. Primeiro foram para o Minho “inventar coisas”. Levaram apenas duas ideias, que “mais tarde vieram a originar os temas “Lentamente” e “Outro Lado”.

Apareceu, então, um convite para irem gravar num dos estúdios da Red Bull espalhados pelo mundo. Tinham cinco continentes de braços abertos, inúmeras cidades prontas para os inspirar, podiam até ter ido para Los Angeles, mas não se deslumbraram com a oportunidade de conhecer os montes de Hollywood e decidiram ir para São Paulo – até porque para eles “fez mais sentido ir para um país que fala a mesma língua”.

Já em terras sul-americanas, em dezembro de 2017, os cinco “capitães” surfaram a onda tropical brasileira e deixaram-se influenciar por uma cultura que não era a deles. Com a companhia de amigos e músicos brasileiros, como Tim Bernardes, começaram a idealizar o álbum. No entanto, conta Tomás Wallenstein, “ainda faltava muita coisa para estar finalizado”. O ano de 2018 foi atarefado, com inúmeros concertos que lhes roubaram tempo para prepararem o novo álbum. Mal sabiam os fãs que ainda era preciso esperar mais uns meses para ouvirem o primeiro single, “Sempre bem”.

Ao contrário do que se imagina, a escolha dos singles de apresentação de um disco é bastante simples. “À partida pensamos no encadeamento lógico das coisas, porque no fundo é uma apresentação do álbum. No caso de ‘Sempre Bem’, saiu primeiro porque era o tema que estava mais pronto.” Partimos para a entrevista com a ideia assente de que a banda considerava que esta era a música que ia ter mais sucesso, mas Domingos Coimbra garante que esse não é, nem foi, o fator decisivo: “No outro disco achámos de forma unânime que ‘Amanhã tou melhor’ tinha mais possibilidade de ser, não a música que iria “bater” mais, mas a que resumia melhor o disco. Gostávamos muito dela. Mas, neste caso, ‘Sempre Bem’ não é a música que define melhor o disco.”

Cultos e Adultos

O título do novo álbum, “A Invenção do Dia Claro”, já é familiar aos mais interessados em poesia. Na verdade, é também o título de um livro de poesia de Almada Negreiros. Sim, o álbum e o livro têm o mesmo nome – mas porquê? Bem, para os “Fausto”, fez todo o sentido usar esse nome porque “ambos tratam o mesmo tema e levantam uma grande questão: como é que as pessoas arranjam maneiras para estar umas com as outras e conseguem viver juntas?”

Tentar resumir este álbum em meras palavras não é tarefa fácil, até para os próprios autores. Ao longo das oito faixas está sempre presente a ideia de duas pessoas que tentam ficar juntas e não conseguem. “É um fim que acontece no início e um reinício que acontece no fim do disco”, explica Tomás Wallenstein.

O mais importante será reter a palavra “fim”, que muitas vezes tem uma conotação negativa. Na visão dos cinco rapazes, esse “fim” não tem de ser uma coisa má que nos deixa abalados, visto que “não adianta grande coisa olhar para um fim com um olhar triste.” Segundo o vocalista, o que há a fazer é simplesmente “habituarmo-nos às ideias, viver as coisas como elas são.” De certa forma, os Capitão Fausto, através das suas letras, dão-nos uma espécie de consulta terapêutica baseada na autoajuda. “Para mal ou para bem, uma pessoa pode estar a sofrer muito ou pouco com as coisas, mas não é isso que as vai mudar muito. Mais vale conformarmo-nos com as ideias mais tristes e com as ideias mais alegres da mesma maneira. As coisas são assim, e nós aprendemos a lidar com isso”. O ideal é encontrar o otimismo no fatalismo das coisas.

Domingos Coimbra e Tomás Wallenstein / Fotografia de Diogo Ventura – 8ªColina

Os segundos que fazem o dia claro

As conversas tornam-se interessantes quando os temas são desafiadores, tanto para os entrevistados como para os entrevistadores. Portanto, tentámos desconstruir o álbum com a ajuda de quem o fez…

A sexta música, “Faço as Vontades”, serve quase como de linha de separação entre uma fase boa e uma fase má, “partindo” o álbum em duas partes. Até aqui a teoria parecia bater certo, mas há coisas que só quem passou por todo o processo criativo é que sabe. Apesar de Tomás e Domingos concordarem que essa música podia servir como “uma espécie de reset”, há uma outra camada que não avistámos. As ideias iniciais nem sempre coincidem com o resultado final e este álbum não foge a essa regra. Tomás Wallenstein conta que o disco tinha mais do que duas fases. “Eram três fases, nove músicas inicialmente; as três terminavam com uma balada: a primeira acabava com ‘Outro Lado’; a segunda com ‘Amor, a Nossa Vida’; a terceira com ‘Final’. Mas houve uma música que saiu, porque não estava boa, e o segundo capítulo ficou mais curto.”

Para além de acharmos que a “Faço as Vontades” divide o álbum em duas partes, também achamos que tem uma vibeinfantil (talvez pelos coros), que nos fez voltar aos tempos do Canal Panda. No entanto, não somos os únicos – os fãs concordam connosco. Assim que tocámos neste assunto, Domingos Coimbra assumiu o leme da conversa: “Pá, Tomás, eu vi um vídeo que ainda não te mostrei, mas que é o meu vídeo favorito. Vou mostrar-vos. O gajo que o fez é ganda génio. Acho que devíamos tornar isto oficial”. E o vídeo, que apenas foi interrompido pelo sinal de “armazenamento cheio” do telemóvel, vale a pena ser visto e revisto:

https://www.youtube.com/watch?v=If2NylXptLg

Mesmo em álbuns anteriores, pairava a ambiguidade nas letras de Tomás Wallenstein. Neste, isso também sucede. Na música “Amor, a Nossa Vida”, o verso “não vou saber mudar” é repetido “até à exaustão; até estar farto”. Já em “Lentamente”, é proferida a frase “Meu amor, só tu me podes mudar”. Mas afinal em que ficamos neste jogo de mudanças, Tomás? O vocalista esclarece: “Não temos sempre opiniões conclusivas em relação aos assuntos. É como estar a tentar fazer um exercício na escola: mais tarde ou mais cedo vamos conseguir resolvê-lo, mas baixamos os braços e pensamos – ‘não vou conseguir fazer isto’. Passado um bocadinho ganhamos força outra vez e voltamos a tentar. Acho que estamos constantemente a tentar identificar problemas em nós próprios e a tentar melhorar, mas muitas vezes eles são recorrentes e sentimos que não há solução.”

É a vida, não é? Tomás Wallenstein confirma com um “exatamente”. Domingos Coimbra, como quem se sente refastelado após terminar o chá e colocar o monóculo, reafirma: “É a chamada vida, a já célebre vida!”

As analogias não acabam por aqui: há ainda mais uma observação a fazer sobre a obra dos Capitão Fausto. A sonoridade de cada álbum, desde o “Gazela” (2011), passando pelo “Pesar o Sol” (2014), e indo até ao “Capitão Fausto Têm os Dias Contados” (2016), pode representar a fase da vida que atravessavam os elementos da banda – respetivamente, a adolescência, uma adolescência mais transitória e a fase “jovem adulto”. Domingos Coimbra tem uma justificação: “Como o Tomás [Wallenstein] escreve sobre os momentos por que está a passar, os álbuns ficam intrinsecamente ligados a uma dada altura da vida.” Sendo assim, convém dar voz a quem a usa na banda, e Tomás Wallenstein não podia estar mais de acordo. Para ele, é de forma natural que isso acontece. O conteúdo cresce à medida que os membros da banda crescem; essa evolução não é forçada: “Nós estamos a surfar a onda. As pessoas têm a liberdade de chamar às coisas aquilo que quiserem, mas para nós há o disco que lançámos em 2011, o disco que lançámos em 2014, etc.”

Por esta razão, há quem diga que a banda de Alvalade é a voz de uma geração, mas os seus membros afastam-se dessa posição. “Não nos cabe a nós assumirmo-nos como essa voz. Muitas vezes, a dimensão que uma coisa ganha é exterior a ti. Nem sempre é a intenção de quem escreve que aquilo seja um cânone para quem quer que seja. Isso já está fora do nosso controlo”, refere Domingos Coimbra. No entanto, o baixista também reconhece que isso só acontece devido a um conjunto de fatores, como a ética de trabalho – mas também a sorte.

Ao vivo e a cores

Os Capitão Fausto estão de regresso aos concertos – como o que aconteceu no dia 6 de abril, no Capitólio, em Lisboa. Apesar de ainda ser recente, o novo álbum já é aclamado por todos os fãs de forma apaixonada. Exemplo perfeito disso foi o final do encore – a sala, completamente esgotada, fez-se ouvir em uníssono quando cantou o último verso de “Final”: “Se eu não ficar contigo, é tudo em vão”.

Ao vivo, as canções ganham uma nova vida. No momento, Tomás Wallenstein não repara nas alterações que faz, mas admite que, depois de ouvir, se apercebe de que já alterou a métrica, a melodia ou o ritmo, porque lhe vai “soando melhor.”

Com o tempo, há pormenores que saltam à vista e começam a fazer sentido de outra forma. Pelo que diz Tomás, na música “Amor, a Nossa Vida”, esta tomada de consciência chegou mais cedo do que o normal. “Eu e o Manel [Palha] já topámos uma cena que podia ter melhorado exponencialmente a música.” Sem revelar o quê, acrescenta apenas que são questões muito específicas da música.

Posto isto, é preciso saber parar – “a receita é pôr um prazo”. Caso contrário ficam a trabalhar numa música para sempre. “No nosso caso, uma música está pronta quando os cinco conseguimos viver bem com aquilo que lá está. Há momentos em que uma pessoa não consegue, e então a música muda muito por causa disso. Se conseguirmos viver com a música, mesmo que ela não esteja exatamente como nós queremos (mas nada nunca está como nós queremos), então é para avançar.”

No fim da entrevista, a nossa curiosidade ainda não estava saciada. Quando nos seus concertos os Capitão Fausto tocam a música “Maneiras Más”, do álbum “Pesar o Sol”, no verso “pode ser que eu venha a controlar” Tomás Wallenstein faz sempre um gesto de “ditador” com o dedo (como na imagem abaixo).

Tomás Wallenstein / Fotografia de Diogo Ventura – 8ªColina

Na nossa cabeça ecoavam várias questões – demasiadas para um assunto tão insignificante. Porquê? Como surgiu este movimento? Tomás e Domingos trocam um olhar, sorriem, e o diálogo que encerra a entrevista, com a assessora já dentro da sala com o próximo jornalista pronto a entrar, é o seguinte:

Tomás: Não sei. Nunca pensei muito sobre isso.

Domingos: Aconteceu várias vezes? Eu nunca reparei nisso.

Tomás: Se calhar acontece porque é uma parte em que eu não tenho nada para tocar com a mão direita.

Após a entrevista, ainda pelas ruas de Alvalade, reina a desconfiança quanto à última resposta, mas também a certeza de que, se continuarem a evoluir desta forma, pode ser que um dia os Capitão Fausto venham a controlar a música portuguesa. Pelo menos os dias já controlam.

Este artigo foi originalmente publicado em oitavacolina, e é da autoria de Diogo Ventura e Gustavo Carvalho, tendo sido aqui reproduzido com a devida autorização.

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