Caminho e carácter

por Gustavo Carona,    18 Dezembro, 2020
Caminho e carácter
Gustavo Carona / DR
PUB

Puseram-nos na mão um desafio global. Decidimos ir cada um para seu lado, e o vírus foi para todo o lado. Foi o pior ano da minha vida, e vinha de um 2019 que me tratou muito mal e me tirou muitos dos meus melhores sonhos. Tinha a certeza que 2020 só poderia ser melhor. Mas da certeza sobrou apenas a dúvida se alguma vez terei um ano tão mau como este. Sofri porque a vida não me correu bem, e porque não consigo ficar indiferente ao sofrimento do que vejo à minha volta. Nunca me iludi com as palmas, senti desde o 1º dia que o #vaificartudobem era acreditar em unicórnios, e estou habituado a fingir que não ouço quando me chamam de “herói”. 

É da natureza humana reagir em fuga perante a dor, está no nosso instincto de sobrevivência o individualismo perante uma ameaça, que se estende apenas aos que dependem de nós. Mas esquecemo-nos que dependemos todos uns dos outros. Absorvi o impacto desta pandemia e dos seus danos colaterais de tantos ângulos que fiquei com a cabeça a girar. Quis tanto ser parte da solução para os problemas, que os problemas tomaram conta de mim. Vi muita gente a morrer, mas chorei de alegria quando tiramos o primeiro doente do ventilador. Em cada doente, consoante as idades, projectei os meus pais, os meus tios, a minha irmã, os meus companheiros de trabalho, os meus primos e os meus amigos, alguns bem mais novos do que eu. 

Senti com um nó na garganta os que perderam o emprego, a casa, e a dureza dos que não sabem como dar de comer aos seus filhos. Há dias ouvi a frase que “em tempos de crise uns choram e os outros vendem lenços”, fiquei repugnado e enojado com a incapacidade que algumas pessoas têm, de olhar para a dor e sofrimento de pessoas que cruzam as mesmas ruas, das mesmas cidades. Tudo o que se pede é espirito de equipa, mas todos querem ser treinadores. Vivo com a angústia do que o abrandamento do mundo dos ricos está a causar ao mundo dos pobres, mas não tenho a ilusão de explicar aos hipócritas o tamanho da sua maldade, da sua perversão, indiferença e hipocrisia neste momento em que cada um está fechado em si próprio. Cada lição a seu tempo e o timing é fundamental para o sucesso de cada batalha. 

No momento em que mais precisávamos de uma visão global do mundo, foi quando mais se atacou e enfraqueceu os organismos que representam a humanidade que temos em comum. Mais do que nunca precisávamos de uma Organização Mundial de Saúde forte. Mas os fracos, os cobardes, os egoístas, os ignorantes, e os criminosos trataram de empestar a credibilidade dos que toda a vida olharam pela saúde de todos. Quando mais precisávamos de ouvir a ciência e a sensatez, mais microfones se deu aos lunáticos, aos crápulas e aos criminosos que intoxicam a opinião pública, e contaminam a mensagem que precisa de ser clara e limpa para chegar a todos e a cada um de nós. 

Até na política vimos crescer os que sobem ao palco para tocar nos botões do egoísmo. Quando a lição a aprender e reforçar, era a da colaboração, ganhou força a retórica asquerosa dos que definem um “nós” e os “outros”, dividindo para conquistar uma luta em que todos perdem. Gritou-se por liberdades e direitos, como se não tivéssemos o dever de lutar pelo bem comum. Esquecemo-nos que a riqueza de uma sociedade está na dignidade e proteção dos mais fracos e não na soberba dos que saem de carros de luxo para pedir apoio aos nossos impostos. Estabeleceu-se o paradoxo profundamente injusto em que os que mais acreditam no bem comum à custa da coragem de saber estar triste, pagam com o mesmo número de vidas do que os que gozam a vida e gozam com o esforço hercúleo de quem luta pelas vidas e por uma sociedade mais bondosa. 

Usei da palavra o mais que pude, o melhor que soube para fazer sentir o que se passa nos hospitais com as famílias de todos nós. Sofri profundamente com o veneno de quem nunca fez nada por ninguém e quis atirar a minha mensagem para a fogueira. Cospem-me perguntas para me magoar: “O que dizes aos que perderam o emprego?”… como se a culpa fosse minha… Mas eu respondo olhos nos olhos e sem hesitar: “Se é para salvar vidas, tirem do meu ordenado! E façam-no já, sem demagogias!” Pois é assim que eu vejo uma equipa, uma comunidade, um país, e toda a humanidade. Tenho vergonha de mim, se não lutar pelos mais fracos enquanto eu for forte. 

Se estou triste? Sim. Se estou desiludido? Não. As grandes crises mostram o nosso caracter, mostram de que é que é feito cada um. E eu tenho visto pessoas incríveis, a olhar para o mundo com uma coragem, uma bondade, uma empatia, uma integridade, uma resiliência e um altruísmo que fazem com que o ano em que eu mais vezes chorei na minha vida, tenha sido feito de mais lágrimas de bravura e inspiração do que lágrimas de tristeza. Nunca terei as palavras certas ou suficientes para vos agradecer. Mas obrigado por fazerem de mim uma pessoa mais bonita e por fazerem do mundo algo que vale a pena ver girar. 

Cada um escolhe as memórias à sua medida, e de 2020 o que eu mais vou querer levar são as palavras da senhora Margaret Keenan, a primeira pessoa a ser vacinada no mundo contra a Covid19, que apesar dos seus 90 anos, disse entre muitas outras coisas bonitas que não era só importante para ela, mas que se vacinava pelo bem comum. 

Desta dor não podemos fugir, o que fazemos com ela é que define o nosso caminho e o nosso carácter. Caminho e Carácter.

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.